No pós-11 de Setembro, uma polifonia de dor e sofrimento a oriente
Para milhões de brasileiros Simone Duarte foi a mensageira da desgraça. Em direto para a TV Globo, a então correspondente em Nova Iorque foi contando aos compatriotas o horror vivido naquela cidade norte-americana a 11 de setembro de 2001.
Apesar de só ter voltado a ouvir a emissão em 2018, a jornalista sentia há muito que, de alguma forma, teria de escrever sobre o tema. Em conversas era incentivada a fazê-lo. Para a autora, porém, não fazia sentido repisar o que tantos outros tinham relatado, mas ouvir quem mais sofreu as consequências do ataque terrorista. "Há uma história que não foi contada ainda: como é que esses três países - Afeganistão, Paquistão e Iraque -, os mais atingidos pela "guerra ao terror", sofrem com isso?" Em março de 2019, quando foi ao Paquistão participar num curso sobre segurança, encontrou três das sete vozes que protagonizam O Vento Mudou de Direção e o livro começou a tomar forma.
Na viagem ao vale do Swat a jornalista conheceu a psicóloga Feriha Peracha, a responsável pelo centro de Sabaoon, um programa de desradicalização de crianças e adolescentes usados pelos talibãs para cometerem atentados; o general Ehsan Ul-Aq, ex-diretor dos serviços secretos paquistaneses (ISI); e Baker Atyani, o jornalista palestiniano a quem Osama Bin Laden concedeu a última entrevista antes do sequestro de três aviões que embateram nas Torres Gémeas e no Pentágono (e o quarto que se despenhou na sequência do motim dos passageiros).
Foram nove meses para convencer a neuropsicóloga a deixar que três dos jovens contassem a sua história. Daí nasceu "Ahmer", um compósito das histórias dos três, embora mais centrado na história do homem que, aos 13 anos, foi enviado para uma mesquita com fiéis xiitas, vestido com um colete com explosivos, e nas mãos uma pistola e uma granada, mas não fez o que foi instruído. "No Paquistão as personagens são as mais opostas. A missão do Ahmer era no fundo destruir uma pessoa como o general e este tinha como missão destruir alguém como o Ahmer. Não podia haver combinação mais perfeita - e é horrível dizer isto - para mostrar como estes países foram arrasados."
DestaquedestaqueEm Nova Iorque, Simone Duarte deu ao público brasileiro a notícia do ataque às Torres Gémeas. No livro questiona a "guerra ao terror" com sete testemunhos, entre refugiados, um jovem treinado para executar um atentado e um ex-chefe da secreta paquistanesa.
A estas vozes Simone juntou os afegãos Rafi e Gawhar, refugiados na Áustria, e as iraquianas Gena e Faleeha Hassan, a primeira uma arquiteta exilada em Damasco, a segunda uma poetisa nos Estados Unidos. De todos, só Gena não foi ouvida em presença - três encontros no Líbano gorados, o primeiro devido à insegurança, os outros por causa da pandemia - mas de todas há relatos poderosos. "A premissa é que todos tiveram as vidas reviradas por causa do 11 de Setembro." À exceção do ex-chefe dos serviços secretos, da poetisa e do jornalista, Simone decidiu não revelar os apelidos dos restantes. Recorda que as pessoas abordadas tinham medo de falar e, mesmo quem anuiu, questionava: "Acha que vou ter algum problema em entrar nos Estados Unidos?"
Em dezembro de 2004, Simone viajou até ao Paquistão e atravessou a fronteira com o Afeganistão, tal como talibãs, elementos da Al-Qaeda ou simples populares o faziam, sem qualquer controlo. Passou um mês em viagem pela região. "Essa minha vontade de mostrar o outro lado talvez também tenha que ver com já ter ido à região e já ter visto ao longo destes anos todos o preconceito, e não só em Nova Iorque, onde eu vivi." Sobre ouvir os dois lados de uma história, algo que faz parte dos manuais do jornalismo, Simone Duarte lamenta que hoje tal se limite a ouvir porta-vozes. "A título de curiosidade fui comparar o porta-voz talibã com um porta-voz norte-americano e, no fundo, é a mesma coisa", diz.
"O meu ponto aqui, tanto que eu digo que é a minha memória das memórias deles, não é fazer um livro de política internacional, o grande objetivo é criar empatia, é que o leitor olhasse para estes sete protagonistas como seres humanos e não como números. E que não confundisse muçulmano com terrorista. São pessoas de carne e osso que também sofrem."
Ahmer, o menino que fintou o destino e em vez de se explodir acabou por se render a um militar, em resultado do programa de desradicalização que frequentou durante anos acabou por estudar sociologia e na conversa com a autora cita filósofos gregos da antiguidade, mas vê nos cartoons de Maomé "uma difamação ao profeta". Em abril deste ano, as declarações proferidas meses antes pelo presidente francês Emmanuel Macron, na defesa do direito à liberdade de expressão, e por extensão do direito à blasfémia, na ressaca da decapitação do professor Samuel Paty, foram um rastilho para dias de manifestações violentas no Paquistão.
Para Simone Duarte a explicação está no papel da religião na sociedade paquistanesa. "No islamismo é impensável ir contra Deus, mesmo para a pessoa que não faça cinco orações por dia. Para eles é muito difícil entender a nossa mentalidade tal como para nós é difícil entender a deles. Aí é que vale nós tentarmos ser um pouco menos etnocêntricos. Ao longo destes 20 anos de guerra ao terror temos uma visão de think tanks norte-americanos ou ingleses."
E a visão destes entrevistados é outra, é aquela de quem viu perder de perto alguns entre as centenas de milhares de mortos, entre Afeganistão (157 mil), Iraque (estimativa entre 308 mil e 600 mil) e Paquistão (70 mil). Por isso, "mesmo tendo fugido dos talibãs ou tendo odiado Saddam Hussein", consideram que a ocupação norte-americana "foi muito pior".
Ao concluir as entrevistas, a autora diz que se apercebeu "da dimensão, de que o estrago [do 11 de Setembro e da guerra ao terror] foi muito maior do que imaginava. "Acho que as consequências da guerra ao terror continuam e vão continuar ainda mais. E o caos que se vai instalar no Afeganistão agora, não só por causa dos talibãs, pode cair-se de novo numa situação de guerra interna pelo poder, que em geral acontece com o apoio de uma força externa."
Contas feitas, foram duas décadas perdidas? "Acho que não foram totalmente perdidas. Para a população das mulheres das grandes cidades afegãs houve a possibilidade de estudar, de trabalhar, não foi tudo perdido. Agora, eram necessários 20 anos? De a ocupação ter sido como foi? A quantidade de corrupção?", interroga-se.
Quanto ao Paquistão, o antigo chefe do ISI, que reconhece erros na estratégia de combate aos talibãs mas refuta as acusações de "duplicidade" por parte dos serviços secretos e não esconde o ressentimento em relação aos Estados Unidos, diz que se não houver a criação de dois milhões de empregos, política de crescimento económico e aposta na educação em massa, o país "continuará à mercê do extremismo".
Aos lisboetas com curiosidade sobre o livro, nesta tarde a autora está à conversa com o repórter Marcos Uchôa, da TV Globo, enviado ao Afeganistão, Iraque e Paquistão. A partir das 18h00, no Wel Well Center Café.