Quais são os casos em França em que um antigo primeiro-ministro e o atual estão sob suspeita?
São dois casos cuja única ligação é o cargo de primeiro-ministro de França. O atual, François Bayrou, é acusado de nada ter feito enquanto ministro da Educação perante casos de agressões a alunos numa escola católica onde um filho seu era aluno e a mulher era catequista, bem como de ter mentido agora aos deputados. O chefe do governo entre 2020 e 2022, Jean Castex, foi detido e depois libertado no quadro de uma investigação em que é suspeito de falsificação e peculato.
Bayrou sobreviveu a cinco moções de censura nos últimos dias, interpostas pela França Insubmissa devido ao orçamento do Estado e à lei da segurança social terem sido aprovadas sem votação na Assembleia. O centrista assegurou o funcionamento regular do Estado e a continuidade do governo, mas o caso Notre-Dame-de-Bétharram continua a persegui-lo, tendo prometido para este sábado encontrar-se com o porta-voz das vítimas de violências físicas e sexuais daquele estabelecimento situado a a uma dúzia de quilómetros da aldeia onde nasceu Bayrou (Bòrderes), no concelho de Pau, cidade do sudoeste da qual o chefe do governo não abdica de continuar como presidente da Câmara.
Nos últimos dias, vários meios de comunicação fizeram mais revelações sobre o caso que voltou a público na sequência da investigação de há um ano, do Ministério Público, sobre alegados atos de violência, agressões sexuais e violações cometidos no colégio entre os anos 1970 e 1990. A investigação foi iniciada após a deposição de 112 queixas.
Ao site de investigações jornalísticas Mediapart, o pai que apresentou queixa, em 1996, contra um funcionário por este ter perfurado o tímpano do filho com uma bofetada, disse que François Bayrou, na altura ministro da Educação, deve ter sido informado da situação, nem que seja pelo facto de os seus filhos estarem na mesma turma. “Na altura, fiquei furioso com a sua falta de reação", disse o pai queixoso.
Às primeiras notícias, no ano passado, sobre a investigação, Bayrou reconheceu ouvir falar de "boatos" sobre "bofetadas" no colégio interno e que “uma das filhas se lembra de ouvir falar de uma bofetada de um supervisor”, disse ao La République des Pyrénées, em março de 2024. Mas recentemente surgiram testemunhos a contradizer a sua versão. Por exemplo, a professora de matemática Françoise Gullung, que diz ter feito à época queixa da violência, afirma agora que a mulher de Bayrou assistiu a uma agressão a um aluno e que avisou o então ministro.
“Em nenhum momento fui informado dos factos que deram origem a queixas ou denúncias”, declarou o primeiro-ministro aos deputados na terça-feira. Mas o Mediapart voltou à carga e demonstrou o contrário. Jean-Marie Delbos, que foi aluno do colégio católico entre os anos 50 e 60, enviou uma carta a Bayrou em março de 2024, com aviso de receção, na qual descreveu ter sido vítima de abusos sexuais: “Claro que ele sabia! Escrevi-lhe para lhe contar o que se passava. Ele sabia porque assinou o aviso de receção. E isso foi há um ano."
No dia seguinte, quarta-feira, a indignação fez-se ouvir na Assembleia. "Ontem mentiu aqui, mentiu à Assembleia Nacional, mentiu a todos os franceses. Mentiu para esconder o seu conhecimento da violência contra as crianças que as suas responsabilidades passadas o obrigavam a denunciar”, disse o deputado da França Insubmissa Paul Vannier. Do mesmo partido de extrema-esquerda, Manuel Bompard pediu a demissão. “Um primeiro-ministro que encobriu factos tão graves e, ainda por cima, mentiu, não pode continuar a ser decentemente primeiro-ministro.”
Castex recebe solidariedade dos trabalhadores
Já Jean Castex esteve detido durante várias horas na quinta-feira, antes de ser libertado. "Na sua qualidade de presidente da comunidade de municípios de Conflent Canigou, dois antigos vice-presidentes e o diretor-geral dos serviços foram detidos pela polícia e libertados no final do inquérito, no âmbito de uma investigação preliminar sobre um relatório da Anticor [associação anticorrupção por falsificação, uso de falsificação, peculato sem enriquecimento pessoal”, explicou à AFP o procurador de Perpignan, Jean-David Cavaillé.
Para já, a investigação prosseguem sem acusação deduzida. “A questão é saber se, a fim de salvar uma empresa em dificuldades e salvar postos de trabalho, o acordo era legal ou não”, disse o procurador, que afastou a ideia de enriquecimento pessoal, explicou ao jornal Midi Libre.
Jean Castex, sucessor de Édouard Philippe e antecessor de Élisabeth Borne como primeiro-ministro, tendo nesse período enfrentado a pandemia, não falou em detenção, mas em ter-se deslocado a Montpellier "para ser interrogado sobre factos que remontam a 2017/2018 (...), relativos a um caso de ajuda económica a uma empresa” de tecnologia em que não tinha qualquer interesse pessoal, explicou em comunicado. Na sexta-feira, voltou a falar sobre o tema, afirmando "não ter cometido qualquer infração".
Quando foi nomeado por Emmanuel Macron para o palácio de Matignon, Castex presidia à comunidade de municípios de Conflent Canigou e tinha sido presidente da Câmara de Prades (região da Ocitânia).
O atual administrador da empresa de transportes de Paris recebeu a solidariedade do sindicato Unsa-RATP. “O anúncio de que o presidente da RATP tinha sido detido pela polícia provocou um arrepio na empresa. O seu humanismo, aparentemente para salvar postos de trabalho, não foi apreciado”, ironiza o sindicato.
O sindicato Unsa-RATP condenou a vontade de alguns de “se divertirem com a cabeça de um antigo primeiro-ministro”.
Já a presidente da região de Ile-de-France, ao seu lado na apresentação do futuro sistema de metro de Paris criticou a forma como foi noticiada a investigação. “É extremamente inoportuno divulgar um inquérito preliminar”, considerou Valérie Pécresse.