Dennis Redmont no seu apartamento em Lisboa, diante de fotos com os papas João Paulo II e Francisco.
Dennis Redmont no seu apartamento em Lisboa, diante de fotos com os papas João Paulo II e Francisco.Foto: Leonardo Negrão

"Não é que vá ser um papa woke, mas Leão XIV vai pôr mais mulheres em lugares chave”

Como chefe da Associated Press na Europa do Sul, sediado em Roma, Dennis Redmont acompanhou três papas em dezenas de viagens. Escolha do primeiro papa dos EUA surpreendeu o jornalista americano.
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Ficou surpreendido com a eleição do cardeal Robert Francis Prevost como papa?

Foi uma surpresa, certamente, porque se dizia sempre que não podia nunca ganhar um americano. Mas olhando para o currículo dele, viu-se que preenchia todas as caixinhas. Preenchia a caixinha do missionário, a caixinha da experiência no Vaticano, como responsável pela nomeação dos bispos. Tem também a sua experiência nos Estados Unidos. É formado em Teologia e Matemática. Estudou em Roma e estudou nos EUA. Ele deu mesmo uma entrevista em que dizia que, quando estava em Peru, tanto podia tratar da eletrónica, como fazer manutenção numa garagem. Além disso, ele nunca insistiu na sua americanidade. E agora parece que é um americano 'modelo de exportação', pelo facto de ser também cidadão do Peru. Mas o mais interessante é como ele está a gerir a utilização das culturas. No primeiro dia falou italiano, espanhol e latim. No segundo dia falou em inglês só de improviso. Portanto, ele é comedido, é suave, nesse sentido. E vai ser prudente, porque esse sempre foi o perfil dele. Dizem que é extremamente inteligente. É formado em lei canónica, portanto conhece os regulamentos e a teoria da igreja. E no primeiro discurso, falou logo de sinodalidade, que é uma palavra difícil, mas que é a participação de todos os fiéis, além dos líderes da religião católica. É o poder de influenciar de baixo para cima. O papa Leão XIV é uma pessoa muito simples. Contaram-me que algumas pessoas de Chicago foram ter com ele no Vaticano e ele disse, ‘não sei se posso estar com vocês, porque estou nos nove dias de luto’, mas no final compareceu no restaurante para a sobremesa com o guarda-chuva, caminhando sozinho pela rua. E conhece bem Roma, porque já morou lá dois anos. Ele sabe conciliar. Uma mensagem visual que deu é o facto que ter adotado a vestimenta mais formal dos papas, ao contrário do Francisco, que apareceu à varanda apenas vestido de branco

E quanto ao facto de o papa ser norte-americano, há aqui uma mensagem política ou é apenas uma coincidência?

Eu acho que há duas questões em relação aos Estados Unidos. Uma é que os cardeais percebem que a Igreja dos Estados Unidos é muito forte. Não é só o país, é a Igreja. Nos últimos 20 anos o que vimos acontecer foi que quando se fazia o peditório na missa os pratos passaram a vir vazios, devido aos escândalos sexuais na Igreja. Mas essa época parece estar no fim. Portanto, a ajuda financeira pode ser importante. E o papa já deu uma lição, falando de dinheiro, de tecnologia e de coisas materiais. Esta pode ser uma primeira mensagem. A segunda mensagem é, certamente, a força do catolicismo dentro da vida política americana. O facto de Joe Biden ser católico e ninguém quase ter dado pode ser um sinal de que o novo papa pode ser americano mas ninguém vai dar por isso. Porque eu acho que ele vai ter muito cuidado com o uso das línguas, etc. Portanto, vai ser um moderador de Trump, mais do que um anti-Trump. Pode ser que ele responda rapidamente às provocações, mas pode ser também que não responda - pode optar por ficar em silêncio quando é importante ficar em silêncio. A terceira coisa são as suas raízes de Chicago e as suas raízes culturais. Muitas pessoas não sabem que Prevost é descendente de crioulos. Ele tem ascendência francesa e também afro-crioula. Esses antepassados vieram do sul dos Estados Unidos e instalaram-se em Chicago. Os jornais foram investigar e encontraram documentação de um seu antepassado que foi classificado como negro. Portanto, é um papa mestiço, apesar de não se ver. Um dos aspetos mais interessantes do novo papa são as raízes desses fios do melting pot americano - do ex-melting pot, porque agora chama-se salada de frutas. Outra curiosidade é que todos querem saber quais são as preferências desportivas do papa, porque toda a gente sabia que Francisco era adepto de futebol, do San Lorenzo, todos sabiam que João Paulo II gostava muito de esqui.

Este papa gosta de ténis, certo?

Este joga ténis. Mas o grande debate nos Estados Unidos é se no basebol ele é fã dos White Sox ou dos Chicago Cubs - que é um pouco como ser do Benfica ou do Sporting. Não pode ficar entre os dois. Mas ele conseguiu ficar entre os dois porque no dia da sua eleição as duas equipas reivindicavam o facto de ele ser seu adepto. O irmão diz que ele é do Chicago Cubs, outros dizem que é dos White Sox, etc. No que diz respeito a essa ligação a Chicago, temos ainda de recordar que Chicago é a cidade de Barack Obama.

