O discurso de Joe Biden na convenção democrata, em Chicago, foi mais um capítulo do longo adeus ao presidente dos EUA, que anunciou há um mês que desistia de tentar a reeleição e só passará o bastão ao sucessor ou sucessora em janeiro. No apelo ao voto na sua vice-presidente, Biden fez um balanço daquele que espera que seja o seu legado, com a economia mais forte e os EUA de novo na liderança mundial em política externa. Um legado que Kamala Harris quererá abraçar quanto baste (q.b.) - logo se verá até onde poderá divergir do atual inquilino da Casa Branca - e que o republicano Donald Trump procurará destruir..“O trabalho e as orações de séculos trouxeram-nos até hoje. Qual será o nosso legado? O que dirão os nossos filhos? Deixem-me saber no meu coração quando os meus dias acabarem. América, América, dei o meu melhor por ti”, disse Biden, citando a música American Anthem escrita por Gene Scheer (cantada mais recentemente por Norah Jones), que já tinha citado no dia da sua tomada de posse, em 2021. Mas afinal, que EUA deixa Biden para o próximo presidente?.Economia.Apesar de um crescimento da economia dos EUA (previsão de 2,2% este ano), de a inflação estar em queda e longe do pico (foi 9,1% e agora ronda os 3%) e de o desemprego estar nos 4%, muitos norte-americanos sentem-se frustrados por ver os preços acima do que estavam antes da pandemia. Mas, no geral, o próximo inquilino da Casa Branca herdará uma situação confortável, com previsões de queda das taxas de juro e uma série de investimentos que começarão a dar frutos. .A “Bidenomics”, como é conhecida a política económica da atual Administração, passa pelo investimento público, pela aposta na classe média e por promover a concorrência empresarial. Biden investiu mais de um bilião de dólares em projetos de infraestruturas, mas grande parte desse dinheiro ainda não foi gasto e estará à disposição do próximo presidente. Além disso apostou na produção de semicondutores e nas energias verdes, dois projetos entre outros que criaram milhares de novos empregos. .A área económica é uma das poucas em que Harris já fez alguns anúncios - uma das críticas que é feita à vice-presidente é que, no último mês, conseguiu relançar o ambiente de campanha, mas isso não se traduziu em políticas concretas. Tal como Trump, a ideia é baixar os preços e cortar nos impostos. A diferença está na forma como o fazem..À espera do que possa anunciar no discurso no último dia da convenção, amanhã, Harris já disse que quer ver milhões de casas a serem construídas, quer ajudar os compradores de primeira habitação, defendeu incentivos fiscais para as famílias e quer proibir a “manipulação de preços” dos alimentos. Políticas que vão depender não apenas de chegar à Casa Branca, mas contar com um Congresso democrata e disponível para a ajudar - Biden deixou um apelo para se recuperar o controlo das duas Câmaras..As boas previsões económicas esbarram no que Trump pode fazer se for eleito, com as promessas de aumento das tarifas aduaneiras a poderem levar ao aumento dos preços, tal como os entraves à imigração, com a eventual falta de mão de obra na agricultura. O republicano também já prometeu recuar em muitas das medidas aprovadas por Biden para combater o aquecimento climático, que acusa de serem responsáveis pelos aumentos dos preços da energia, querendo apostar em mais nuclear e combustíveis fósseis..Política externa.Os mais de 50 anos de experiência de Biden são especialmente relevantes em matéria de política externa, tendo liderado durante mais de uma década essa comissão no Senado e sido fundamental nesta área quando foi vice-presidente de Barack Obama..Após a presidência de Trump, marcada pelo isolacionismo dos EUA no mundo, Biden procurou recuperar a credibilidade da América, apostando na relação transatlântica. A NATO está mais forte do que parecia, com dois novos países e focada na ameaça russa e na guerra na Ucrânia. Biden tem sido o principal apoiante de Kiev, apesar de os seus esforços terem esbarrado com um Congresso de maioria republicana, tendo também conseguido a maior troca de prisioneiros com a Rússia deste o tempo da Guerra Fria. O apoio à Ucrânia pode ser o primeiro a cair com Trump..A guerra em Gaza e o apoio a Israel, criticado pela fação mais progressista do Partido Democrata, arriscam ser uma mancha no legado de Biden - que tem ainda tempo para conseguir um cessar-fogo. Tal como ficará para sempre ligado à retirada caótica dos militares norte-americanos do Afeganistão, que culminou no regresso dos talibãs no poder. .Imigração.