Há um mês, uma sondagem do Conselho Europeu de Relações Externas em 12 países europeus revelou que os portugueses são os mais preocupados com a possibilidade de uma III Guerra Mundial. Olhando para o vosso Índice Global da Paz, existe a possibilidade de isso acontecer?Em primeiro lugar, acho uma reação normal dos portugueses, que estão constantemente no top 10 do Índice Global da Paz. É normal ter medo de ver uma degradação da paz no mundo, mas também na Europa, onde a ameaça viria de Leste. A Rússia é, este ano, por causa da guerra que começou e que continua na Ucrânia e especialmente pelo elevado número de mortos que está a causar ali, o último país no índice. Temos portanto um vizinho que é o país menos pacífico do mundo. Em segundo lugar, quando olhamos para os números globais, vemos que estamos ao nível mais baixo de paz desde o início do índice, que houve uma contínua diminuição da paz global nos últimos dez a 15 anos. E também vemos que todos os indicadores que podem preceder um grande conflito estão a ir nessa direção. Basicamente, os dados mostram uma mudança no reinvestimento militar, nos tipos de guerra, também estamos num ponto de inflexão no número de países que desenvolveram poder suficiente para se tornarem influentes nas relações internacionais... Porque é diferente pensar numa guerra entre dois países e pensar numa guerra global...Isso é o que os números estão a mostrar. Quando a paz está em permanente declínio, quando vemos que o número de conflitos é o mais elevado de sempre, quando olhamos para o número de países envolvidos em conflitos fora das suas fronteiras... Sem querer pôr medo na cabeça das pessoas, os números mostram que vivemos num mundo baseado em competição. E esta competição é normalmente apoiada pelos militares. Por isso o número dos conflitos é o mais elevado, o investimento militar subiu, especialmente na Europa... Todos estes números podem, naturalmente, causar ansiedade em algumas das pessoas mais pacíficas do mundo como os portugueses. .Portugal continua a ser o sétimo país mais pacífico num mundo que é cada vez mais menos pacífico. Falou do investimento militar na Europa. Estamos a ser pressionados não apenas pela guerra na Ucrânia, mas pelos EUA a aumentar os nossos gastos de Defesa na NATO. Mas o índice diz que não o estamos a fazer da maneira correta. Pode explicar?Este reinvestimento em defesa é, sem dúvida, uma tendência de mudança, que começou há cerca de dois ou três anos. A situação internacional criou uma situação em que muitos países percebem que existe uma ameaça real e que precisam, basicamente, como diz o velho ditado, preparar a guerra para alcançar a paz. Embora no Instituto para a Economia e Paz continuemos a afirmar que é possível investir na paz para criar também paz, que é o nosso conceito de paz positiva. Mas os países começaram a investir e a investir em grande. Nós estimámos que os custos da violência foram de quase 20 biliões de dólares no ano passado. Mais de 45% foi investimento militar, em segurança externa. Nós fizemos uma pesquisa específica este ano e o que vemos é que, a União Europeia como um todo está a investir 400% mais do que a Rússia no seu setor militar. Quatro vezes mais?Sim, investimos quatro vezes mais do que a Rússia, mas só conseguimos um resultado que é 30% superior. Ou seja, há um problema, talvez não sobre investir mais, mas investir melhor. Antes de a UE decidir reinvestir em Defesa e vir com os programas de rearmamento, havia problemas. A fragmentação da indústria de Defesa europeia, que não era competitiva, os problemas dos procedimentos internos, que não eram adaptáveis. Esses problemas ainda existem. Não é porque há dinheiro, porque há investimento, que investimos da forma correta. Por isso, vemos a mudança na tendência, mas também vemos que o investimento pode ser feito de forma melhor, gerando mais e melhor rendimento para o dinheiro que é investido. Precisamos de uma verdadeira união em Defesa.Estamos definitivamente a ver mudanças na forma como a UE está a abordar a defesa. Tornou-se “uma” prioridade, ainda não é “a” prioridade. Quer dizer, muitos serviços de informação na Europa estão a prever este potencial conflito antes de 2030, que era a data ou pelo menos o deadline que tinham estabelecido para estarem prontos. Os alemães, os dinamarqueses, os britânicos estão a dizer-nos que poderá já ser