Há uns meses escrevi sobre o almirante Doug Verissimo, que comandava o porta-aviões Theodore Roosevelt. A família veio do Pico, das Flores e de São Miguel para Falmouth no virar do século XIX para o XX, via New London e New Bedford. Um caso de sucesso destes de um lusodescendente nos EUA é surpreendente? De modo nenhum. Quem segue a imprensa luso-americana está sempre a encontrar histórias de sucesso em todas as áreas. Basta lembrar que o gabinete de Obama tinha três luso-americanos: o secretário de Estado da Energia, Prof. Ernest Moniz, neto de emigrantes micaelenses de Fall River e professor de Física no MIT; o fotógrafo Pete Sousa, de New Bedford, também neto de emigrantes açorianos; e David Simas, que foi diretor de Assuntos Políticos na Casa Branca e depois CEO da Fundação President Obama, filho de um casal emigrante, pai açoriano e mãe alentejana. Mas não se trata de modo nenhum de casos isolados. Recordo outro exemplo: Craig Mello, prémio Nobel de Medicina, descendente de açorianos da Maia, São Miguel. Hoje já pouca gente se lembra de uma grande figura da música, John Rapozo, compositor do famoso programa de televisão Sesame Street. Dessa mesma altura temos o cardeal Humberto Medeiros, arcebispo de Boston, que nem sequer era lusodescendente pois era mesmo emigrante - emigrou de São Miguel para Fall River com 15 anos. Mais para trás, temos o escritor John Dos Passos, um dos mais celebrados romancistas americanos da primeira metade do século XX, filho de pai madeirense. E John Philip Sousa, o celebrado autor das famosas marchas militares - que em Portugal eram conhecidas como “marchas desportivas”, pois antecediam os relatos de futebol na Emissora Nacional - também tinha uma costela portuguesa. Mas estes são apenas alguns nomes..A integração bem conseguida acaba por apagar a relação com Portugal ao fim de duas ou três gerações ou o apego às origens mantém-se? Antigamente era diferente. Muitas vezes nem sequer restava o nome. Machado deu Marshall: Pereira, Perry; Ferreira, Smith; Silveira, Green… E por aí fora. Volta e meia alguém descobre que uma pessoa famosa com um nome anglo era afinal de origem portuguesa. Estou a lembrar-me por exemplo de William Wood, talvez o mais importante industrial têxtil americano do início do século XX, que era português (da ilha do Pico, Açores), embora até hoje ninguém saiba explicar de onde lhe adveio o nome Wood. Agora é diferente. Os EUA mudaram imenso em termos de aceitação dos grupos étnicos não-anglos e isso reflete-se no modo como as culturas hifenizadas, incluindo a luso-americana, fazem presentemente gala das suas raízes e procuram (inventam, por vezes) maneira de se ligarem ou religarem ao país de origem, ou pelo menos a determinados aspetos da sua cultura, mesmo que já tenham perdido a língua..A maioria dos americanos de origem portuguesa é dos Açores. Virem de ilhas a meio caminho entre a Europa e a América é a explicação? Sim, é um facto. Não precisamente por estarem no meio do Atlântico, mas por os barcos da baleação americana terem sido forçados às mesmas correntes marítimas que obrigavam os portugueses nas rotas da Índia e do Brasil a parar nos Açores. Essas rotas que levaram os portugueses a povoar os Açores levaram também lá os barcos da baleação americana. Os açorianos aproveitaram a boleia desses barcos necessitados de tripulação a sair dos Açores porque a vida no arquipélago se tornara muito dura e sem futuro..João Rodrigues Cabrilho, Pedro Francisco, o brinde à independência em 1776 com vinho Madeira, a amizade do abade Correia da Serra com Thomas Jefferson. Estamos a falar de figuras e episódios curiosos ou ajudam a cimentar a relação dos luso-americanos com os EUA? Ajudam. Cabrilho e Peter Francisco têm servido de poderosos elementos de construção da identidade luso-americana. Ambos têm também constituído pomos de discórdia. No caso de Cabrilho, a comunidade hispânica reclama-o espanhol. E confesso que até há pouco eu lhe reconhecia alguma razão. Alterei recentemente a minha