Há uns anos, apresentou ao governo francês um relatório para responder à falta de fundos para financiar empresas tecnológicas com a mobilização de fundos privados - a iniciativa Tibi, lançada em 2019. Pode explicar-nos melhor em que consiste?O ponto de partida é que as novas empresas tecnológicas têm um crescimento muito forte, e é por isso que são de boa qualidade. Quando uma empresa tem um crescimento significativo, precisa de muito capital. O que detetei foi que não há acionistas. Temos de encontrar dinheiro, de encontrar acionistas. Os acionistas trazem capital e são normalmente fundos de investimento. O sistema em França é o mesmo que em Portugal: os fundos de investimento têm pouco capital, são fundos pequenos que não conseguem angariar muito dinheiro. Portanto na altura em que o crescimento das empresas parava, eram vendidas, em geral, a compradores americanos. Assim, a recomendação que fiz foi trazer dinheiro, pedir a agentes privados que trouxessem dinheiro para os fundos de investimento para que pudessem escolher e selecionar projetos, e aí o capitalismo normal entrava em ação. Foi isso que fizemos: abordámos o sector dos seguros. O sector dos seguros em França gere uma enorme quantidade de dinheiro, são 2 biliões de euros, o que é muito respeitável. Passámos muito tempo com eles e, passado um ano, prometeram investir seis mil milhões de euros nestes fundos de investimento. Temos 21 seguradoras, para além da Electricité de France [empresa elétrica francesa], que investiram.E foi fácil convencê-los?É mais fácil quando estão no setor público. Dissemos-lhes que era uma oportunidade financeira, não pedimos caridade. Explicámos que nos EUA, o capital de risco ganhou muito dinheiro, porque é que não tentam fazer a mesma coisa? Então eles prometeram seis mil milhões durante três anos, investiram mais do que isso e, em 2023, continuámos com sete mil milhões. E agora são 37 investidores em vez de 21. Funcionou bem, todos os que estavam lá no início voltaram. É este o princípio, mas a verdadeira questão não é a promessa, porque há muitas pessoas que fazem promessas e não as cumprem, é que nós pusemos em prática uma estrutura, uma governação que significa que os investidores a longo prazo estavam no comando, muito envolvidos na seleção dos fundos, das rendas, passaram muito tempo a fazê-lo e gostaram de ver oportunidades que eles próprios escolheram. São eles que controlam a acreditação de fundos, etc. Acho que isso é sempre subestimado, mas é um processo de confiança e, depois, concretizar a ideia de que têm muito dinheiro a ganhar.Em França, como disse, está a funcionar, mas o objetivo é convencer outros países europeus dos benefícios desta iniciativa. Qual tem sido a recetividade até ao momento?Os fundos franceses investem em toda a Europa. O nosso objetivo é que as empresas francesas sejam muito bem financiadas. Então, dissemos a nós próprios: se houver fundos alemães, fundos britânicos, que tenham mais dinheiro, vão investir em França. E isso vai beneficiar o nosso objetivo final. Por isso, quando falamos com outros países, dizemos-lhes: “Foi isto que fizemos, mas no vosso país vai ser diferente. Não estamos aqui para dar um sermão sobre o que devem ou não fazer. Vejam como podem adaptar isto às vossas necessidades e à vossa realidade. Mas o princípio é envolver o capital privado no financiamento das empresas tecnológicas. Na Alemanha, estão a fazê-lo a uma escala bastante grande. O plano deles era de 12 mil milhões. Na Polónia, estão prontos para avançar. Na Dinamarca, há uma iniciativa nórdica com os fundos de pensões. Na Holanda, são muito fechados. Na Grécia é muito difícil.E para um país como Portugal, qual é a vantagem?Portugal tem setores que estão muito bem. Mas são setores tradicionais e alguns enfrentam forte concorrência da Ásia. É importante que um país se prepare para o futuro e acrescente valor. É também importante reter os licenciados em tecnologia, garantir que possam ganhar cá os mesmos salários que ganhariam na Alemanha, França, etc. Reter o talento é uma vantagem, também demográfica. Para pagar pensões, por exemplo. É preciso ter atividade económica no território e todos os países têm interesse nisso. A tecnologia é um ecossistema que funciona com as universidades. Permite que as