É um dos temas da campanha, sendo usada como arma de arremesso dos republicanos contra Biden - e Harris. Desde que esta Administração está no poder, o número de entradas ilegais aumentou para números recordes: dois milhões por ano. Em 2024, os números estão em queda, porque Biden apertou os controlos na fronteira e cortou o acesso dos migrantes ao sistema de asilo..Não é um bom legado, mesmo depois de Trump, acusado de separar as crianças das suas famílias. Agora, o republicano promete “fechar a fronteira” e recorrer aos militares dos EUA para ajudar a expulsar os ilegais - Biden expulsou muito mais do que Trump -, depois de os seus apoiantes terem travado um projeto bipartidário no Congresso que podia ter ajudado a travar as entradas..Trump ataca Harris dizendo que ela era a “czar das fronteiras” e não fez nada, quando na realidade ela foi encarregada por Biden de lidar com as causas da imigração na origem, lançando programas nos países da América Central. Na campanha, a candidata democrata mostrou-se disponível para passar lei mais restritiva, lembrando que isso terá que passar pelo Congresso..Saúde e Educação.Biden chegou à Casa Branca em plena pandemia, lançando campanhas de vacinação e testes em massa. À boleia das medidas extraordinárias para enfrentar a covid-19, conseguiu alargar a cobertura de saúde e baixar os preços de alguns medicamentos. A medida terá efeito em 2026, beneficiando o próximo presidente. O problema é que muitos dos programas precisam de ter o seu financiamento renovado em 2025, algo que o próximo presidente também pode cortar. .A nível de saúde, teve que lidar com a decisão do Supremo Tribunal de revogar a lei Roe v. Wade que garantia o direito ao aborto. Harris ou Trump têm visões contrárias sobre o tópico, com a primeira a querer garantir proteção federal para as mulheres que escolhem interromper a gravidez e o segundo a querer deixar a decisão nas mãos dos estados - e a ser pressionado a ir mais longe e a proibi-lo em todo o país. .No Ensino Superior, o grande legado de Biden foi ter perdoado até dez mil dólares de dívida para milhões de estudantes - apesar de inicialmente não ser a favor desta medida. O Supremo travou-o, mas o presidente está a tentar novamente. Harris sempre defendeu o perdão destas dívidas, sendo que os republicanos consideram a medida injusta para os que não foram à universidade ou já pagaram as dívidas..Violência, armas e Justiça.Biden, com base em dados preliminares do FBI, alega que o crime violento (homicídios, violações ou assaltos) caiu 50% este ano, depois de ter alcançado um máximo durante a pandemia. Os números de tiroteios em massa, por exemplo, foi o mais baixo na primeira metade do ano desde 2020 - mas o ano ainda assim deverá acabar com mais do que um tiroteio destes por dia nos EUA..Por outro lado, a violência política está a aumentar e era um problema ainda antes do ataque ao Capitólio, em janeiro de 2021, ou da tentativa de assassinato de Trump, já durante esta campanha. As promessas de Biden de unir o país esbarram numa sociedade cada vez mais dividida..Enquanto senador, Biden conseguiu aprovar uma lei para proibir as armas de assalto na década de 1990 (que depois ficou sem efeito) e agora orgulha-se de ter aprovado a primeira legislação significativa sobre segurança de armas em 2022. Mas muito aquém dos que alguns esperavam - e o próprio filho foi condenado por compra ilegal de arma..Na Justiça, o presidente nomeou a primeira mulher negra para o Supremo Tribunal: Ketanji Brown Jackson. Nos cinco meses que restam de mandato, o presidente quer apostar numa reforma deste tribunal (que mantém a maioria conservadora), incluindo um limite de mandato para os juízes e um novo código de conduta. E quer garantir que não há imunidade para os crimes cometidos por um ex-presidente enquanto está na Casa Branca - em resposta à decisão que pode beneficiar Trump - porque “ninguém está acima da lei”. .susana.f.salvador@dn.pt