opinião graças às aprofundadas e rigorosas pesquisas do Prof. Paulo Afonso, do American River College, Califórnia, que descobriu novos documentos. Ele é a força motriz de um colóquio que terá lugar na San Diego State University no final de setembro, quando a sua pesquisa será debatida entre pares internacionais. Não poderei dizer o mesmo de Peter Francisco. É uma história longa sobre a qual já escrevi contando como o micaelense Edmund Diniz, relevante figura na vida política dos EUA nos anos 60-70 (foi Provedor da Justiça no caso da morte da secretária de Ted Kennedy), resolveu declarar que Peter Francisco era português, tendo desenrolado um engenhoso processo de argumentação nesse sentido. Pode bem ter sido de facto português, mas até hoje não conheço provas convincentes..Chegou aos EUA há mais de meio século, ainda antes de a democracia chegar a Portugal. Como viu a evolução da imagem de Portugal entre os americanos? Durante décadas manteve-se inalterável: basicamente inexistente. Pouca gente sabia onde Portugal ficava. Devo acrescentar que também é muito vulgar os americanos não saberem onde fica a Áustria, a Hungria, o Nepal ou a Patagónia. Por razões que não dá para explicar aqui, a disciplina de Geografia desapareceu há muito dos currículos escolares. Muito poucas universidades têm departamentos dedicados a essa disciplina. As Ciências Sociais supostamente deveriam tomar conta da área, mas no fundo desprezam-na. As consequências têm sido o que se sabe. Portanto, não era apenas sobre Portugal que recaía a ignorância. Todavia na última década a situação alterou-se imenso. Não quer dizer que a generalidade dos americanos já saiba que Portugal existe e onde fica, mas são muitos e altamente favoráveis os artigos e reportagens que sobre o nosso país têm surgido nos media americanos. Hoje Portugal é frequentemente referido como um lugar que vale a pena visitar e onde muitos pensam que vale a pena viver. Daí a acreditar-se que toda a América pensa assim vai uma enorme distância. Todavia a mudança tem sido significativa. Basta ver como resultado o aumento de turistas americanos em Portugal, inclusive nos Açores..Que papel tem a Brown e outras universidades com centros de Estudos Portugueses na promoção da cultura portuguesa na América? Há autores portugueses a serem lidos? Terei de colocar a minha resposta em contexto: há cerca de 3500 estabelecimentos de ensino superior nos EUA. Apenas um pequeno número inclui Estudos Portugueses e Brasileiros. Nesses núcleos, predomina o interesse pelo Brasil. Aliás, hoje até na Europa é assim. No entanto, desde há muito existem pequenas células dedicadas a Estudos Portugueses que têm produzido académicos de qualidade tornados figuras importantes da cultura portuguesa no mundo anglófono. A situação melhorou significativamente nas últimas décadas. Hoje há universidades com muito ativos núcleos de Estudos Portugueses (apenas dois são departamentos), várias revistas académicas dedicadas ao mundo lusófono e até editoras dedicadas a edições de obras portuguesas em inglês. Mas há também uma bem maior recetividade das editoras mainstream a obras sobre temas portugueses, bem como à tradução de livros de autores portugueses. Não poderemos dizer que atingimos a força dos Estudos Hispânicos, porque a comunidade de língua espanhola conta com mais de 60 milhões, enquanto nós não passamos de um milhão e pouco. Mas têm sido notáveis os avanços. Na Brown, nas últimas décadas produzimos cerca de meia centena de doutorados que hoje lecionam em universidades de todos os níveis, vários deles sendo figuras muito respeitadas no meio cultural norte-americano..Os americanos em geral conhecem o quê de Portugal? Sabem dos Descobrimentos? Sabem muito pouco. Mantêm a ideia criada pelo romancista inglês Washington Irving de que foi por os portugueses pensarem que a terra era plana que D. João II não apoiou a proposta de Colombo para chegar à Índia pelo Oeste. Mas esse mito permanece no mundo inteiro. Atualmente nas universidades