universidades obtenham financiamento adicional. É um ecossistema completo. Silicon Valley é o exemplo clássico. A China fê-lo, existe na Suécia e em Israel também. Não são apenas países muito grandes. A Suécia tem 10 milhões de habitantes.O Philippe alertou para a “década perdida” da Europa, que causou um crescimento económico anémico, a polarização do mercado de trabalho, o aumento das desigualdades patrimoniais, o declínio da fé nas representações democráticas tradicionais, o Brexit e a divisão Norte-Sul na União Europeia. Ainda estamos a pagar a fatura? Sim. 2008, 2009, 2010 foram anos de rutura do contrato social para muitas pessoas. No passado, quando havia uma crise económica, isso resultava em mais proteção. A segurança social na Europa surgiu depois da II Guerra Mundial. Nos anos depois da crise petrolífera, houve mais desemprego mas em França foram introduzidas muitas proteções para compensar. Esta foi a primeira vez em que, depois da crise, houve uma redução das proteções. Foi menos violento em França do que em Portugal ou na Grécia. Mas estamos a pagar por isso. A aceitação do capitalismo após a Segunda Guerra Mundial não foi fácil. Em França, o Partido Comunista obteve 25% dos votos. Era um contrato que estabelecia que o capitalismo era duro, mas que havia segurança social, férias pagas e subsídio de desemprego. Aceitámos a dureza, mas recebemos algo em troca que não tínhamos em mais lado nenhum. Isso fica na memória das pessoas. Agora, a resposta à crise do euro foi a redução das taxas de juro, o que fez aumentar o valor do património imobiliário e financeiro para quem não os possuía. Isso aumentou a desigualdade de património. Mas em França, a desigualdade de rendimentos manteve-se após a redistribuição. Por outro lado, o aumento do imobiliário e a subida da bolsa, criou desigualdades muito significativas. E continuamos a pagar por elas. Costuma dizer-se que existe uma guerra entre as gerações que têm património e as outras. Na minha opinião, nem é isso. É pior. Vai ser uma guerra entre os jovens que vão herdar e os que não vão herdar. Isso reflete-se nas eleições, juntamente com outras questões de identidade, questões culturais, etc., que nada têm a ver com a crise financeira. Mas a crise financeira é o início de um processo longo que, ironicamente, começou na pátria do capitalismo, o Reino Unido, e também nos EUA, porque Trump chegou depois disso. Foi aqui que se deu a revolução conservadora. Foi aqui que a esquerda se tornou muito mais radical. Acho que isso vai continuar.O regresso de Trump ao poder nos EUA colocou o mundo à beira de uma guerra comercial. Que papel e que saída para a Europa neste contexto?Penso que há uma aparência de guerra comercial, porque é essa a retórica de Trump. Mas o que temos visto, na minha opinião, e que é claro há vários anos, é que se trata de uma guerra tecnológica. A tecnologia tem consequências não só económicas, mas também militares. E desde 2010 tem sido a fonte de enriquecimento americano. As empresas tecnológicas valem 35 biliões de dólares nos EUA. Isto representa mais de 30% do valor dos mercados financeiro e bolsista. É enorme. Essa é a verdadeira questão. Não quer dizer que a guerra alfandegária não seja importante. Mas a verdadeira questão é o domínio da tecnologia. E vemos isso com o embargo às exportações de microchips, a resposta chinesa, com o embargo às terras raras, e o facto de terem enormes investimentos em tecnologia. Isto sublinha que a Europa está “entre a espada e a parede”. Porque não desenvolvemos este aspeto pensando que poderíamos sempre comprar. Mas nem sempre podemos comprar. Essa é a razão pela qual é necessário haver um setor tecnológico muito forte na Europa. Primeiro, para continuar a criar riqueza. Segundo, é um factor de soberania tomar decisões sem pedir autorização a americanos ou chineses.Diria que, por um lado, a pandemia nos fez compreender que não podemos comprar tudo o que precisamos sempre que necessitamos e, por outro, agora a guerra na Ucrânia, à nossa porta, são dois momentos que vieram despertar a Europa para investir em tecnologia.Sim. Percebeu-se isso ao mais “alto nível”. Mas há uma má compreensão das ordens de grandeza. Quando Mario Draghi diz que são precisos 800 mil milhões [de investimento] por ano, as pessoas dizem “este tipo é maluco.” Mas é preciso mais do que isso. É preciso olhar para tudo: a energia, a defesa, a agricultura,... E se tivesse de ser resolvido por programas orçamentais, seria impossível. Porque não temos dinheiro suficiente. As finanças públicas na Europa não estão à altura. Como geralmente acontece com os grandes números, as pessoas têm dificuldades. Mesmo as elites. O segundo problema é que as pessoas dizem que vão desenvolver a tecnologia, mas não sabem como fazê-lo. Se não tivermos o modus operandi, que significa dar muito mais dinheiro às universidades, porque é aí que tudo começa, mobilizar capital privado, ter uma cultura científica, em vez de ter medo da ciência, não funciona. Nos EUA o capital de risco existe há 60 anos. O financiamento bolsista da tecnologia existe há 40 anos. Portanto, não os vamos alcançar em dois anos. Além disso, nenhum país europeu é capaz de o fazer sozinho, precisamos de encontrar um mecanismo europeu que funcione. Ainda estamos longe disso. É um atraso enorme. Não se pode compensar 20 anos em três anos. Portanto não podemos desperdiçar tempo.Após a pandemia, alertou para os perigos do endividamento público. A dívida e o défice ameaçam hoje descarrilar a economia francesa - e já contribuíram para agravar a crise política. Vê uma saída para a crise?Bem, não sou analista político. Mas focando nos meus temas, o que é que isso demonstra? Demonstra que em França, como todos os países em envelhecimento, que é o caso de toda a Europa, temos um problema com as pensões. O sistema de repartição não funciona quando a demografia muda. Não podemos continuar a exigir aos trabalhadores uma maior proporção do seu rendimento para pagar, porque, a dada altura, vão dizer “parem” e todo o sistema vai cair por terra. Isto reforça a necessidade de um sistema de fundos de pensões. Os fundos de pensões são um dos segredos dos EUA. Um fundo de pensões paga pensões, mas é também uma reserva de capital concentrada. Portanto, o que espero que vá sair disto, e falo em nome pessoal, é que consigamos constituir estas reservas de capital, porque são a fonte de investimento no futuro. E é uma bela maneira de ver que o que protege o passado também servirá para financiar o futuro.O que é preciso para aumentar a produtividade e garantir que os líderes cumprem o seu papel, mudar mentalidades?Não se mudam mentalidades. O que vai acontecer antes de mudarmos mentalidades é mudarmos os líderes. Se os líderes querem continuar a liderar, é do seu interesse compreender o mundo. Se são capazes de o fazer ou não, é outra questão. Esta é a grande questão hoje, porque existem tantos problemas a curto prazo que compreender o mundo exige muito trabalho, muito tempo e conhecer o mundo. Há muitos líderes que não viajaram, que não têm experiência fora das suas fronteiras e que, como muitas pessoas, pensam que as coisas existem porque existem. Até que não existam mais. Para mim, é óbvio que precisamos de investir. Produtividade é tecnologia. Em economia, não há muitas coisas certas, mas esta é uma das mais certas. Os ganhos de produtividade foram a primeira revolução industrial, que mudou completamente o paradigma. A inteligência artificial pode agora fazer o mesmo. A revolução industrial é uma domesticação da força mecânica; a IA é uma forma de domesticação da força cognitiva. Com muitos perigos. Tal como a revolução mecânica foi repleta de perigos. O comunismo, o imperialismo. Por isso, precisamos de bons líderes.Esse é um grande desafio…É por isso que o modelo democrático... Vejo muitas sondagens que refletem um grande cansaço com a democracia. É assustador. Porque o resto não faz muito sentido. Mas os atos têm consequências e as pessoas que estão descontentes com o sistema acham que tem de ser mudado. Não lhes podemos dizer que são bandidos, anti-democráticos. Eles querem um sistema que funcione. E se for um sistema de homens fortes… Em França houve sondagens em que uma percentagem significativa disse que seria bom ter um governo militar. Na China, dizem que o partido é o melhor e que não adianta perguntar a pessoas ignorantes na rua a opinião delas. Penso que se somos pela democracia, temos de dar respostas. Não se pode dizer às pessoas que o sistema funciona porque é o melhor. É o melhor se provar que é o melhor.