A última vez que a Convenção Democrata aconteceu em Chicago, o partido venceu as eleições de novembro e manteve o controlo da Casa Branca. Estava-se em 1996. O candidato era o presidente incumbente Bill Clinton, acompanhado do seu vice-presidente Al Gore, e tudo correu dentro do previsto. O regresso dos democratas a Chicago acontecia 28 anos depois de um dos piores momentos de sempre da história do partido, quando a convenção naquela mesma cidade em 1968 terminou em violência nas ruas. .Desta vez, com milhares a protestarem a guerra em Gaza à volta do United Center, é a convenção de 96 e não a de 68 que o Comité Nacional Democrata procurará recriar, quando regressar à cidade para consagrar a primeira mulher afro-indiana-americana como candidata presidencial. .“Para o partido Democrata é extremamente importante que a convenção corra mais ou menos como correu do lado dos republicanos, ou seja, que seja realmente uma consagração da liderança de Kamala Harris”, disse ao DN a cientista política luso-americana Daniela Melo, professora na Universidade de Boston. “Ela está no bom caminho para isso, porque realmente estas três semanas correram acima de todas as expectativas”, frisou. “Ela conseguiu em três semanas estar empatada com Donald Trump na maioria dos estados cruciais e nalguns já o passou.”.A mais recente sondagem Cook Political Report, publicada na semana passada, mostra que a corrida foi virada do avesso com a desistência de Joe Biden e a ascensão de Kamala Harris. Se antes o republicano Donald Trump liderava em todos os sete estados considerados cruciais, agora só lidera no Nevada. As coisas estão empatadas na Geórgia e Kamala Harris passou à frente no Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Arizona e Carolina do Norte. E isso antes de contabilizar o impulso de 2 a 3 pontos que costuma acontecer após as convenções. .“Como sabemos, isto ainda pode mudar, mas aí é que a convenção se torna particularmente interessante”, referiu Daniela Melo. “Porque a convenção vai ser a primeira oportunidade dela para falar ao país diretamente e lançar a mensagem da sua campanha com grande amplificação, com a capacidade de chegar a milhões.”.Será neste palco que os delegados que já votaram eletronicamente para confirmar Harris como candidata farão um roll call simbólico, numa cerimónia que marca uma nomeação inédita. .“É única de várias formas”, caracterizou o professor Brian Adams, da Universidade Estadual da Califórnia em San Diego. “Nunca tivemos um candidato presidencial a desistir tão tarde na corrida. É território desconhecido e não sabemos se o facto de a corrida ser curta, porque só agora ela está a começar, vai ajudar ou prejudicar.”.O cientista político acredita que o eleitorado vai esquecer-se rapidamente de Joe Biden, do debate desastroso, da relutância em ceder à pressão para sair e de “toda essa novela.” A presença do presidente na convenção, onde é um dos principais oradores, servirá para passar o testemunho. .Parada de estrelas.Nas primeiras horas após a desistência de Joe Biden, havia dúvidas sobre como o partido ia prosseguir. Tentaria uma convenção aberta? Haveria candidatos dispostos a desafiar a herdeira natural do candidato? A possibilidade de uma convenção contestada, que foi aventada durante algum tempo pelas vozes que não queriam a recandidatura de Biden, foi afastada. .“O partido precisa de se mostrar unido e capitalizar na energia e no entusiasmo das últimas semanas para conseguir manter o foco e lançar-se para o que vai ser o período mais intenso, que é o período pós-convenção”, explicou Daniela Melo. .A presença de Biden será importante, tal como a de outras caras históricas do partido, numa convenção que será coberta em direto por 15 000 jornalistas. O presidente fala hoje, no primeiro dia de convenção, tal como Hillary Clinton. Barack Obama fala amanhã e a intervenção de Bill Clinton está marcada para quarta-feira. É o mesmo dia em que Tim Walz, governador do Minnesota, vai discursar para aceitar oficialmente a nomeação para vice-presidente. .O grande discurso de Kamala Harris vai acontecer quinta-feira, último dia da convenção, que se espera ser de apoteose e lançamento das linhas estratégicas da campanha. .É (outra vez) a economia.“A agenda económica, na minha opinião, irá dominar esse discurso, porque a economia é um ponto de ataque de Donald Trump a Kamala Harris”, salientou Daniela Melo. “Sabemos que a estratégia republicana é basicamente a questão da emigração, a economia, a inflação e a questão da criminalidade”, resumiu. “Donald Trump faz um jogo em que liga as três variáveis. Portanto, ela tem que ter uma resposta a isso para o país.”.A agenda económica é a mais importante, não só porque costuma ser o fator decisivo para os eleitores mas também porque Harris faz parte da administração de Biden e o eleitorado está descontente. .