E o papa é do South Side, como Michelle Obama…

É do South Side como Michelle e é bastante ligado a Chicago, que é uma cidade muito democrata. Mas pelo que li, ele votou nas primárias e votou republicano. Portanto, ele conseguiu ser bastante independente. No passado, já como cardeal, ele fez algumas alusões ao estilo de vida homossexual. Mas sobre aqueles que são os temas fraturantes da Igreja, o novo papa não parece ter um opinião totalmente definida. Portanto, ele deverá preservar essa independência, enquanto poder. 

"Vai ser um moderador de Trump, mais do que um anti-Trump. Pode ser que ele responda rapidamente às provocações, mas pode ser também que não responda - pode optar por ficar em silêncio quando é importante ficar em silêncio."

A escolha do nome Leão XIV também não será um acaso?

O facto de ele ter escolhido chamar-se Leão XIV é porque entende fazer encíclicas, múltiplas encíclicas, como fez Leão XIII. Além de ficar ao lado da classe dos trabalhadores. Quanto à imigração, eu acho que o debate é um pouco artificial. Porque os próprios pais de Jesus eram migrantes. Portanto, a característica da religião católica, ou do cristianismo, é de apoio aos migrantes. Até pode ser mais cuidadoso em termos de permitir a chegada de imigrantes, em termos de meios de seleção, mas, no final, o papa vai seguir os passos de Francisco em relação aos migrantes. Na segunda-feira ele vai ter um encontro com os jornalistas e aí vamos ficar a perceber um pouco mais. Vamos também ver que local escolhe para viver. Toda a gente está concentrada nisso. Eu, pessoalmente, posso estar enganado, mas acho possível que ele fique, por enquanto, nos seus apartamentos, que são no Vaticano, que nem é no Palácio Apostólico, nem na Casa de Santa Marta. Para fazer o seu próprio caminho. 

O Dennis conheceu e conviveu com três papas, inclusive Francisco. Aposta em Leão XIV como um papa de continuidade em relação ao seu antecessor?

Será de continuação em algumas coisas. Certamente na sinodalidade, nos imigrantes. Para mim há duas grandes incógnitas. A primeira é qual vai ser a sua atitude em relação à China. E aí depende de quem ele vai escolher como secretário de Estado. Se mantiver Parolin, então é um mandato para este continuar a política de conciliação com Pequim. Se não o mantiver ou se aguardar, pode ser que ele esteja a pensar noutra abordagem. Portanto, é possível que ele faça algum gesto para a China. A outra incógnita é a escolha de viagens que ele vai fazer. É possível que fique em Roma bastante tempo para perceber os mecanismos da administração interna, etc. Outra questão ainda são os problemas financeiros do Vaticano. Porque, como eu disse, depois dos escândalos de abusos sexuais na Igreja, as contribuições dos americanos baixaram muito. E os americanos e os alemães eram os mais ricos contribuintes. Portanto, tem que com ver qual vai ser a fonte de rendimentos e se ele vai continuar a vender as propriedades do Vaticano. Porque o Vaticano tem problemas de cash flow bastante relevantes - é um país que não cobra impostos, em que as receitas vêm sobretudo dos Museus do Vaticano. Não chega. Portanto, o papa tem de contar com a generosidade dos fiéis. E é possível que isso possa influir em alguns gestos dele para melhorar as finanças. Outra dúvida ainda é qual vai ser a atitude do novo papa em relação às zonas de maior crescimento da religião católica. 40% dos católicos estão hoje na América Latina ou América do Sul. E essa é a região, talvez, que ele vai privilegiar, aproveitando também o seu domínio do espanhol.

"O facto de ele ter escolhido chamar-se Leão XIV é porque entende fazer encíclicas, múltiplas encíclicas, como fez Leão XIII. Além de ficar ao lado da classe dos trabalhadores."

Robert Francis Prevost foi eleito papa na quinta-feira.
Robert Francis Prevost foi eleito papa na quinta-feira.

