O professor na Universidade Hebraica de Jerusalém e membro de um movimento que defende uma solução de dois Estados confederados esteve em Lisboa para um evento de diálogo entre israelitas, palestinianos e portugueses promovido pelo think tank alemão Candid Foundation. Ao DN não poupou nas críticas ao seu primeiro-ministro.O ataque de Israel ao Irão foi uma forma de silenciar o que se passa em Gaza e a forma como a comunidade internacional estava a começar a mudar de opinião em relação ao governo israelita?Sim. Quero citar Eran Etzion, antigo vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional de Israel, que aconselha diretamente o primeiro-ministro. No X, em hebraico, ele escreveu que [o primeiro-ministro israelita Benjamin] Netanyahu não apresentou, como casus belli, qualquer prova para os seus argumentos. A Agência Internacional de Energia Atómica disse que o Irão tinha feito isto e aquilo, todos ouvimos, e Netanyahu lançou o ataque uns dias depois. Mas não foi apresentada nenhuma prova aos israelitas. Não é claro que, ao abrigo da lei israelita, o casus belli tenha sido apresentado ao conselho de ministros. E parece que Israel foi para este ataque sem o apoio total dos EUA, sem a parceria dos EUA, que estavam na realidade no meio de negociações. Claro que [o presidente norte-americano Donald] Trump pode ver este ataque como algo que possa contribuir para levar o Irão para a mesa de negociações. Mas os peritos dizem que Israel, sozinho, não pode aniquilar o programa nuclear, só pode adiá-lo por uns meses. Que Israel, sozinho, não pode aniquilar a ameaça dos mísseis balísticos do Irão. E, como podemos ver, todos os dias, os israelitas estão a morrer por causa dos mísseis iranianos. E provavelmente Israel e os EUA, juntos, não podem mudar o regime no Irão. Não puderam no Iraque, não puderam no Afeganistão. Por que é que acham que podem fazê-lo no Irão, que é um país enorme, 75 vezes maior do que Israel, com todo um aparato de Estado e a tradição de antagonismo para qualquer poder estrangeiro, especialmente americano ou visto como proxy dos EUA, como veem Israel, que tenta manipular a sua liderança? Se há algo que vai unir os iranianos é a ideia de que alguém esteja a tentar decidir por eles quem os vai liderar, mesmo os que odeiam o regime.Então, o que ganha Netanyahu? Este ataque mudou a dinâmica em relação a Gaza. Trata-se do legado de Netanyahu. Trata-se do apoio internacional ao regime. Agora, todo o Ocidente vê o Irão como uma ameaça. E com razão. É um regime horrível, um agente do caos, um regime terrorista, com ayatollahs opressores que oprimem as mulheres... mais de mil pessoas são executadas no Irão todos os anos. Sabemos disso. Mas não somos nós que temos de decidir pelos iranianos. Este ataque faz de Netanyahu alguém que é agora apoiado pelo Ocidente. Alguém que era procurado no Tribunal Internacional por Crimes contra a Humanidade ou crimes de guerra, agora é apoiado pelo Ocidente. Ele mudou toda a dinâmica e pode apresentar-se como alguém que arquitetou o novo Médio Oriente. Destruiu o Hezbollah, mudou o Líbano, contribuiu para o golpe na Síria, atacou o Iémen e agora está a mudar o jogo no Irão. Quer talvez deixar um legado diferente do legado do 7 de Outubro e do maior massacre de judeus desde o Holocausto, que aconteceu em seu nome, sob a sua liderança e por causa da sua política falhada. Netanyahu também precisa de uma guerra perpétua para se manter no poder. E parece que Gaza está a desaparecer, por isso agora precisa do Irão. E depois do Irão? A Cisjordânia talvez? Quem sabe? Ele precisa de uma guerra para sempre. Ele disse que viveremos para sempre da nossa espada. Ele disse isso. E é claro que Israel deve ser sempre um país forte. Talvez agora seja um pouco forte demais para o seu próprio bem ou demasiado agressivo para o seu próprio bem, porque a única forma de Israel ter prosperidade e segurança é através da política diplomática. E a guerra deve ser utilizada apenas quando não existe outra opção e como meio de promover a sua política. Mas qual é a sua política? Devia ser paz, segurança e dignidade para os judeus, que só será alcançada com paz, segurança e dignidade para os palestinianos em qualquer situação. Seja qual for. Mas é evidente que o regime de Netanyahu não tem como objetivo, de forma alguma, dar segurança, paz e dignidade aos