pouca gente quer saber dos Descobrimentos, muito embora continuem a existir investigadores sérios a pesquisar e a trabalhar contra-corrente. Por mim, deliciei-me a lecionar anualmente um curso sobre a origem da modernidade em que os alunos liam os escritos portugueses relacionados com os Descobrimentos (em tradução inglesa) juntamente com os da mesma altura publicados na Europa ocidental e era um gosto vê-los constatar que Portugal desempenhou um papel pioneiro na mudança do paradigma teórico tradicional para um olhar empírico sobre o mundo. Nunca procurei impingir-lhes nada; eles liam os documentos - e liam mesmo! - e ficavam fascinados com o que eles próprios descobriam..Quando viaja a Portugal o que sente ser a visão que temos da América? Um destino de emigração, um aliado sólido, um país que admiramos pela pujança económica, científica e cultural? Ao longo dos meus cinquenta e tantos anos de América, essa visão não foi sempre a mesma. No início da década de 70 havia muita curiosidade da parte das pessoas em geral, mas muito desinteresse da parte dos chamados intelectuais. Depois do 25 de Abril, Portugal virou largamente esquerdista e anti-americano. A geração seguinte começou a distanciar-se do marxismo, a interessar-se pela cultura americana e a ignorar a cultura francesa até então dominante em Portugal. De há um quarto de século para cá, o interesse pela cultura americana cresceu exponencialmente (em particular, música, cinema, literatura, mas também indumentária e, infelizmente, até a fast-food (para ficarmos apenas por aí). A nova geração universitária começou a voltar-se para o que era produzido nos EUA. Ainda hoje é assim com as novas modas académicas oriundas dos EUA. A atitude pró-América atingiu, creio eu, o seu máximo no período Obama. Algo mudou depois da eleição de Trump e muito anti-americanismo voltou à superfície. Compreensivelmente no que a Trump diz respeito, mas por vezes confundindo-se questões por desconhecimento do modo de estar americano e das estruturas de fundo dessa cultura..Há vários congressistas de origem portuguesa, como Jim Costa. A comunidade tem interesse na política? Sim e não. As comunidades emigrantes, na sua grande maioria saídas de Portugal antes do 25 de Abril, eram alheias à política. Os seus descendentes foram-se integrando aos poucos e hoje vão adquirindo uma boa presença política a nível nacional. As comunidades da Califórnia têm conseguido ir mais longe do que as da Costa Leste. Conseguiram em tempos eleger o congressista Tony Coelho, que foi líder do Partido Democrata e que, se não fosse o seu problema de saúde, bem poderia ter sido presidente dos EUA. Na Califórnia há vários congressistas portugueses (chegaram a ser cinco). Na Costa Leste, a participação política portuguesa tem sido forte a nível estadual nos estados de Massachusetts e Rhode Island. Em Rhode Island, já foi até considerável, com portugueses a presidirem ao Senado e ao Comité de Finanças, o mais poderoso dos comités. O voto português continua a ser importante particularmente em Rhode Island, mas também no Sudeste do Massachusetts. Como nos EUA a ideia de que todo o poder é local não constitui apenas um slogan, as comunidades desses estados têm sabido chegar a Washington quando necessário. Mas devo acres- centar que em Portugal isso não é entendido, por mais que se tente explicar..Como se dividem os portugueses entre os dois grandes partidos americanos? Há diferença entre a comunidade que vive na Nova Inglaterra e a que está na Califórnia? Os portugueses em geral eram automaticamente democratas por serem católicos. Os WASP (White Anglo-Saxon Protestants) estavam do outro lado da barricada e os PIGS (Polish, Irish, Greeks and Slavics; depois, décadas mais tarde, Portuguese, Italians, Greeks and Spanish), sendo católicos, ou não-protestantes, situavam-se no campo político oposto. Hoje o cenário mudou. A igreja católica americana virou muito conservadora, pelo menos um importante setor dela. O aborto, sobretudo, tem sido um