E usando a experiência de quem viveu 20 anos no Peru e tem até a nacionalidade…

Sim, tem aqui uma vantagem. A outra zona de crescimento é na Ásia. E estou muito curioso de saber o que aconteceu com os cardeais da Ásia, se eles tiveram alguma hipótese nas votações. Não se vai saber exatamente, mas vai-se perceber pelo menos o número de rondas de votos e vai-se ver se, por exemplo, o filipino Tagle, que era um dos favoritos, tinha alguma chance ou não.  Historicamente, os papas são eleitos conforme o que os cardeais acham que é o maior problema da igreja naquele momento. No caso de João Paulo II, sabia-se que era a Guerra Fria e o futuro da Polónia. E depois, de facto, houve cooperação com os Estados Unidos, na era Reagan, para mudar as coisas e houve, de facto, uma reviravolta. No caso do Francisco, o desafio era o desejo de alargar os horizontes e de ir para as periferias para garantir o crescimento da igreja. No caso de Leão XIV, certamente o desafio é trabalhar sobre as potencialidades dos americanos. Neste caso, o que pode ter funcionado contra as Filipinas é o facto de, como a igreja acha que o crescimento pode vir mais da Ásia, escolher um asiático podia ser uma desvantagem, porque um papa filipino era mais provocador para os chineses. Temos de nos pôr na mentalidade dos cardeais e ver o que é mais importante. Eu quero acreditar que a tradição missionária de Prevost foi muito importante e foram muito relevantes os 20 anos que ele passou no Peru.

Este é o quarto papa seguido que não é italiano, é um sinal de mudança na Igreja?

Com a minha experiência do papado, não acho que não ser um italiano seja uma questão. Afinal tivemos um papa italiano, João Paulo I, cujo pontificado só durou 33 dias. Além disso, Jorge Bergoglio era descendente de italianos. 

"No caso dos portugueses, vai ser muito interessante ver o que vai acontecer, por exemplo, com Tolentino de Mendonça, que é prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação."

Bergoglio, o papa Francisco, era culturalmente muito italiano.. No caso de Leão XIV, a mãe era de origem espanhola, o pai de origem franco-italiana. Nasceu nos EUA, mas viveu décadas no Peru. É muito mais um papa do novo mundo do que o antecessor?

Certamente é um papa do novo mundo, mas sobretudo ele deu mais um passo. Bergoglio sempre viveu na Argentina - mesmo se nunca visitou a Argentina enquanto era papa. Portanto, uma dúvida é se o novo papa vai visitar os Estados Unidos ou não. Não será talvez uma prioridade imediata, a menos que ele veja nisso a oportunidade de fazer algum gesto extraordinário. A igreja vive de gestos, de imagens e de símbolos. Todos se lembram da imagem do papa a rezar sozinho durante a covid. Essas são imagens muito poderosas. Tal como o papa visitar locais como o Sudão ou Timor-Leste, são gestos teatrais que atraem muita gente. Mas isso faz-me pensar noutra pergunta, que é: o que aconteceu com os portugueses?

Durante a votação? 

Sim, em quem votaram? E o que vai acontecer com eles? Porque eles eram um pouco os favoritos do Bergoglio, porque organizaram a Jornada Mundial da Juventude com sucesso. Portugal tem quatro cardeais eleitores, tem um bloco linguístico muito ativo, etc. Mas que tipo de mudança é que o novo papa vai trazer? No caso dos portugueses, vai ser muito interessante ver o que vai acontecer, por exemplo, com Tolentino de Mendonça, que é prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação. 

Voltando aos EUA, longe vão os tempos em que o catolicismo de John F. Kennedy era um problema e um tema da sua campanha presidencial. Já para não falar quando em 1928 Al Smith foi acusado de querer construir um túnel entre a Casa Branca e o Vaticano e perdeu as presidenciais. Hoje já não é uma questão, já não há essa desconfiança?

É uma questão diferente. Hoje temos os católicos “conservadores” - defensores, por exemplo, da missa em latim. Os tradicionalistas estão ainda muito a favor de regressar ao latim. Uma das últimas medidas do papa Francisco foi dizer que é preciso reduzir o uso do latim, porque se torna hermético para muitos fiéis. Mas os conservadores acharam que tinha que continuar isso. Portanto, os católicos agora dividem entre os tradicionalistas, conservadores também em relação às práticas sexuais, e os mais progressistas, como Joe Biden ou [a antiga presidente da Câmara dos Representantes] Nancy Pelosi. Há essa separação dos dois campos. O que eu acho que nunca vai mudar é a hostilidade para com a pena da morte. Os católicos vão continuar a condenar e a combater a pena de morte. Mas em relação à questão dos homossexuais, acredito que o novo papa vai deixar o tema repousar, antes de o retomar. Porque é uma pessoa paciente, como tem de ser alguém que passa 20 anos no Peru. E o facto de ele ser americano e ser tão amado na diocese do Chiclayo, acho que isso demonstra que ele tem a paciência para esperar. E depois, um dia, quando tomar uma decisão irá começar por dizer “como a Igreja sempre disse”. Por outro lado, uma decisão que irá com certeza tomar é a de pôr mais mulheres em lugares chaves. Já há algumas na administração do Vaticano. Daí até dar-lhes uma função religiosa, não sei, mas na administração, certamente, o número de mulheres vai crescer mais rápido do que com Bergoglio.

Isso tem a ver com a tal mentalidade americana?

Sim. E, essa mentalidade americana vai dar... Não é que vá ser um papa woke, mas vai ser um Papa que reconhece o profissionalismo da pessoa, seja masculina, feminina ou outra.

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