palestinianos.Critica Netanyahu com veemência, está a falar de regime, que não é um termo que se costuma usar para falar do governo israelita…Porque Netanyahu lidera um regime autoritário que está a tentar desmantelar toda a estrutura da democracia israelita. Tem vindo a desmantelar o judiciário em Israel. Tem sido criticado e atacado por toda a antiga elite da segurança, do poder judicial e do Parlamento. E ele faz, definitivamente, parte de uma onda de líderes populistas no mundo. Acho que Netanyahu nos causou este desastre. E não há forma de ele corrigir isso, porque não tem capacidade para isso. Ele está comprometido com este desastre e só sairemos desta dinâmica de desastres quando ele terminar a sua trajetória política. Não é que, se Netanyahu deixar o poder amanhã, todos os problemas de Israel fiquem resolvidos. Netanyahu é também, obviamente, um reflexo das tendências da sociedade israelita. Mas a situação não começará a resolver-se enquanto ele lá estiver. Mas acha que é possível a saída de Netanyahu? Não sente que é uma minoria em Israel? Ou acha que cada vez mais israelitas começam a pensar como você?Sim, eu sou uma minoria em Israel, mas não na minha oposição a Netanyahu. Desde 2011 que temos uma agitação constante em Israel. E, de facto, desde o início da sua carreira política como primeiro-ministro, em 1996, Netanyahu sempre polarizou e incitou as partes da sociedade israelita uma contra a outra. Hoje sabemos que isso é uma abordagem populista clássica, mas ele foi um dos primeiros. Na minha oposição a Netanyahu, estou numa posição boa. Durante anos, milhares de pessoas protestaram todas as semanas contra Netanyahu. Ele não conseguiu formar governo quatro vezes em dois anos. E eventualmente só o conseguiu fazer seguindo uma nova arquitetura de poder político, legitimando os elementos mais radicais, de forma a conseguir ter um governo. Ele não tem maioria, por isso precisa de uma guerra perpétua. Sou uma minoria em Israel, infelizmente, na forma como vejo os palestinianos. Porque os israelitas têm medo. Israel é um pequeno país no coração do mundo árabe e temos a nossa História judaica, que nos torna ansiosos, e sabemos que só podemos contar connosco. E o que digo é que temos responsabilidade pela realidade atual. Não significa que devemos ser atacados e massacrados como no 7 de Outubro. Nada justifica isso.E o ataque do Hamas não mudou a sua opinião em relação aos palestinianos?Não, não mudou. O que digo é que nada justifica o ataque, mas o 7 de Outubro saiu de uma realidade que foi criada em Gaza, em grande parte, por Israel. Claro que não foi só Israel. Mas o Hamas é uma reação específica à realidade em Gaza, na Palestina. O Hamas fazia parte da Irmandade Muçulmana e em nenhum outro país a Irmandade Muçulmana se tornou um movimento de resistência da mesma forma. Porque não havia ocupação estrangeira. Na Palestina, o Hamas reagiu aos desafios dos palestinianos. Não foi a esquerda em Israel que alimentou o Hamas com dinheiro e formas de crescer para se tornar um monstro tal, capaz de atacar os israelitas e fazer estas atrocidades. Foi Netanyahu que declarou o Hamas como um ativo.Para causar divisão…Para causar divisão, porque não queria uma solução política. E poder dizer que os palestinianos estão divididos, então não pode haver uma solução política. Mas, no entretanto, encoraja essa divisão. Ele disse que o Hamas era um ativo. Que se não queríamos um Estado palestiniano, então o Hamas era um ativo. Que tipo de ativo? Vimos no 7 de Outubro.E vê um futuro? Não está a viver atualmente em Israel, está a planear voltar? Saí em agosto do ano passado, para uma sabática. É normal os investigadores fazerem uma sabática a cada sete anos. Neste caso é a minha mulher, ela é a pessoa séria da família, é matemática. E eu também precisava de uma pausa do meu trabalho na Palestina e estar com a família. Na minha vida diária em Israel, em Jerusalém, eu atravesso as fronteiras todos os dias. É o meu trabalho. Eu falo fluentemente árabe e hebraico e conheço pessoas de todo o espectro do conflito. E é cansativo. Precisava de uma pausa. Por isso estou feliz por estar no estrangeiro. E estou feliz pelos meus filhos estarem a salvo. A minha mãe, as minhas irmãs, todos os meus amigos, toda a gente que conheço e amo estão agora em Israel, sob ameaça, tal como os palestinianos. Tenho