"Putin irá até onde lhe permitirem reconstituir as fronteiras do império"

Foi estudar para a União Soviética em 1977 e lá vivia ainda no momento em que o regime comunista ruiu e as 15 repúblicas decidiram seguir o seu rumo, entre elas a Rússia. Jornalista e historiador, José Milhazes segue a atualidade do espaço ex-soviético mas também estuda o seu passado e acaba de publicar <em>A Mais Breve História da Rússia: dos Eslavos a Putin. </em>
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O seu livro mais recente tem como título A Mais Breve História da Rússia: dos Eslavos a Putin. Quanto diz dos eslavos a Putin é porque a marca do atual presidente, no poder há mais de duas décadas, é já certa na história da Rússia?
Claro que Putin, para o bem e para o mal, vai ficar na história da Rússia. Isso é inevitável. As ações dele irão marcar não só a história da Rússia, mas também a história europeia e universal.

E está a dizer num horizonte que pode ser de muitas décadas, mesmo no pós-Putin?
Mesmo no pós-Putin. Porque fala-se de Putin, mas fala-se também do putinismo. E o homem que suceder a Putin no Kremlin pode continuar este tipo de política se tudo lhes continuar a correr bem como tem corrido até agora.

Quando diz continuar a correr bem significa o quê? Que apesar dos recursos moderados, comparados com os recursos da União Soviética, em termos geopolíticos, Putin tem ganho posição?
Putin, por enquanto, tem ganho. Isso aí não há dúvida nenhuma. Agora o problema aqui é ver quais vão ser as apostas que ele vai fazer para hoje, amanhã, depois de amanhã, etc. Por exemplo, neste momento, já se torna, digamos, muito provável que as tropas russas não parem na zona ocupada pelos separatistas pró-russos da Ucrânia, porque os dirigentes das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk já dizem que a Ucrânia tem de abandonar todo o território destas duas regiões. Isto significa que a guerra pode aumentar de intensidade.

Putin fez um discurso muito centrado na história. Falou de Catarina, a Grande, falou de Lenine. Esses argumentos que Putin tem de que a Ucrânia, no fundo, é uma parte da Rússia, um Estado artificial, para si têm alguma validade?

Não. Aquilo trata-se realmente de revisionismo muito perigoso da história da Rússia. É muito normal na história da Rússia, quando chega um dirigente deste tipo ao poder, começar a rever completamente o passado de forma a adaptá-lo à sua ação. Nesse sentido nós podemos, por exemplo, olhar para Estaline, que fazia exatamente o mesmo. Reescrevia a história. Daí os russos dizerem que a Rússia tem um passado imprevisível.

Mas, por exemplo, quando se fala de que a Ucrânia não tem uma verdadeira unidade linguística, que a metade ocidental fala ucraniano e o leste, russo, e que até nas eleições sempre houve diferenças de voto regional, é verdade ou não?
Isso são factos. Agora o que Putin diz é que não é verdade. A Ucrânia e a Rússia são países diferentes e povos diferentes. Isso aí é uma distinção que já é clara e tornou-se principalmente clara depois da anexação da Crimeia. Infelizmente, o carácter nacional dos ucranianos está a afirmar-se numa política antirrussa, anti-Putin.

Diz infelizmente porque tradicionalmente os ucranianos deveriam ser os verdadeiros irmãos da Rússia, pela proximidade cultural?
A Ucrânia e a Rússia poderiam ter excelentes relações não fosse a política de Putin. Putin não reconhece a Ucrânia como Estado. Além disso Putin, no discurso, disse uma coisa muito grave. Ele pôs em causa todos os Estados da União Soviética. No que diz respeito a fronteiras e até no direito à existência.

Mas não vê Putin como um saudosista do comunismo, pois não? Vê-o como um saudosista do grande espaço controlado por Moscovo.
Putin é um nacionalista, de comunista ele não tem nada. Isso é mais do que evidente. Putin é um nacionalista defensor do Império Russo e que poderá ir até onde lhe permitirem na reconstituição das fronteiras desse império.

Indo ao aspeto mais histórico que aborda no seu último livro, quando se fala de Rus de Kiev como o primeiro Estado russo, ainda na Idade Média, é mesmo esse o berço da Rússia?
Falar de primeiro Estado russo, de Rus de Kiev como tal, isso é incorreto. A Rus de Kiev é o berço de três povos. É diferente.