fator fraturante. Ao mesmo tempo, a ascensão económica dos emigrantes portugueses tem levado muitos para o outro lado da balança..Como olha pessoalmente para as Presidenciais americanas de 5 de novembro? O resultado vai definir o futuro dos EUA? Tenho escrito bastante sobre isso. Não quero ser alarmista mas nunca em 52 anos dos EUA presenciei nada semelhante ao que se está a passar. Nem a Constituição nem a praxis política americana haviam previsto o aparecimento de um energúmeno como Trump, que incarna a antítese de todos os valores que a América sempre apregoou. Ele consegue puxar até ao extremo os cordelinhos da legalidade do sistema para cometer todas as ilegalidades possíveis e ainda assim obter o apoio de cerca de metade do eleitorado. A situação é para mim incompreensível e, por mais que sobre ela leia, não consigo entendê-la. Há algo de visceral nos seres humanos que os leva a agir de modo não-racional (isto de um lado e do outro do espetro político). Qualquer tentativa de compreensão racional do fenómeno perde algo de essencial. Pelo menos a mim transcende-me..Qual é para si o grande legado dos EUA ao mundo? Era o da institucionalização de um sistema político que lidava bem com a animalidade humana regulando os seus eventuais abusos. Tinha falhas, é certo, mas a legislação e o sancionamento estatal conseguiam debelar crises e manter a ordem e o funcionamento democrático das instituições. Hoje não tenho a certeza se isso vai continuar a ser possível. Nunca, em mais de dois séculos e meio de história, nenhuma eleição chegou como esta tão perto de por à prova um sistema tão profundamente estruturado que parecia inabalável..Há um romance ou um filme que seja uma grande lição do que são os EUA? Pode sugerir títulos? Todos os filmes e livros americanos acabam de uma forma ou de outra contribuindo para se conhecer o país. Uns mais ou melhor e outros menos ou pior. Circula na Internet uma frase minha de há décadas: Tudo o que de positivo e negativo se diz sobre os EUA é verdade. E, se ainda não foi, vai ser. .Nestes seus 52 anos nos EUA o que sente em si que é fruto da experiência americana? Muito do que sou hoje aprendi nos EUA. Há trinta anos pediram-me em Portugal para numa conferência responder a essa sua pergunta e fi-lo com a maior das honestidades. Apanhei tão valentes bordoadas de um certo público que acabei nunca publicando esse texto por não ter vocação para masoquista. Se essas 30 páginas, onde com sinceridade e genuína honestidade me explicava em pormenor, provocaram uma reação tão negativa, imagine que agora lhe respondia à mesma questão em apenas meia dúzia de frases. Os nacionalismos são sérios e profundamente suscetíveis. Muitos dos que se atiram contra as fake news não se apercebem de que há verdades que por vezes doem e há que aceitá-las. .Uma última pergunta, muito pessoal: como foi aquela sua última aula em maio na Brown? Nos EUA não há a tradição da última lição. Por acaso, num curso interdisciplinar para finalistas de licenciatura (4.º ano) que lecionei durante 42 anos, eu fazia sempre uma “palestra final” integrada num programa que tinha a sua estrutura e lógica próprias. Ao terminar este ano o curso que lecionava pela última vez, fiz essa anual intervenção. Vários antigos alunos, amigos, e até os meus filhos, quiseram estar presentes. Seria necessária uma longa contextualização desse curso, e dessa última lição, para bem clarificar o propósito da referida palestra. No caso presente, bastará acrescentar que o curso tem a ver com a busca de uma ética para a modernidade, tema sobre o qual tenho escrito muito. Espero ainda ter ocasião de reunir em volume alguns textos meus sobre o assunto. A encerrar o volume, incluirei essa lição que é uma espécie de declaração de crenças e valores pessoais. Resumi-la aqui seria ridículo. No meu tempo de estudante em Portugal dizíamos que resumo de resumo dá chumbo. Hoje nem sequer há chumbos e nem o termo parece existir mais. Todavia continuo a ser contra os resumos excessivos.