“Nós, descendentes dos cristãos ocultos japoneses, fazemos as orações que nos ensinaram no século XVI”
Qual o impacto do cristianismo quando chega ao Japão, em meados do século XVI, levado pelos portugueses? É uma transformação completa na sociedade japonesa?
Depois de um primeiro momento de expansão do cristianismo, surge como líder do Japão Toyotomi Hideyoshi. Ele queria unificar todo o país, que antes estava dividido e em guerra, e desde há muito tempo. E para unificar o país, uma das medidas que tomou foi eliminar o cristianismo. E os 26 mártires de Nagasáqui foram, em 1597, as primeiras vítimas dessa mudança de política oficial no Japão.
A grande maioria desses mártires, hoje santos da Igreja Católica, eram japoneses. Isso mostra a grande vitalidade do cristianismo no arquipélago?
Sim. Foram 26 martirizados, 20 japoneses, cinco espanhóis, um deles originário do México, e um português da Índia, São Gonçalo Garcia. Estas medidas extremas mostram a influência do cristianismo e a determinação de o contrariar para evitar mudanças no Japão.
A perseguição aos cristãos prossegue com os xóguns do clã Tokugawa. Mantém-se o objetivo da unificação nacional, o que passa por eliminar uma crença trazida por estrangeiros e vista com suspeitas?
Os Tokugawa reforçaram a linha de intransigência. Chegou um momento em que a proibição não era apenas para os padres estrangeiros, mas para qualquer pessoa que se declarasse cristã. Portanto, nesse sentido, a linha foi endurecida, digamos assim. Como a perseguição era muito rigorosa, os cristãos começaram a esconder-se, a camuflar a sua fé e assim por diante. A partir daí começa o período dos Kakure Kirishitans, os cristãos ocultos.
Como explica que na China, tenha havido uma grande dificuldade para Matteo Ricci e outros missionários cristãos evangelizarem, mas no Japão, graças sobretudo a São Francisco Xavier e os jesuítas, tenha acontecido um grande número de conversões, fala-se mesmo de 300 mil japoneses. Havia algo na cultura, no próprio xintoísmo, que é a religião autóctone, que tornasse mais fácil aceitar o cristianismo?
Acontece que nessa altura, em que os japoneses tiveram o primeiro contacto com o cristianismo, praticava-se já, além do xintoísmo, o budismo, que veio da Índia via China e estava bem estabelecido. Quando o cristianismo surgiu como uma nova religião, a maioria das pessoas sentiram-se atraídas por esta nova religião.
O cristianismo foi mais forte no sul do país, na Ilha de Kyushu, onde fica Nagasáqui, porque aí a presença portuguesa também era maior, ou porque, por motivos vários, nessa região os Daimios, senhores da guerra, se converteram?
A influência em Kyushu, principalmente em Nagasáqui, que se tornou o centro do cristianismo, foi devida à chegada dos navios portugueses, ou seja, da cultura portuguesa, e, obviamente, dos padres. Muitas pessoas, não apenas os Daimios, mas também quem os rodeava, tornaram-se cristãos, e isso teve uma efeito que ajudou à expansão da fé. Terem acesso aos portugueses, depois a outros estrangeiros também, fez mais fácil para os habitantes de Kyushu tornarem-se cristãos, porque estavam sempre a aprender mais sobre o cristianismo, por exemplo, a importância da Bíblia.
A adoção do cristianismo era uma forma de ascensão social?
Creio que não. Tornarem-se cristãos não lhes deu melhor estatuto. Mas deu-lhes sentido de comunidade. As pessoas passaram realmente a ter um conhecimento espiritual interno e isso fez com que elas, apesar das perseguições, se unissem, seguindo aquilo que os mais velhos diziam, mantendo a fé cristã dos antepassados. Sentiam a obrigação de manter o cristianismo, porque também era importante para os mais velhos, e para os mais velhos também se tornou importante transmitir a fé à nova geração.
Mas foi uma transmissão de fé sem a presença de padres, e durante dois séculos. Os chamados cristãos ocultos esqueceram algumas partes da fé?
Não se perdeu, porque os cristãos ocultos escolheram três tipos de líderes para manter a fé cristã. Ou seja, não havia padres, mas havia pessoas que substituíam os padres.
Não existia a hierarquia oficial da Igreja Católica, nem contactos com Roma, mas os cristãos ocultos criaram uma hierarquia que permitia a transmissão da fé. É isso?
