Durante vários dias, Elon Musk voltou a virar as suas atenções para a sociedade britânica. Já o tinha feito no verão passado, quando a sua rede social, X, amplificou a desinformação sobre as causas dos tumultos da extrema-direita contra os imigrantes. Desta feita mexeu numa ferida por sarar: crimes sexuais a milhares de menores por parte de grupos de homens de origem paquistanesa, crimes que durante décadas foram as mais das vezes ignorados pelas autoridades para não criarem tensões ou serem acusados de racismo. Na véspera da passagem de ano, foi publicado no X um excerto de uma entrevista em que Elon Musk denunciava os “bandos de imigrantes violadores em Inglaterra”. Ao partilhar o vídeo, o maior acionista da SpaceX e da Tesla fez um apelo ao voto no Reform UK, o partido populista e anti-imigração de Nigel Farage. Desde então, Musk prosseguiu a sua campanha, que tem um alcance de dezenas de milhões de pessoas. “As violações em massa continuam no Reino Unido”, afirmou no dia 3. “Tem de ser feita justiça para as centenas de milhares de raparigas britânicas”, escreveu no dia seguinte.Com os meios de comunicação a recuperarem para a atualidade o que estava em causa, o sul-africano naturalizado norte-americano voltou à carga: “Estes são os mesmos meios de comunicação social que esconderam o facto de que um quarto de milhão de meninas foram -- e continuam a ser -- sistematicamente violadas por gangues de imigrantes no Reino Unido.”Não é verdade que a comunicação social tenha escondido o caso. Foi graças a uma investigação de meses do repórter Andrew Norfolk, do The Times, que em em 2011 começaram a ser expostas as histórias de abuso em Rotherham, na região de Yorkshire (nordeste de Inglaterra). “Foi uma história muito difícil de cobrir porque se era sobre raparigas britânicas brancas, normalmente com idades compreendidas entre os 12 e os 15 anos, que eram aliciadas e abusadas por homens que, à medida que o padrão se tornava mais claro, eram na sua esmagadora maioria de origem paquistanesa e muçulmana”, disse o jornalista à BBC, recordando que o jornal foi acusado de racismo e de "islamofobia". Também em 2011, uma reportagem do The Guardian na região de Manchester explicava o modus operandi dos crimes que em muitos casos envolviam "homens paquistaneses": aliciavam as jovens à porta de lojas e nas estações de comboio, oferecendo-lhes comida em primeiro lugar, e depois fazendo-as consumir álcool e drogas antes de as levar para locais em que tinham relações sexuais com homens.Quanto às 250 mil vítimas que Musk alegou, o número não encontra qualquer correspondência com números oficiais. A única pessoa a atirar para a praça pública tal dimensão foi o lorde Malcolm Pearson. O antigo presidente do UKIP (partido anterior ao Reform) propalou em 2019 a existência de “250 mil vítimas de bandos de predadores sexuais muçulmanos”, número que estimava por baixo.A realidade é que os crimes já aconteciam há muitos anos. A primeira pessoa a chamar a atenção para o tema foi a deputada trabalhista Ann Cryer, em 2002, ao denunciar que "homens asiáticos" se aproximavam de raparigas à saída das escolas no seu círculo eleitoral, Knightley, e que duas delas tinham sido abusadas. .Retrato "aterrador"Em agosto de 2014, um relatório independente da autoria da professora Alexis Jay, encomendado por Theresa May, então ministra do Interior, dá um retrato "aterrador" e conclui que em Rotherham, entre 1997 e 2013, pelo menos 1400 raparigas menores de idade, algumas com 11 anos, foram vítimas de exploração sexual. Mais: diz com todas as letras qual a origem dos criminosos. Em pelo menos dois casos os pais localizaram as filhas e tentaram retirá-las das casas onde estavam a ser abusadas, mas foram estes quem foram presos pela polícia. Noutros, foram as vítimas menores quem acabaram por serem detidas, por comportamento “embriagado e desordeiro”, e não os adultos abusadores com quem estavam. Além de violadas, traficadas e maltratadas, as meninas eram submetidas a uma terrível chantagem emocional: algumas foram regadas com gasolina e ameaçadas de serem incendiadas, outras foram ameaçadas com armas, obrigadas a assistir a “violações brutalmente violentas” e avisadas de que seriam as próximas vítimas se contassem a alguém. Os criminosos agiram em roda livre, e o relatório apontou o dedo aos autarcas e às chefias policiais. O mais surpreendente é que as autoridades estavam a par da situação, mas nada fizeram -- e não sofreram consequências, para lá das demissões que se seguiram à publicação do relatório. “As autoridades ficaram petrificadas com a possibilidade de serem chamadas de racistas", disse a ex-deputada Ann Cryer. Os direitos das jovens e o Estado de direito foram espezinhados em nome da paz social entre a maioria e as minorias. Isso mesmo foi concluído em 2010, num relatório da polícia de West Midlands, o qual comprovava que as autoridades sabiam que os bandos atuavam à porta das escolas. “O perfil predominante dos infratores, homens muçulmanos paquistaneses, combinado com o perfil predominante das vítimas, raparigas brancas, tem o potencial