"O objetivo final de Putin é tornar a Rússia grande outra vez"

Ana Isabel Xavier, professora em Relações Internacionais (UAL e ISCTE) e coordenadora da linha de investigação de OBSERVARE, analisa as ambições do presidente russo, destacara resistência ucraniana e vê ainda todos os cenários em aberto.
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Ficou surpreendida com a escala da invasão da Ucrânia?
Sim. Por mais que se especulasse sobre as reais ambições de Vladimir Putin e o potencial alcance da modernização do exército russo e dos exercícios militares conjuntos com a Bielorrússia, na realidade estes oito anos de conflito na província [ucraniana] de Donbass eram de relativa baixa intensidade e circunscritos à tensão com os separatistas. A rapidez da escalada da retórica, a instrumentalização da propaganda e desinformação e a "inevitabilidade" que Putin alega para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia e o avanço para Kiev surpreendem até os mais realistas.

Qual será o objetivo final da Rússia com esta invasão?
O objetivo final de Vladimir Putin é tornar a Rússia grande outra vez, expandindo territorialmente a sua área de influência. Para tal, especula-se que a deposição de Zelensky e a substituição por figuras de confiança de Putin seria um dos meios. À semelhança do que já sucede na Bielorrússia e no Cazaquistão, ter um governo pró-Moscovo em Kiev que renunciasse à militarização, reconhecesse a Crimeia como russa e alterasse a Constituição para voltar atrás na adesão à NATO e UE seria um sucesso político inegável. Para além de querer ficar na história pela longevidade do seu mandato e recuperação do poderio russo, Vladimir Putin quer ainda ser reconhecido como um entre pares no concerto das grandes potências e esvaziar as democracias liberais, desconcertando a sua unidade e convergência. Neste momento, parece que os seus planos não estão a correr como esperava, subestimando claramente a resistência ucraniana, a contestação interna russa e a capacidade de união do ocidente.

A resistência ucraniana é a prova de que ao contrário do que afirmou Vladimir Putin a Ucrânia existe como Estado e nação?
A resistência ucraniana é, acima de tudo, a prova que a moral das tropas pode sair vitoriosa em relação à superioridade numérica dos combatentes e tanques. A população ucraniana está mobilizada e disposta a morrer pela sua pátria se isso significar que os seus filhos e netos vão crescer numa Ucrânia democrática e pró-ocidental. Este estado de alma está ausente nas tropas russas. Para além dos 30 mil a mil reservistas, é a população civil que está a improvisar armas e a vir para a rua lutar. Muitas mulheres, mães e avós, também. É absolutamente surpreendente. E a liderança de Zelensky é verdadeiramente inspiradora.

A NATO errou ao dar expectativas de adesão à Ucrânia?
Fazendo uma retrospetiva das relações NATO-Ucrânia, essa expectativa de adesão nunca foi verbalizada verdadeiramente. Após a dissolução da URSS, logo em 1991, a Ucrânia aderiu ao Conselho de Cooperação do Atlântico Norte. Em 1994, ao programa Parceria para a Paz. Em 1997, o diálogo e a cooperação aprofundaram-se com a assinatura de uma carta que estabeleceu a comissão NUC (NATO-Ucrânia), fortalecendo-se progressivamente ao ponto de, em 2016, ter sido definido um pacote de Assistência Abrangente para a Ucrânia. É com a invasão da Crimeia em 2014 que a NATO reforça o seu apoio a reformas abrangentes no setor da segurança e defesa, desenvolvimento democrático da Ucrânia e desenvolvimento de capacidades de defesa, incluindo ciberdefesa. Mas é a Ucrânia que se aproxima da NATO e corre atrás dessa expectativa: contribui ativamente para as operações e missões lideradas pela NATO enquanto Estado terceiro e aprovou a adesão à NATO como objetivo estratégico de política externa e de segurança em 2017. Neste momento, o facto de existir um conflito real em território ucraniano e uma disputa com separatistas deixa cair por terra qualquer perspetiva de adesão a curto prazo. Vamos aguardar pelo sinal que virá em junho, de Madrid, quando os aliados formalizarem um novo conceito estratégico de defesa da NATO e reponderarem a parceria estratégica da Rússia que vigorava desde 2010.

É a dissuasão nuclear que impede que a NATO enfrente a Rússia em apoio da Ucrânia?
O que impede a NATO de enfrentar diretamente a Rússia com tropas no terreno é o facto da Ucrânia não ser membro efetivo da aliança. Não sendo, não pode ser acionada a cláusula de assistência mútua. Para além disso, caberá aos aliados que são potências nucleares evitar a cartada nuclear a todo o custo. A via político-diplomática não pode ser esgotada, mesmo que o ceticismo sobre as negociações seja grande.

As ambições de Putin de refazer o império russo podem levá-lo a ponderar operações deste género noutros países?
Depende do desfecho da atual operação. As ambições existem e a vontade de recuperar os países que pertenciam à URSS é clara. Se a tomada de Kiev fosse rápida, sem resistência e com a passividade do Ocidente, Putin nem hesitaria em tentar a sua sorte para outros países como a Geórgia, Moldávia ou até Balcãs. Mas não é isso que está a acontecer. A NATO e a União Europeia saem revigoradas desta guerra, sobretudo do ponto de vista da segurança e defesa, quebrando tabus e pontos de inflexão. E uma coisa é invadir a Ucrânia que não é membro da UE e nem da NATO, e sobre a qual não se aplica nem o art. 42,7 do Tratado de Lisboa, nem o art. 5. do Tratado do Atlântico Norte. Outra coisa é agredir os Bálticos com ciberataques e invasão do espaço aéreo ou ameaçar a neutralidade nórdica. Já ninguém pode apagar o que está a acontecer, mas ainda há espaço para todos os cenários!

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