"Eu não quero ter uma audiência com o Presidente quando todos tiverem morrido.” O desabafo é do português João Tomás Bossa, de 39 anos, que praticamente desde o início da guerra em Gaza está a tentar tirar a família da sua mulher, palestiniana, do enclave. E desespera com a falta de resposta das autoridades, que até ao momento só conseguiram tirar a sua sogra do cenário de guerra. Os restantes vinte membros da família, entre os quais 13 crianças e um jovem de 19 anos, vivem numa tenda em Rafah, à espera de que a qualquer momento as forças israelitas possam lançar um ataque a essa cidade. .O desabafo de João ao DN surge quando se lembra do pai com dupla nacionalidade palestiniana e portuguesa, cuja mulher e dois filhos morreram num bombardeamento na véspera de saírem de Gaza. Só se salvou a bebé Nour. No final de janeiro, Ahmed Ashour foi recebido numa audiência por Marcelo Rebelo de Sousa. “Provavelmente o Presidente quis-lhe dar as suas condolências”, disse João antes do desabafo, explicando que não quer que lhe aconteça o mesmo. E pedindo para que Marcelo “faça o que puder enquanto as pessoas estão vivas e ainda há possibilidade de fazer alguma coisa”. .João Tomás Bossa nasceu e foi criado em Lisboa, mas vive e trabalha no Luxemburgo há dez anos. Foi lá que conheceu a mulher, a palestiniana Wafaa, de Khan Yunis. Estão casados desde 2019, vivendo com os três filhos que ela tinha de uma anterior união. Desde o início da guerra de Gaza, há cinco meses, que João se focou em tirar 21 familiares do enclave palestiniano, tendo pedido ajuda tanto às autoridades luxemburguesas como às portuguesas. Até agora, só conseguiu que a sogra saísse do enclave. .Para trás ficou o sogro, assim como um cunhado e uma cunhada e as respetivas famílias, além da mulher e filhos de outro cunhado, que vive na Bélgica. São seis adultos, um jovem de 19 anos e 13 menores, com idades entre os 17 anos e os 11 meses. A família saiu da casa em Khan Yunis logo no início dos bombardeamentos israelitas, refugiando-se numa escola das Nações Unidas ainda nessa cidade. Em meados de janeiro, com os israelitas a aproximarem-se, resolveram partir. “Dissemos para saírem, fugiram para Rafah, pagando balúrdios por uma tenta de três paus e um plástico. Pagaram 200 euros. Estão em campo aberto, com lama quando chove. Até nos esquecemos quão horrível é”, acrescentou. .A tenda da família em Rafah. “Pagaram 200 euros” por “três paus e um plástico”..João começou por enviar dois a três emails por semana ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português, ultimamente são quatro ou cinco por dia além de telefonemas e outros contactos que vai fazendo - incluindo a missão da Palestina em Portugal ou a embaixada de Israel em Lisboa -, tal o nível de desespero na procura por uma solução. “Envio fotos da minha família a dizer: olhem, estas são as pessoas que vão morrer se vocês não salvam. E não me digam que não vos avisei, porque eu estou-vos a avisar. E a culpa será também vossa.”.“Então e todos os outros?”.A primeira resposta do MNE português chegou só a 6 de dezembro, pedindo para que fossem enviados todos os dados dos familiares. Nome, idade, identificações... Coisas concretas num ficheiro Excel. “Como deve calcular, nós que estamos aqui aflitos, ao receber um email destes ficámos só a ver coisas boas a acontecer. Houve uma excitação brutal. Obviamente enviei toda a informação e depois silêncio de novo”, lamenta. “Eles só respondem ao que querem”, desabafa. Uns dias depois, e após uma pergunta sobre a saúde dos sogros, um outro contacto, da parte de alguém da embaixada no Cairo, a dizer que tinham os dois nomes deles para a retirada. “A primeira reação foi: então e todos os outros?”.A indicação era que os nomes dos sogros iam ser enviados a Israel, que avaliaria se podiam sair. “Vou ser sincero, nessa altura nem sequer pus em causa que houvesse algum bloqueio. Pensei que Israel quer aquilo tudo, logo todas as pessoas que um país terceiro quiser tirar eles vão dizer que sim”, admitiu. Mas Israel não autorizou a saída do sogro, não tendo dado qualquer justificação..“Porque é que é Israel que tem legitimidade para avaliar se o resto da minha família pode ser salva ou não”, questiona o português, insistindo que não está a pedir para eles irem ou sequer passarem por território israelita. “Enquanto isso, há notícias de pessoas que pagam cinco mil a dez mil dólares ou euros e podem sair”, lamenta. João acredita que Portugal está a ser penalizado pela posição do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que tem sido muito crítico da atuação de Israel na Faixa de Gaza. “Só isso explica que Portugal tenha tirado uma dúzia de pessoas e outros países tenham tirado centenas e continuem a tirar”, defendeu..Na altura em que os sogros estavam para sair, as comunicações com Gaza estavam já a tornar-se impossíveis. “O silêncio digital agravou o nosso medo”, contou João, já que foi-lhe dito que a sogra teria que estar no dia seguinte em Rafah e não estava a conseguir contactar com ela. Depois, veio a mensagem de que ambos estavam cá fora. João desconfiou, pediu para falar com eles, para ter fotos, enquanto o resto da família já fazia a festa. “Eu era o único que não estava a festejar e tinha razão.” Afinal ainda estavam a tentar que o sogro saísse. E não conseguiram..Wafaa, mulher de João com os pais, Amna e Mahmoud antes da guerra começar..“Nós praticamente forçámos a minha sogra a sair. Ela ainda hoje se penaliza. Sente medo e culpa, porque sente que os abandonou”, explica João. “O meu sogro foi mandado para trás, imagine a carga emocional. Sentiu-se rejeitado. Foi-se abaixo, não falava, recusava-se a comer o pouco que têm para comer. Só há umas três semanas voltou a ser a mesma pessoa, talvez pela presença dos netos”..João redobrou os esforços desde que a sogra conseguiu sair, tornando-se numa espécie de embaixador de outros que, como ele, têm família ainda em Gaza e não obtêm resposta. Ontem, enviou um email ao ministério em nome de sete pessoas, que representam um total de cem familiares. “Enquanto todos eles não estiverem a salvo ninguém poderá considerar que já fez muito, ou ainda, que fez tudo aquilo que poderia ter sido feito”, escrevem na mensagem, que inclui ainda dez perguntas para o “cidadão” João Gomes Cravinho..Questionado também pelo DN, o MNE remeteu a mesma resposta que tem dado sempre. “Mais de uma dezena de cidadãos com ligação a Portugal foram retirados da Faixa de Gaza com o auxílio das autoridades portuguesas, que continuam a trabalhar empenhadamente neste âmbito, acompanhando este processo que depende das posições assumidas pelas autoridades locais competentes.”.susana.f.salvador@dn.pt