O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reúne-se esta quinta-feira, Dia das Nações Unidas, com o presidente de um dos países do Conselho de Segurança. A questão, para algumas chancelarias, é que o país - a Rússia - foi condenado pela Assembleia Geral pela sua invasão à Ucrânia, órgão que não reconhece a tentativa de anexação das regiões ocupadas e que apela para a retirada das tropas russas. E o líder do país, Vladimir Putin, tem um mandado de detenção emitido pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra. A iniciativa diplomática de António Guterres é a mais recente controvérsia em que a cúpula da organização está imersa. Kiev critica a presença do dirigente português em Kazan, capital da região do Tartaristão, onde decorreu a cimeira dos BRICS - uma “escolha errada que não avança a causa da paz”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros ucraniano. Também recordou que o secretário-geral “declinou o convite da Ucrânia para a primeira cimeira global para a paz na Suíça”, porém “aceitou o convite do criminoso de guerra Putin”. A Estónia e a Lituânia juntaram-se nas críticas a Guterres. Mas este terá considerado que a cimeira da organização que agora tem nove membros e representa quase metade da população e a possibilidade de “reafirmar as suas posições bem conhecidas sobre a guerra na Ucrânia e as condições para uma paz justa com base na Carta das Nações Unidas” - como disse o seu porta-voz Farhan Haq - se sobreporão às considerações de Kiev e dos países bálticos. Outro conflito, o israelo-palestiniano, tem gerado um foco de tensão do secretário-geral com Telavive. Desde o momento em que afirmou ser “importante reconhecer que os ataques do Hamas não surgiram do nada”, Guterres passou a ser visto com desconfiança, no mínimo, e mais recentemente como persona non grata pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. Tal como na guerra da Ucrânia tem defendido a soberania e a integridade territorial do país invadido e alertado para as condições dos refugiados e deslocados, no conflito israelo-palestiniano Guterres tem criticado a rejeição do governo israelita em reconhecer a solução dos dois Estados e mostrado preocupação com o drama humano na Faixa de Gaza. Para o ex-chefe da diplomacia de Portugal António Monteiro, a atitude de Israel foi “sobretudo um ato inútil” porque, diz, a crítica deve ser enquadrada naquilo que são as funções do secretário-geral. “Não se pode acusar o secretário-geral de coisas que o secretário-geral não fez ou que são responsabilidade dos próprios Estados. Não se pode exigir que o secretário-geral esteja a defender os interesses de cada um. O que ele defende é uma ordem internacional baseada exatamente na Carta das Nações Unidas”, em “estrito respeito à sua função internacional”, diz o antigo representante de Portugal nas Nações Unidas. Por outro lado, lembra que a Carta das Nações Unidas proíbe a pressão dos países ao secretário-geral. Victor Ângelo, que durante mais de três décadas trabalhou na ONU e chefiou várias missões, atingindo o posto hierárquico de secretário-geral adjunto, realça o perfil e o percurso de Guterres em oposição a anteriores secretários-gerais que também viveram momentos graves: o birmanês U-Thant com a crise dos mísseis de Cuba e a guerra no Vietname, o egípcio Boutros-Ghali e o seu conflito com a administração norte-americana e o ganês Kofi Annan e a invasão do Iraque. “Eram secretários-gerais que vinham fundamentalmente da área política e que sabiam que as Nações Unidas, e em particular o Conselho de Segurança das Nações Unidas, tem uma função primordialmente política. António Guterres vem mais da área humanitária, por isso preocupou-se mais com questões de outro tipo, as questões humanitárias e as questões do ambiente”, aponta. Mas o papel do chefe administrativo das Nações Unidas é mais amplo. E, para Victor Ângelo, é sua obrigação apresentar propostas com soluções políticas ao Conselho de Segurança, ainda que este órgão viesse a vetá-las. O que entronca no maior problema da ONU, o órgão que dá direito de veto a cinco países, em resultado da Segunda Guerra Mundial, à China, Estados Unidos, França, Reino Unido e à Rússia, que herdou o lugar da União Soviética. “A existência das Nações Unidas é fundamental e feita por vários sistemas, agências, programas e fundos, muitos deles extremamente eficientes e muito úteis para a comunidade internacional. A apreciação é positiva. O que não funciona é a parte mais política, o Conselho de Segurança”, considera Ângelo. “O Conselho de Segurança foi adquirindo cada vez mais características de um órgão, digamos, pouco democrático na medida em que os detentores de veto começaram a utilizá-lo na defesa dos interesses nacionais e não naquilo que poderia ser os objetivos comuns da organização. E, portanto, temos aí, de facto, um problema de funcionamento e eficácia, mas que não nos deve fazer esquecer que é o quadro das Nações Unidas que nos garante princípios básicos para a convivência internacional”, releva Monteiro. Como sair desta paralisia, uma vez que processo de reforma iniciado na Assembleia Geral teria de ser aprovado pelo Conselho de Segurança? “É ainda muito mais difícil criar um substituto das Nações Unidas”, organização que “continua a ser indispensável”, nota António Monteiro que, perante “uma das maiores crises que as Nações Unidas viveram até hoje”, advoga a “adaptação ao mundo real da atualidade, portanto tem de voltar a fazer uma reflexão que terá em conta alguma realpolitik, mas sobretudo que olhe para aquilo que é o futuro da humanidade”. Victor Ângelo trabalhou no Conselho de Segurança quando havia “muita esperança de que seria possível reformá-lo” ao nível da representatividade e na questão do veto. E se então, no final da guerra fria, “havia mais harmonia ao nível das grandes potências” e não foi possível avançar, hoje crê estar “numa situação que é praticamente um beco sem saída”. cesar.avo@dn.pt