de causar tensões significativas na comunidade.” O documento esteve numa gaveta e só foi tornado público cinco anos depois, em resultado de um pedido de acesso do jornal local Birmingham Mail. Seguiram-se outros inquéritos e relatórios independentes noutras localidades. Em 2022, o governo conservador de Boris Johnson rejeitou um inquérito governamental ao que aconteceu em Oldham. Esta recusa foi tornada pública na quinta-feira, após o governo trabalhista ser alvo de críticas por ter decidido o mesmo. A ministra responsável pelo dossiê, Jess Philips, alega que os inquéritos devem ser realizados à escala local. .Ligação a Starmer“Quem era o responsável [do Ministério Público] quando os bandos de violadores podiam explorar jovens raparigas sem serem responsabilizados? Keir Starmer”, acusou Elon Musk, “pela sua cumplicidade no pior crime em massa da história do Reino Unido”. O homem que vai ficar responsável poor sugerir cortes na despesa federal dos EUA deixou ainda uma ameaça velada: "Os cobardes lamechas que permitiram a violação em massa de meninas no Reino Unido ainda estão no poder... por enquanto.”É factual que, entre 2008 e 2013, Keir Starmer foi diretor do Ministério Público e chefe do Crown Prosecution Service (CPS), o departamento de acusação. Mas não há provas, acusações ou sequer críticas de que o atual chefe do governo tenha participado no encobrimento que existiu entre as forças policiais, os eleitos locais e os serviços sociais de localidades como Rotherham, Rochdale, Oldham, Telford ou Oxford, entre outros. Na folha de serviço de Starmer está um número recorde de acusações (à época) de abuso sexual de menores. Está também a reversão de uma decisão controversa, em 2009, de não levar a tribunal o bando de Rochdale. Nomeou Nazir Afzal para chefiar a procuradoria no noroeste de Inglaterra e este, em 2011, levou o caso a tribunal. Antes de sair do cargo, Starmer deu novas orientações para facilitar futuras ações penais contra abusadores de menores. Até então, os queixosos podiam ser considerados não credíveis caso não se tivessem feito queixa imediata, se tivessem consumido drogas ou álcool, ou se tivessem manifestado determinado comportamento. Além disso, criou um painel para rever as decisões em que o CPS não apresentou acusação ou encerrou o processo relacionado com violações e abusos de crianças. “Este painel incluiu também, pela primeira vez, representantes externos. Reviu dezenas de casos que foram depois reabertos”, disse Afzal à BBC."Quando deixei o cargo, tínhamos aberto o maior número de processos de abuso sexual de menores”, disse Starmer à imprensa, na segunda-feira.Em 2013, estava o conservador David Cameron no n.º 10 de Downing Street, um relatório da Comissão dos Assuntos Internos afirmava que, ao contrário de outras agências, o CPS tinha “admitido prontamente que as vítimas tinham sido negligenciadas por eles e tentaram descobrir a causa desta falha sistémica e melhorar a forma como as coisas são feitas, de modo a evitar a repetição de tais acontecimentos”.“O Sr. Starmer -- concluiu o relatório -- esforçou-se por melhorar o tratamento das vítimas de agressão sexual no sistema de justiça criminal durante o seu mandato.”Na segunda-feira, Keir Starmer queria falar sobre os tempos de espera no Serviço Nacional de Saúde, mas acabou por ter de falar sobre o tema. “Aqueles que estão a espalhar mentiras e desinformação o mais amplamente possível, não estão interessados nas vítimas - estão interessados em si próprios." Continuou: “Já vimos esta cartilha muitas vezes: incitar à intimidação e às ameaças de violência, esperando que os meios de comunicação social as amplifiquem. Quando o veneno da extrema-direita leva a ameaças graves contra Jess Phillips e outros, então, para mim, foi ultrapassado um limite.” Musk disse que a ministra “defende o genocídio por violação” e que devia ser presa. Por conta destas afirmações incendiárias, os serviços de segurança britânicos passaram a monitorizar as publicações do bilionário, noticiou o Daily Mirror."Trata-se de chamar a atenção para si próprio. Trata-se de promover uma agenda política de direita e penso que também está a testar as águas do quadro legal e a forma como este se relaciona com as redes sociais”, comentou ao The Washington Post Andrew Chadwick, professor de comunicação política na Universidade de Loughborough.À ITV, a autora do relatório Jay disse que “aqueles que estão a agitar isto não se estão a concentrar no que interessa: as próprias vítimas”. E o que querem as vítimas? Segundo uma, citada pela Reuters, estas desejam ser ouvidas e que haja consequências, pelo que agradece a campanha de Musk. “Pode não ser agradável de ver, mas é útil [porque] alguém está a sensibilizar as pessoas e... a defender-nos. Sinto que fomos esquecidas”, afirmou.A vítima que falou à Reuters vivia num lar na região de Manchester quando os crimes ocorreram, há 15 anos. Numa ocasião, recorda, foi drogada e fechada numa casa durante quatro dias: “Não me conseguia mexer... e entrava homem atrás de homem.” Nove deles, de origem paquistanesa, foram condenados.