"Ninguém vai mexer um dedo para defender Kiev"
A posição portuguesa é a que sempre foi: "previsível e limitada". Dois antigos diplomatas analisam, no DN, todos os cenários de uma crise que ameaça fragmentar a Europa.
Decidimos que, visto que fazemos parte de uma mesma entidade política - a União Europeia - e aqueles que fazem parte, como Portugal, (...) de uma mesma aliança político-militar, da NATO, que a resposta [a Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russo que queria respostas separadas sobre a crise na Ucrânia] devia ser conjunta."
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A explicação de Augusto Santos Silva, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, encaixa no que Francisco Seixas da Costa [antigo embaixador na ONU, na OSCE, na UNESCO, entre outras colocações] define como "um comportamento tradicional nestas questões da NATO".
"Nós temos um poder de delimitada capacidade, estamos sempre muito propensos a juntarmo-nos aos consensos", daí que a "posição portuguesa", explica, tenha acompanhado "basicamente aquilo que foi o consenso que se generalizou dentro da NATO, em particular naquele sentimento, que tem que ver com o artigo 5.º, de que é preciso reforçar alguns países da orla próxima das zonas de conflito no sentido de evitar que durante uma escalada alguma fronteira no quadro dos países NATO possa ser atacada ou posta em causa".
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Para Seixas da Costa, "a posição do governo é uma posição normal, não diria que é seguidista, é uma posição até relativamente coerente com aquilo que são as posições tradicionais do Estado português. O governo fez o que tinha a fazer" porque "há países que se podem dar ao luxo de uma certa distância e de uma certa heterodoxia, mas Portugal não se pode dar ao luxo de heterodoxias".
Sem luxos diplomáticos, "a política externa e a política de defesa" vivem de uma "certa previsibilidade" um "bocado trágica que deriva de uma circunstância, que lamento ter constatado: que é a nossa fragilidade. Somos um país com grandes dependências no quadro internacional. Não somos, não temos as mãos completamente livres no plano internacional para atuar. Estamos limitados àquilo que são as condicionantes geopolíticas em que vivemos", explica.
Por outras palavras: "Portugal é um país alinhado com as maiorias, quer na NATO quer na União Europeia."
António Martins da Cruz, antigo embaixador de Portugal na NATO, entre várias colocações, sublinha a ideia de que o governo "não tem de assumir compromissos com a defesa da Ucrânia no caso de uma invasão russa, mas sim dar apoio aos países da NATO que são vizinhos da Ucrânia: a Polónia, a Roménia, os países bálticos e aí a NATO já decidiu tomar as medidas que sejam necessárias pelo que o empenho de Portugal está garantido".
E ainda que as "questões da Ucrânia não sejam uma prioridade da política externa portuguesa, Portugal sendo um país europeu, sendo membro da NATO e sendo membro da União Europeia (UE) está, e bem, a seguir a generalidade das posições assumidas na UE e como país da NATO está obviamente comprometido com as decisões".
No plano estritamente europeu, "Portugal juntar-se-á às sanções que a UE venha a assumir, caso isso aconteça", apesar de a União Europeia "estar manifestamente dividida sobre os compromissos a assumir. Ou seja, o entusiasmo não é o mesmo".
"Pode dizer-se", explica Martins da Cruz, que "enquanto o presidente francês tenta ter uma voz mais ativa neste processo, voz que aparentemente a federação russa não reconhece, a Alemanha não tem o entusiasmo que têm outros países ou não assume os compromissos que outros países assumem, por exemplo no que diz respeito ao envio de sistemas de defesa para a Ucrânia. Isto, obviamente, tem que ver com as dependências energéticas e económicas da Alemanha face ao mercado russo. O grande problema que se põe aqui são as sanções, qual é o tipo de sanções que a UE vai aplicar à Rússia em caso de invasão".
