"Os países africanos não exportadores de gás e petróleo estão entre os "perdedores" do conflito"
África dividiu-se muito nas votações na Assembleia Geral da ONU a condenar a invasão da Ucrânia. Significa isso que há uma simpatia pelas teses russas em muitos países?
Existe um misto de simpatia e rejeição. Relembremos as votações das duas Assembleias Gerais das Nações Unidas, de 2 e 24 de março, ambas condenando a invasão russa, a segunda propondo uma iniciativa de ordem humanitária. Na primeira Assembleia Geral, 141 países votaram a favor (27 africanos), cinco contra (um africano), 35 abstiveram-se (18 africanos) e 12 não votaram (oito africanos). Na segunda, houve 140 votos a favor (27 africanos), cinco contra (um africano), 38 abstenções (20 africanos) e dez não votaram (seis africanos). Ou seja, metade dos 54 países de África condenaram a invasão russa. Porém, é significativo que os outros 27 sejam igualmente metade dos países das Nações Unidas que não condenaram a invasão russa - 52 a 2 de março, 53 a 24 de março. As abstenções não significam, necessariamente, simpatia "envergonhada" ou "temerosa" pelas teses russas - com a exceção da Eritreia, que votou contra. São mais o resultado de várias razões, das quais destaco cinco: uma, a dualidade de critérios de países ocidentais quando se trata de condenar ou apoiar países aliados; dois, ressentimentos por posições de países ocidentais, principalmente EUA, França e Reino Unido, por operações militares consideradas injustas ou injustificadas, em território africano ou de países em desenvolvimento - de que são exemplo os casos líbio ou o iraquiano; três, uma mentalidade de "não-alinhamento" e neutralidade, que não desapareceu com o fim da Guerra Fria; quatro, reconhecimento por apoios prestados pela União Soviética às lutas de libertação nacional - fazendo paralelismos errados entre a URSS e a atual Rússia; cinco, simpatia pelas razões aduzidas pela Rússia. Independentemente do peso de cada uma das razões, os governos que não votaram, por duas vezes, contra a invasão russa, agiram contra os seus próprios interesses de Estado, ao ignorarem a lei internacional e ao hostilizarem os países com quem têm maiores laços de interdependência. Fizeram-no na presunção que não haveria retaliações - aposta bem arriscada, atendendo a que as economias ocidentais se vão começar a contrair.
O caso da abstenção da África do Sul, país claramente visto como pertencente ao campo ocidental, tem alguma explicação lógica?
A situação interna na África do Sul é bastante complexa. Um voto contra a Rússia seria entendido como um voto a favor dos EUA em largas franjas do ANC. Daí a abstenção do atual governo de Ramaphosa, que reverteu rapidamente declarações iniciais hostis à invasão.
Como se pode analisar o padrão de voto dos PALOPS?
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe votaram a favor das resoluções. Nos três países africanos que não o fizeram, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, houve lutas armadas de libertação nacional, apoiadas pela URSS, que deixou simpatias pela Rússia entre elites. O conjunto de razões aduzidas para a posição dos países africanos que não votaram ou se abstiveram são aqui também aplicáveis. Na verdade, os governos desses três países jogaram com a convicção que não haveria consequências em termos imediatos ou futuros - o que vai depender da evolução do conflito e dos posicionamentos futuros que sejam tomados.
Que impacto a crise de alta de preços de combustíveis e alimentos gerada pela guerra na Ucrânia e as sanções internacionais pode ter em África?
A inflação estava já de regresso à economia internacional antes da eclosão da guerra na Ucrânia. As sanções vão afetar mais imediatamente as economias industrializadas, cuja procura por exportações africanas poderá baixar, o mesmo se passando com a disponibilidade financeira para manter ou aumentar fluxos de ajuda. Os países africanos não exportadores de gás e petróleo estão entre os "perdedores" do conflito, tendo que arcar com a escassez e correlativa subida dos preços da importação de alimentos - e demais bens.
O modo como a China reagir à evolução dos acontecimentos pode ser decisivo para as posições dos países africanos?
A China já declarou que a guerra foi causada pela posição dos EUA e pela expansão da NATO para leste, que terão encurralado a Rússia, forçando-a a agir. Não creio, porém, que a China vá muito além desta posição declarativa, porque os dirigentes chineses atuam em função dos interesses nacionais a longo prazo - e a China, ao não pretender uma Rússia instável, apoia uma solução diplomática, considerando, na verdade, que a continuidade e efeitos da guerra afeta a estratégia de expansão económica para o Atlântico (ou seja, para a Europa). Por estes motivos, não creio que os chineses atuem no sentido de encorajar países africanos a apoiarem a invasão russa.