Está a falar de russos, ucranianos e bielorrussos?
Exatamente.

É o berço dos países eslavos daquela região, é isso?
Exatamente. A Rus de Kiev não é a Rússia de Kiev. É o berço de três povos, que depois, devido às circunstâncias históricas, se foram ora afastando ora se aproximando, até chegarmos a esta situação.

A Rússia atual acaba por nascer com o grão-ducado de Moscóvia como resposta aos mongóis, à Horda de Ouro? Ou seja, a Rússia verdadeiramente pode remontar ao quê? Ao século XIV?
Sim. É a partir daí. E a partir daí também começa a aparecer, por exemplo, a Ucrânia. Esta última fragmenta-se, constantemente, entre vários países e impérios como a Polónia, o Império Austro-Húngaro, o Império Russo. O mesmo acontece com a Bielorrússia, dividida muitas vezes entre a Polónia e a Rússia. Ou seja, os três países enveredaram por caminhos diferentes. Claro que se pode dizer que as repúblicas soviéticas, muitas delas, foram criadas e talhadas artificialmente.

Sobretudo na época de Estaline?
Sim, sim. Porque muitas dessas repúblicas não existiam como Estados. Não estou a falar só da Ucrânia. A Ucrânia ainda teve algum tempo de Estado independente durante a Guerra Civil na Rússia, entre 1917 e 1922. Agora, por exemplo, na Ásia Central não existia nenhum Estado, digamos, formado. Existiam povos que lá viviam, mas estavam dentro do Império Russo. Por exemplo, o Cazaquistão é formado por uma parte também de terras que foram cedidas pela Rússia. Aqui há que entender uma coisa. As fronteiras dentro da União Soviética não eram fronteiras, digamos, entre Estados. Eram fronteiras administrativas. E estas fronteiras, como eu disse, foram criadas artificialmente. Só que, aquando da desintegração da União Soviética, os vários protagonistas decidiram não mexer nas fronteiras porque quando isso foi feito terminou em guerras. E guerras muito violentas.

Deixe-me só perguntar, no caso do Cazaquistão, todo o norte do Cazaquistão tem populações russas. Mas para Putin é muito mais importante ter todo o Cazaquistão como aliado do que anexar parcelas de território.
Sim, e em relação à Ucrânia podia dizer-se exatamente o mesmo.

No fundo Putin não quer acumular confetis russófonos, quer é ter influência sobre os países?
Exato. E para Putin não basta ser amigo. Quer é que a Ucrânia dependa inteiramente de Moscovo.

Ou seja, quando se fala de finlandização, acha que é uma analogia que não faz sentido hoje porque essa Ucrânia seria muito mais dependente do que foi a Finlândia.
Não. Claro que não. A finlandização iria ser um passo intermédio da Rússia para avançar para outras coisas. Não estou a dizer que neste momento a Rússia vai invadir a Ucrânia. Não é isso que eu ainda estou a dizer. Embora haja esse receio e é um receio que eu acho fundado, de pelo menos a Rússia avançar no terreno mais alguns quilómetros no leste da Ucrânia.

Usando os limites das províncias com o nome das repúblicas?
Por exemplo. E depois, se possível, ir mais além.

Deixe-me voltar de novo um pouco para a história que conta no livro. Quando se fala da Rússia falamos muito dos czares, falamos muito dos bolcheviques. Mas a Rússia também é um grande colosso cultural da Europa. E a Europa, às vezes, esquece essa faceta da Rússia. Concorda?
Sem dúvida. É um dos grandes problemas da Europa e dos Estados Unidos, neste caso, que não conseguem encontrar uma fórmula, ou melhor, não conseguiram encontrar uma fórmula digna para as duas partes, de convivência depois da queda da União Soviética. Isso aí foi um erro muito grande tanto da União Europeia como dos Estados Unidos.

Ou seja, não puxar a Rússia para o campo ocidental?
Eles puxaram-na, mas à sua maneira. Puxaram, humilhando-a.