amigos em Gaza, tenho amigos na Cisjordânia. O meu plano passa por voltar a Israel, mas não vou mentir, tenho dúvidas por causa da realidade, parece bastante pouco saudável no momento. Mas penso que se mais pessoas como eu tiverem dúvidas, então Israel ficará enfraquecido. Não é que eu seja especial, mas represento parte da sociedade que vê cada vez menos futuro. Não vê um futuro?Não sei o que o futuro reserva. O que sei é que há vários caminhos à nossa frente. Antes podíamos falar em gestão do conflito, hoje é claro que esse caminho já não existe. Então há a vitória, o plano decisivo do [ministro das Finanças, Bezalel] Smotrich, ou a paz, o caminho político. Israel tem de escolher entre limpeza étnica e paz, basicamente. Continuar a guerra vai eventualmente levar à deportação em massa dos palestinianos. Ouvimos cada vez mais pessoas em Israel falar disso abertamente. Podem dizer-se hoje coisas, em Israel, que antes não se podia. E a outra alternativa que os israelitas têm é um acordo regional, com o apoio dos americanos e dos sauditas, com uma reforma da Autoridade Palestiniana. O caminho com um acordo de paz vai trazer de novo calma, prosperidade e estabilidade aos israelitas e palestinianos, e um futuro partilhado. O caminho com a guerra, primeiro condena todos os cidadãos de Gaza, condena todos os reféns que ainda estão vivos, e condena a democracia israelita. Infelizmente a arquitetura de Netanyahu criou um ecossistema em que os israelitas se sentem encurralados entre uma falsa dicotomia de guerra, até à vitória total, ou aniquilação. E isso não é verdade. E acho que o mundo nos deve ajudar a sair desta falsa dicotomia. Portugal devia reconhecer o Estado palestiniano?Claro. Antes de mais, a Palestina foi declarada como um Estado em 1988 e muitos outros países no mundo reconhecem-no. Acho que a União Europeia também deve reconhecer. E, a partir daí, começar as negociações. É do interesse israelita ter um Estado palestiniano, porque esta é a única forma de podermos viver juntos. Neste governo, dizem que não há espaço para duas soberanias entre o rio e o mar. Por isso este governo é parte do problema. Mas acho que o mundo e Portugal devem reconhecer e agir para promover uma mudança positiva no Médio Oriente. E acho que o reconhecimento não deve ser apenas simbólico. Deve ser seguido de passos no terreno. E acho que se não o fizerem, vão sentir as consequências negativas, que também vão chegar à Europa, de crise económica, com polarização entre o Ocidente e o Mundo Árabe, com refugiados e mais problemas. Por isso, não é apenas a coisa certa a fazer. É também no melhor interesse de Portugal e da Europa. Defende uma forma diferente de solução de dois Estados. Quer explicar?A solução de dois Estados é a melhor forma de pôr fim ao conflito, mas temos tentado há muitos e muitos anos sem sucesso. A saída que apoio é tentar encontrar as barreiras para a solução dos dois Estados e contorná-las, talvez através de uma nova ideia, que pense para além do paradigma da separação. Isto acontece através de um movimento, do qual faço parte, chamado “Terra para Todos, Dois Estados, Uma Pátria”, que está a criar aquilo a que chamamos uma solução confederativa. Ora, isso não significa necessariamente que seremos como a Suíça, porque estamos no Médio Oriente e por causa de todo o sangue derramado. Mas se reparar na forma como trabalhamos, temos duas mulheres, uma palestiniana e uma israelita, que nos lideram. Temos homens e mulheres, velhos e novos, israelitas e palestinianos, de esquerda e direita de ambos os lados. É um grupo muito diversificado e enérgico que está a promover novas ideias e a criar um novo imaginário político em Israel. E devo dizer que a velha guarda da solução de dois Estados está a bloquear-nos. E não creio que seja apenas uma questão de conteúdo e de valores. Penso que muito disto tem a ver com hegemonia, estruturas existentes e dinheiro. E todos nós, exceto talvez as líderes e três ou quatro jovens que nos ajudam, somos voluntários. Não procuramos o poder, não procuramos o dinheiro, não queremos ser políticos. Todos temos empregos e carreiras. Somos voluntários e só queremos ajudar a velha guarda da solução de dois Estados a ultrapassar as barreiras. São parte do problema e perpetuam-se. Tivemos a separação em Gaza e para onde é que isso nos levou? Ao 7 de Outubro.