“Ela tem que calibrar uma mensagem que funcione acerca da economia”, disse Daniela Melo. A especialista indicou que Harris terá de definir a sua mensagem económica antes que Trump o faça por ela, uma vez que a inflação continua a ser a prioridade para os eleitores. .“A questão da economia está sempre no topo das preocupações dos americanos em ano de eleições. É a economia e a imigração e este ano vemos mais uma vez o mesmo padrão.”.Para o professor Brian Adams, este tem sido um dos problemas dos democratas e Kamala Harris terá de se afastar da mensagem de Biden se quiser prevalecer. .“Ela precisa de se distanciar da administração Biden”, considerou o analista, ressalvando que isso não significa criticá-lo, mas sim mostrar que será diferente. “Um dos grandes desafios que os democratas têm tido é que não conseguiram articular bem este problema da economia e o que vão fazer para o resolver”, apontou. “As pessoas querem mudança. Candidatar-se em cima do que a última administração fez não é bom.” .Mas isso coloca outro problema a Harris: tem de definir a estratégia de futuro enquanto continua a trabalhar como vice-presidente de Joe Biden. Para Daniela Melo, tal ajuda a explicar porque é que a campanha ainda não lançou uma plataforma de campanha com propostas muito específicas. .“Ela claramente teve muito pouco tempo para começar a trabalhar esta mensagem”, apontou a cientista política. “O facto de ainda não ter feito uma conferência de imprensa com jornalistas, onde teria questões diretas sobre políticas externas, sobre a agenda económica e agenda da emigração, indica claramente que está a tentar ganhar tempo para ir definindo essa série de políticas.”.Biden, lembrou a professora, gostava muito de entrar em detalhes e isso nem sempre correu a seu favor, como ficou claro no debate com Donald Trump que desencadeou a sua desistência. Há o risco de perder a atenção da audiência com detalhes, algo que Harris não quer. .“O discurso que ela fará na quinta-feira será importante porque tem que pelo menos já delinear as suas principais linhas da campanha”, frisou Daniela Melo. “Prevejo que ela nos traga alguma claridade em termos do que será essa agenda, mas sem grande especificidade”, vaticinou..Harris deverá focar-se nas famílias e em como vai resolver as suas dificuldades em pagar as contas no supermercado, conseguir habitação acessível e pagar a educação. Espera-se que destaque o plano de relançar o crédito fiscal infantil, que Biden pôs em marcha mas que o Congresso não renovou. .Para cativar os eleitores nos swing states, estados que podem cair para qualquer um dos lados, Daniela Melo prevê que Kamala Harris vai atacar as grandes corporações que não pagam os impostos devidos e que contribuíram para a inflação por serem gananciosas. .“Esta ideia de que as corporações têm vantagens que mais ninguém tem é muito popular nos Estados Unidos, em especial na última década”, afirmou a professora. “Isso aliado à subida dos impostos para as corporações e para os mais ricos tenho a certeza absoluta que será um dos temas para a agenda económica.”.Protestos e o fantasma de 68.São esperados milhares de manifestantes em Chicago que vão protestar contra as políticas da administração Biden perante a guerra Israel-Hamas e o desastre humanitário em Gaza. .“Espera-se uma grande mobilização pró-Palestina nos arredores”, frisou Daniela Melo. “Pode roubar um pouco o foco da convenção.” .A área metropolitana de Chicago tem a maior concentração de palestinianos nos Estados Unidos, com uma zona denominada Little Palestine. Embora Kamala Harris não seja responsabilizada da mesma forma que Joe Biden é — o que levou a milhares de eleitores a votarem “não comprometido” durante as primárias – o partido democrata continua a ser alvo de críticas devido à sua gestão do conflito..“O que sabemos é que continua a haver uma mobilização muito grande, com algumas vozes a dizerem que os democratas precisam de perder esta eleição para aprenderem a lição”, frisou Melo. “E depois não podemos esquecer que temos um movimento estudantil e não sabemos quanto dele se vai juntar em Chicago.”.Esta incógnita invoca o fantasma de agosto de 1968, quando a convenção incendiou um partido fraturado com violência e Guarda Nacional nas ruas. O presidente Lyndon B. Johnson decidiu não se recandidatar, Martin Luther King e Robert F. Kennedy tinham sido assassinados, e as fações opostas sobre a guerra no Vietname chocaram. .“O que o partido Democrata quer, honestamente, é que esta convenção passe sem ninguém falar em 1968”, disse Daniela Melo. “Devido às convulsões na campanha este ano, tem havido tantas referências a 1968, annus horribilis para o partido, que a grande prioridade do partido, mas também do mayor de Chicago e do governador é virar a página de todos os paralelos com 68 e mostrar que este partido Democrata é muito diferente do partido fraturado desse ano.”