E daí Putin aparecer, depois...
Claro. Ele aparece como o salvador. No meio daquelas humilhações todas que vinham tendo lugar. Nesse sentido, Boris Ieltsin foi uma catástrofe na história russa.

Quando fala de humilhações, inclui o próprio alargamento da NATO a leste depois do fim da Guerra Fria?
Considero que sim, porque não tinha sentido esse alargamento. Não tinha sentido até à proclamação de independência dos dois territórios que pertenciam à Geórgia, à Abcásia e à Ossétia do Sul, reconhecidas pela Rússia

Em 2008, depois da Guerra da Geórgia. Até então a Rússia nunca tinha dado argumentos para isso?
Até aí estabeleciam-se relações normais, e até boas relações. Essas relações continuaram apesar de tudo até à anexação da Crimeia em 2014. O que vem provocar esta crise enorme foi a ocupação da Crimeia e destas zonas da Ucrânia.

Mas o derrube do presidente pró-russo na Ucrânia, que antecede a anexação da Crimeia, também não pode ser visto por Moscovo como um ato hostil?
Pode ser visto. Mas isso não é argumento para se invadir um país vizinho. Aí é que eu acho que Putin cometeu um grande erro. Claro que a União Europeia cometeu também um erro de palmatória durante os acontecimentos da Praça Maidan em 2014 quando serve de intermediária entre os rebeldes e o presidente Yanukovich para estabelecer um acordo onde fixavam a realização de eleições antecipadas. E a União Europeia não foi capaz de manter esse acordo. Esse acordo foi violado pelos rebeldes no dia a seguir e Yanukovich teve de sair de Moscovo. Isso é um facto. Agora nós não podemos daqui concluir que a Rússia tem direito a ocupar partes de um país por esse tipo de razões. Se não, quer dizer, nós estávamos num verdadeiro inferno. Nós já vimos, por outras experiências, e eu falo, por exemplo, de experiências dos Estados Unidos a tentar mudar a orientação política dos países com intervenções armadas e que se deram mal. O Afeganistão e, por exemplo, o Iraque. Isso deveria levar Putin a ter cuidado e a tirar as devidas conclusões.

Putin deveria aprender com os erros dos próprios americanos?
Exatamente. E não fazer, não repetir, os erros dos próprios americanos só porque se os americanos podem nós também podemos.

Porque é que - e admito que a minha perceção possa estar errada - a Rússia e Putin desistiram tão facilmente dos Bálticos? Ou seja, os países bálticos aderiram à NATO, apesar de populações russófonas significativas, sobretudo na Estónia e na Letónia e menos na Lituânia, e nunca as tentou usar verdadeiramente como quinta coluna. É uma consciência de que esses três na verdade eram de outra órbita, que a adesão à NATO e à UE em 2004 se tornou irreversível?
Nessa altura era, agora já não sei. Depois do discurso de Putin na segunda-feira eu já não sei o que é que vai acontecer.

Acha que os Bálticos podem ter deixado de ser uma exceção?
Podem. Depende é de até onde Putin pode ir. Claro que eu não quero imaginar uma guerra entre a NATO e a Rússia. Isso aí seria, digamos, o pior e mais tenebroso dos cenários.

Aí seriam três países da NATO a ser ameaçados e a NATO já teria que entrar em sua defesa.
Ora nem mais. E como nós sabemos, tanto um lado como o outro têm armas nucleares. Daí que isso é um problema muito complicado.

Mas no discurso não houve nenhuma referência explícita aos Bálticos. Está a interpretar?
Putin falou das repúblicas da antiga União Soviética. Ora ele considera, como é verdade, que as três repúblicas do Báltico fizeram parte da União Soviética.

Então aí acha que foi explícito?
Claro. Aí não há dúvidas. Ele tem em vista a União Soviética que existia em 1991. Porque as próprias repúblicas do Báltico fizeram parte do Império Russo. Do tal império que ele fala com tanto amor e carinho.

Mas, apesar de tudo, tiveram aquele período de independência entre as duas guerras mundiais. Não é suficiente para fazer diferença?
Exato. Mas eu lembro-me sempre daquela piada que os russos contam. Perguntam a Putin: até onde vão as fronteiras da Rússia? E Putin responde: até onde eu quiser.

leonidio.ferreira@dn.pt

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