em 2029. Por isso já devia ser “a” prioridade. Há uma potencial ameaça, há análises feitas e a solução é que precisamos de estar preparados. Mas depois precisamos de ver como é que vamos fazer isto. O que é que já existe? Quão boa é a análise estratégica? Que tipo de investimento é preciso fazer? Quer fazê-lo separadamente, fragmentado? Ou quer aproximá-lo da NATO, segundo um planeamento de defesa e um projeto? Como vamos fazer isso? A UE não é, nem sequer no seu ADN, um aparelho de segurança e defesa como é a NATO. Estamos a passar por uma transformação sistémica e fundamental e estamos a tornar-nos uma organização multinacional de defesa ou mais orientada para a segurança. Mas isso não será de um dia para o outro. E depois também há a questão entre a NATO e a UE, com as pessoas a perguntar porque é que precisamos disto tudo na UE se a NATO já existe e já prometemos 5%. Há muitas questões em aberto, que estão a gerar ainda mais desta desestabilização. Mas voltando aos números do índice, o que vemos é um enorme reinvestimento em defesa, mas também vemos um tipo diferente de guerra. Estamos a ver tecnologias emergentes como drones, inteligência artificial, multidomínios, não é apenas terra, mas e ar, mas também espaço, também ciberespaço. Muitas coisas estão a evoluir muito rapidamente. Podemos achar que a UE está a evoluir lentamente. Mas olhe para o que aconteceu nos últimos seis, 12, 18 meses e vemos os marcos a serem alcançados num ritmo muito acelerado. Acredito que a UE está a acompanhar a evolução global. O índice é um ponto no tempo, não é dinâmico. Este ano já tivemos a guerra entre Israel e o Irão, o conflito entre Índia e Paquistão, que aliás vocês diziam que era um “ponto quente”. Olhando para os primeiros seis meses do ano, acha que o índice de 2026 vai ser ainda pior?O Índice Global da Paz, que foi produzido em 2025, é baseado em todos os dados recolhidos em 2024. Apesar de, internamente, o continuarmos a atualizar sempre que há novos dados. Mas precisamos de perceber que todos os indicadores, todas as tendências que estamos a ver, são sistémicas. Não vão mudar de um dia para o outro. Daí também que as soluções que propomos com a paz positiva. É uma definição sistémica de paz, é um investimento permanente em criar mais paz. Houve uma mudança de tendência, uma mudança do paradigma nas relações internacionais, focada na defesa como uma ferramenta para atingir os objetivos e promover os interesses. E isso também é sistémico e vai continuar. Não vejo sinais de que as coisas vão melhorar. No relatório do ano passado, tínhamos conflitos em 56 países. Já era o nível mais elevado desde a II Guerra Mundial. Em 2024, tivemos mais três, subindo para 59. Estes números ainda estão a crescer. Os níveis globais de paz estão a cair e não vemos sinais de um movimento sistémico ou um investimento que possa mudar isto. Quando medimos o índice de paz, medimos, antes de mais, o envolvimento em conflito. E estamos no valor mais alto de países envolvidos fora do país. Também medimos segurança interna. O que vemos aqui é, claro, mais demonstrações violentas, polarização política, instabilidade. E olhamos para o nível de militarização. Não prevejo uma mudança decisiva nesta tendência. O que também vemos no índice é o potencial para que conflitos menores de hoje, ou pontos quentes como lhes chamamos, se transformarem num grande conflito ou numa situação mais grave no futuro. E acho que um elemento chave para isso é um dos resultados do índice deste ano, que é perceber que o mundo está muito mais fragmentado do que estava há dez, 20 ou 30 anos.De que forma?No fim da Guerra Fria, tínhamos 14 países que tinham desenvolvido poder suficiente para influenciar as relações internacionais. Hoje há 34. E vemos como estes poderes regionais estão a afirmar essa nova posição dentro da sua área de influência. E, claro, essas áreas também estão em conflito. Então diria que temos quase uma... não é uma tempestade perfeita, mas a combinação perfeita, em que temos muito mais atores a querer desenvolver, a querer afirmar, aumentar e promover os seus interesses e a defender a sua posição, junto do reinvestimento em defesa.O Médio Oriente é a pior região no índice. E se for alcançado um acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza esta semana e isso levar ao fim da guerra. Um evento desse género pode mudar