Alguma particular preocupação portuguesa? O antigo diplomata afasta do impacto imediato duas questões: as relações comerciais e o fornecimento de gás. "Portugal não depende do gás russo, ao contrário da Espanha, por exemplo, que ainda importa da Rússia cerca de 9% do gás. Segundo os números de dezembro, Portugal importa 50% do gás da Nigéria, importa 33% de gás dos Estados Unidos e importa o resto através do segundo gasoduto da Argélia que sai em Almeria. E o comércio de Portugal com a Ucrânia não tem significado."
Uma guerra à vista?
Martins da Cruz duvida e até tem uma quase certeza. "Já percebemos que, se a Ucrânia for invadida, ninguém vai mexer um dedo para a defender. E as respostas são todas subsequentes a uma possível invasão. O que significa, falando em bom português: a Ucrânia está neste momento entregue à sua sorte ou se preferir à sorte do Kremlin."
"Não creio que nenhum país NATO responda, a começar pelos Estados Unidos e a acabar nos países como a França, por exemplo, que dispõe das melhores forças armadas da UE e é o único país europeu com capacidade nuclear, mexa uma espingarda, um míssil, para a defesa da Ucrânia", sustenta.
A explicação está numa "formalidade", a ausência de "uma cláusula automática para a defesa" da Ucrânia "caso seja atacada". Não ser "membro da NATO e não ter acordos de defesa nem com os Estados Unidos nem, que eu saiba, com outros países europeus" deixa os ucranianos numa posição de fragilidade.
"Esta questão formal é o biombo atrás do qual se vão esconder os líderes do Ocidente. Porquê? Nenhum país europeu nem os Estados Unidos estão interessados em provocar um conflito, uma guerra com a Federação Russa, mesmo que seja localizada, por causa da Ucrânia", explica.
Seixas da Costa introduz outra abordagem, ideia partilhada por Martins da Cruz, a de que "a Rússia tem preocupações de segurança que têm de ser lidas pelos outros, mesmo por aqueles que não gostam dela. É caricatural, mas se amanhã o México fizesse um acordo militar com a China será que os Estados Unidos não eram capazes de reagir, de dizer qualquer coisa? E é preciso percebermos uma outra questão que é a circunstância de haver dentro da Ucrânia um substancial conjunto de populações ucranianas de origem russa, de russófilos e russófonos. Há aqui uma preocupação a que é preciso olhar. Isto nada absolve o regime russo, mas não debilita a legitimidade de segurança de um país".
Por palavras de Martins da Cruz: "Devemos tentar sempre ver quais são as razões de quem está do outro lado da mesa. É assim que se fazem negociações diplomáticas. A Rússia está preocupada com a sua vizinhança imediata, mas isto não vem dos soviéticos, vem de Catarina, a Grande. A hipótese de a Ucrânia se juntar à NATO, e abrir portas à instalação de mísseis dos Estados Unidos é considerado pela Rússia uma ameaça direta. Seria o equivalente, imagine-se, se os russos instalassem mísseis no México, junto à fronteira com os Estados Unidos ou então em Cuba."
Nem Seixas da Costa nem Martins da Cruz, que não acreditam na possibilidade, agora menos ainda, de a Ucrânia, "um país que tem uma estrutura e um equilíbrio de segurança muito frágil", entrar da NATO, recordam o caso da Crimeia.
"É um ato objetivo de abusos do direito internacional e da tomada de um país sem consequências de maior", afirma Seixas da Costa.
"O mundo não reagiu, por aí além, à ocupação da Crimeia, por que é que vai reagir, por aí além, se a Rússia tomar conta das províncias orientais da Ucrânia?", questiona Martins da Cruz.
Entre todas as dúvidas parece surgir uma certeza. "As sanções vão desunir, vão fragmentar, a União Europeia e vão ser, como tantas vezes acontece, o mínimo denominador comum que será possível arranjar entre os 27", até porque, como diz o embaixador russo na Suécia, numa entrevista, citado por Martins da Cruz, a preocupação é nenhuma: "Excuse my language, but we don't give a shit about all their sanctions."
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