No século XVI, um mapa-múndi encarnou num bobo da corte: "O número de tolos é infinito" 

Um mapa europeu do século XVI mantém-se, há perto de cinco séculos, como mistério da cartografia. O informalmente apadrinhado Mapa-Múndi dos Tolos, junta à representação da então Terra conhecida, inúmeras referências de caráter enigmático. A licenciosidade permitida ao bobo da corte serviu ao autor anónimo do mapa para personificar naquela figura as maleitas do mundo.
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O número de habitantes no Continente Meridional é provavelmente superior a 50 milhões (...) totaliza uma extensão de 8,567 Km, maior do que toda a parte civilizada da Ásia, da Turquia até à extremidade oriental da China". No século XVIII, Alexander Dalrymple, geógrafo escocês descrevia desta forma a existência de um hipotético continente não descoberto no Pacífico Sul, a Terra Australis Incognita. Defensor da teoria da existência deste supercontinente no Hemisfério Sul, Dalrymple dele relatou forma e existência na sua obra de 1770-1771, An Historical Collection of the several Voyages and Discoveries in the South Pacific Ocean. A hipótese da materialização de uma vasta massa de terra meridional não configurava uma novidade no século XVIII, antes uma construção que ganhara forma na visão do mundo de Ptolomeu, no século II da nossa era, mais tarde, na Idade Média, na conceção das terras Antípodas e, posteriormente, em mapas renascentistas. A presença a sul de uma Terra Australis apoiava-se na ideia de que as regiões continentais do Hemisfério Norte deveriam ter concomitante correspondência em área àquela encontrada nos territórios do Hemisfério Sul. Uma configuração continental que ganhou expressão na obra publicada, em Antuérpia, a 20 de maio de 1570. Theatrum Orbis Terrarum, considerado o primeiro Atlas moderno, assinado pelo cartógrafo e geógrafo Abraham Ortelius, natural do antigo Ducado de Brabante, localizado no sul dos Países Baixos e norte da atual Bélgica. Nas 31 edições lançadas até 1612, o Atlas de Ortelius cresceria dos 70 mapas e 87 referências iniciais para 167 mapas e a tradução em sete idiomas. A Terra Australis Incognita apresenta-se soberana em Typus orbis terrarum, mapa-múndi oval do cartógrafo que, em 1575, seria designado geógrafo do rei de Espanha, Filipe II.

Nesse mesmo ano de 1575, uma representação planisférica da Terra, inspirada no mapa de Ortelius, destacava-se na obra do cartógrafo francês Jean de Gourmont. O mapa oval de Ortelius, com a sua Terra Australis, encena no trabalho de Gourmont um papel antropomórfico ao encarnar e substituir o rosto de um bobo da corte. Este, fixa diretamente o interlocutor, cada um de nós, com aquela que era uma das representações em mapa do mundo conhecido e suposto do século XVI. Da mesma época, crê-se que entre 1580 e 1590, um gravador em Antuérpia laborou no mapa que elevou a natureza sinistra do bobo da corte de Gourmont. Conhecido informalmente como o Mapa-Múndi dos Tolos, esta representação em planisfério do globo terrestre, com aproximadamente 35 por 48 cm, mantém-se até à atualidade como um mistério para cartógrafos e historiadores. "A incómoda verdade contada neste mapa é que o mundo é um lugar sombrio, irracional e perigoso, que a vida real é desagradável, brutal e breve. O mundo é, literalmente, um lugar tolo", escreve o jornalista e escritor Frank Jacobs, autor do livro de 2009, Strange Maps: An Atlas of Cartographic Curiosities. (Sobre Frank Jacobs não é de desmerecer uma visita aos seus artigos sobre mapas publicados no jornal The New York Times sob o título "Borderlines").

A propósito da origem e autoria do Mapa-Múndi dos Tolos, pendem há séculos diversas teorias. Ao bobo da corte, no seu trajar excêntrico, era permitida a crítica aberta ao poder através do uso do humor, da música, da narrativa, de trocadilhos, estereótipos e imitação. De acordo com Frank Jacobs no artigo The Fool's Cap Map of the World, publicado no site Big Think, ao bobo da corte permitia-se "um tipo de crítica só possível se fosse neutralizada pela aparência grotesca do louco - de preferência um anão corcunda e ligeiramente torto, ou seja, alguém que não deve ser levado muito a sério".

Entre as hipóteses sobre a autoria do mapa prepondera aquela que o aponta como uma criação do punho de Oroncé Finé, matemático e cartógrafo francês do século XVI, que em 1531 apresentou a sua versão da Terra Australis, um território sulcado de rios. Entre as inúmeras inscrições que encontramos no mapa, o nome do cientista gaulês destaca-se no canto superior esquerdo da imagem. Uma hipótese de paternidade da representação de um mundo encarnado num bobo da corte que é contrariada pela data de falecimento de Finé, o ano de 1555, então com 50 anos, cerca de três décadas antes do surgimento de Mapa-Múndi dos Tolos.

A acentuar o caráter enigmático do mapa estão as muitas frases epigramáticas com alusões mordazes e satíricas inscritas no tronco, cabeça e objetos empunhados pelo bobo da corte. Frases que lamentam a ostentação do mundo como a expressão em latim Vanitas, vanitatum et omnia vanitas ("Vaidade das vaidades, tudo é vaidade"); a eloquente citação retirada de Eclesiastes, livro do Antigo Testamento, e que podemos ler na parte inferior do mapa, Stultorum numerus est infinitus ("O número de tolos é infinito"); a frase creditada a Lúcio Aneu Cornuto, filósofo estoico romano do século I d.C., Auriculas asini quis non habet ("Quem não tem orelhas de burro?") ou a expressão latina Nosce te ipsum ("Conhece-te a ti mesmo"), a encimar o mapa.

Um rol de expressões que inclui a citação de Plínio, o Velho, retirada do livro dois da sua Naturalis Historia do século I: "Este é o mundo, e esta é a substância de nossa glória, esta é a sua sede, é aqui que ocupamos posições de poder e cobiçamos riquezas, e lançamos a humanidade em alvoroço e lançamos guerras, mesmo civis".

Ayesha Ramachandra, professora de Literatura Comparada na Universidade de Yale, detém-se longamente no Mapa-Múndi dos Tolos no artigo que lhe dedica na revista New Literary History, editada no âmbito da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. No texto How to Theorize the "World": An Early Modern Manifesto, Ramachandra não deixa escapar um paralelismo entre a realidade sintetizada no mapa do século XVIII e o tempo presente: "a imagem explora alegoricamente as relações entre o global e o local, o universal e o particular, ao conciliar a vasta abstração do mundo mapeado com a particularidade das pessoas que o habitam (...) O mapa chega-nos como um remanescente de uma época paralela de uma explosão de informações e uma nova consciência global, que enfrentou o desafio semelhante de integrar uma infinidade de novos detalhes num todo coerente".

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