tudo?Somos um instituto de paz e vamos sempre apoiar qualquer acordo de paz para acabar com qualquer hostilidade. Acho que isso está no centro de tudo o que fazemos. Estamos a produzir estes dados, estamos a fazer estas análises, para garantir que as pessoas no poder possam tomar decisões informadas. A nossa missão é, basicamente, criar um mundo o mais pacífico possível, para que a humanidade floresça e desenvolva todo o seu potencial. Vamos sempre aplaudir qualquer iniciativa para a paz. Mas tanto a paz como a guerra são algo duradouro. Um evento pode ser aplaudido e talvez haja um influxo positivo, mas é preciso fazer muito mais para realmente alcançar a paz nessas regiões. Portanto, é um pouco como estar muito feliz com qualquer melhoria na paz ou qualquer iniciativa que possa gerar paz, mas ainda assim muito realista também no entendimento de que é necessário mudar sistematicamente estas sociedades. Digo sempre o mesmo quando apresento o índice global de terrorismo, por exemplo. Vemos as forças de segurança a garantir que o nível de impacto do terrorismo está a diminuir, que temos menos vítimas. E todos aplaudem isso. Mas essa não é a solução. É uma intervenção pontual que terá impacto nos números. Mas é basicamente ganhar tempo para transformar sociedades. E acho que essa conexão ainda não foi feita. Não vejo muitos conflitos no mundo em que passamos para a fase dois e retransformamos a sociedade, removendo todo o solo fértil para a radicalização, o extremismo, o confronto ou o que quer que seja que está a levar à violência. Acho que isso é algo que precisamos de entender na construção da paz, na qual investimos menos por exemplo na ONU. Vemos desinvestimento em desenvolvimento internacional. Precisamos estar cientes de que, em especial nas sociedades ocidentais, existe apenas um orçamento. Então, se chegarmos a 5% do PIB para defesa essa é uma quantia que não pode ser investida em outras partes do orçamento. Por isso, vamos precisar de desinvestir na saúde, na educação, nas questões sociais, que são outras áreas que também são muito importantes para a paz, a estabilidade e a coesão social, interna e externa. Portugal está no 7.º lugar da lista liderada novamente pela Islândia, tendo subido uma posição em relação ao índice de 2024. Mas estamos a assistir a instabilidade política em Portugal, a extrema-direita a crescer, a retórica contra os imigrantes... Veremos Portugal a cair no próximo ano por causa disso? Este é o tipo de coisa que nos faz afundar?Tocou diretamente no assunto. A resposta é sim, 100%. Mas precisamos de olhar com cuidado. Em primeiro lugar, precisamos perceber que no índice, há duas zonas que dizemos que são muito “pegajosas”. Se fores muito pacífico, permaneces lá. Se estiveres totalmente preso na armadilha da violência, também ficas lá. E depois há, claro os movimentos intermédios, mas geralmente é muito difícil sair da violência, sair do conflito, sair da guerra. E também é muito difícil perder os níveis de paz. Uma vez que estás lá em cima, vais permanecer lá. A segunda coisa é que, naturalmente, medimos três fatores. Os conflitos em curso, a segurança interna e os níveis de militarização. Olhando para Portugal, pode ver-se claramente este investimento renovado em Defesa, mas isso foi equilibrado por um maior investimento na construção da paz na ONU, por exemplo. É assim que se equilibra esta evolução militar, o que é bom. Mas vemos também um maior conflito interno. É uma realidade, vemos mais instabilidade política e tudo o que está à volta. Venho a Portugal há vários anos e cada vez que venho do aeroporto para o centro da cidade, vejo outdoors de eleições. Há eleições quase permanentes. Mas eu vi os dados antes da entrevista e o que se notam são pequenas mudanças, mínimas. Será quase marginal. Não é algo que vá tirar Portugal do top 10 nos próximos anos. Há um nível de resiliência na vossa sociedade que tem vindo a crescer há décadas. Portugal investiu em paz positiva e isso não é algo que possa destruir num ou dois anos ou por causa de uma ou duas decisões ou acontecimentos. Mas precisam de ter cuidado e continuar em investir em paz positiva para manter este nível de resiliência. Há um ambiente interno e definitivamente externo que está a influenciar os vossos níveis de paz, mas acho que desenvolveram resiliência suficiente até agora para absorver esses choques.