Sim. O chokata, que mantinha os registos, o mizukata, que fazia os batismos, e o shukuro, o diácono. Isto é, mantiveram a tradição cristã quase na perfeição. Ou seja, tinham a tradição cristã, quem batizava, quem transmitia o calendário, por exemplo. Por exemplo, celebravam-se a Véspera de Natal e as cerimónias de Natal, ou quando alguém morria faziam-se orações, para que essa pessoa fosse salva. Confiavam-no a Cristo. Ou seja, mantiveram toda a estrutura, toda a tradição cristã enquanto tal.
Depois da expulsão dos últimos portugueses, em 1639, o único contacto do Japão com o Ocidente era com os holandeses confinados à ilha artificial de Dejima, no porto de Nagasáqui. Mas eram protestantes, enquanto os cristãos ocultos eram católicos. Totalmente isoladas, as famílias de Kakure Kirishitan fecharam-se como comunidade, quase uma comunidade secreta, ou havia conversões de outros japoneses, desde que longe dos olhos das autoridades?
Tinham de ter muito cuidado, mas em geral mantinham uma boa conexão com o resto da sociedade. Por exemplo, no caso de Nagasáqui, ou em Amakusa, uma rapariga, uma jovem de fora, podia vir e casar-se com alguém do grupo dos cristãos ocultos. Por vezes, ambos eram cristãos, outras vezes não.
Com a reabertura do Japão ao mundo, em meados do século XIX, como foi a descoberta dos cristãos ocultos pelo Vaticano?
Quando o Japão reabriu, são os missionários franceses que chegam primeiro, e a sua missão era, digamos, chamar os cristãos ocultos para a Igreja Católica. Mas houve uma grande parte que não regressou à Igreja, que decidiu não regressar oficialmente à Igreja, mas sim manter a tradição dos antepassados. Penso que uma das razões foi que os missionários dessa Era Meiji forçaram muito o povo, impuseram um estilo europeu que os cristãos ocultos não podiam aceitar. E assim passaram a coexistir duas comunidades católicas no Japão.
Ainda existem hoje no Japão comunidades que praticam o cristianismo como no tempo dos cristãos ocultos?
Já não. Há algumas décadas que não. Durante muito tempo ainda se mantiveram em Narushima, a minha ilha, nas Ilhas Goto. O meu avô era mizukata, a pessoa que fazia batismos.
Podemos dizer que Nagasáqui, onde são muito visíveis as igrejas na paisagem urbana da cidade portuária, continua hoje a ser capital cristã do Japão?
Na verdade, há cada vez menos habitantes em Nagasáqui, e também nas Ilhas Goto a população diminuiu bastante. Portanto, em Tóquio há agora muito mais católicos do que no resto do país.
Esta história da chegada dos portugueses, também dos primeiros missionários, sobretudo dos jesuítas, também das posteriores perseguições, e a sobrevivência dos cristãos ocultos, é algo que se ensina nas escolas japonesas?
Todas as crianças aprendem que São Francisco Xavier veio ao Japão e que transmitiu o cristianismo, mas a verdade é que o ensino dado a este respeito, sobre os cristãos ocultos, é muito pobre.
Sei que viu o filme Silêncio, de Martin Scorsese, sobre a apostasia de Cristóvão Ferreira, um jesuíta português perseguido no Japão. Considera que é um bom filme para mostrar a questão dos cristãos ocultos?
Um pouco. Talvez um pouco. Há algo da história dos cristãos ocultos que é transmitido no filme, dado a conhecer, mas parece-me que não é a história mais necessária, a mais importante. O que é importante é as pessoas, no Japão e fora do Japão, saberem é que nós, os descendentes dos cristãos ocultos japoneses, fazemos, as orações que os cristãos nos ensinaram no século XVI - como as orações a Maria -, e fazemo-las sem jamais ter havido interrupção. Neste sentido, a memória da época dos Kakure Kirishitans até aos dias de hoje foi protegida. As orações, por exemplo, que os cristãos aprendiam antes das perseguições, como o Pai Nosso, a Avé Maria, o Glória, tudo isso, foram fielmente guardadas. Passados 200 ou 300 anos, os cristãos ocultos ainda oravam com as mesmas palavras. O calendário litúrgico usava as palavras portuguesas para os dias da semana. Hoje queremos, sobretudo nas Ilhas Goto, proteger esse legado, tanto material, como a Gruta das Orações ou a praia onde se faziam os batismos, como espiritual. Por isso, há dois anos retomámos a cerimónia do Osazuke, o batismo, pela primeira vez em meio século. A parte espiritual deve ser preservada e relembrada, é a mais importante.