"Nenhum líder ocidental conhece melhor Putin do que Guterres"

Os autores da biografia de António Guterres intitulada <em>O Mundo Não Tem de Ser Assim</em> analisam a reação do secretário-geral da ONU à invasão da Ucrânia pela Rússia. Pedro Latoeiro e Filipe Domingues acham que esteve bem.
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António Guterres surpreendeu-vos ao criticar diretamente a Rússia pelos acontecimentos na Ucrânia?
Pedro Latoeiro (PL):
O que teria sido surpreendente era não o ter feito, perante uma invasão manifestamente ilegal, desencadeada enquanto decorria em Nova Iorque uma reunião de emergência do Conselho de Segurança, presidida pela própria Rússia, e além do mais quando Putin, no anúncio da ofensiva, tenta justificar a guerra invocando os direitos à autodeterminação e à legítima defesa previstos na Carta das Nações Unidas. Por outro lado, Guterres teria de ser sempre vocal, pois os combates na Ucrânia representam duas das maiores dores de cabeça que o secretário-geral da ONU pode ter: uma total paralisação do Conselho de Segurança à la Guerra Fria, e uma ameaça de conflito nuclear, que ficou bem patente logo nas palavras iradas de Putin e que já escalou perigosamente.

Há nesta frontalidade do antigo primeiro-ministro português algo de novo em relação aos secretários-gerais anteriores? Guterres fez história?
Filipe Domingues (FD)
: O que é original - mas que já se esperava que acontecesse neste segundo mandato - é um certo regresso às funções primordiais do secretário-geral da ONU: intermediação de conflitos entre grandes potências. Precisamente pelas suas posições independentes e denúncias, o sueco Dag Hammarskjold, segundo secretário-geral e fundador do "ativismo" que hoje esperamos do principal responsável das Nações Unidas, conseguiu ter problemas com os Estados Unidos, França, União Soviética e Reino Unido. Já depois da Guerra Fria, o próprio Kofi Annan falou publicamente contra a invasão norte-americana do Iraque em 2003, tendo protagonizado, juntamente com o seu adjunto Mark Malloch-Brown, vários embates com a administração Bush.

Como tinha sido até agora a relação de Guterres com a Rússia?
PL: A relação é positiva desde o primeiro dia, até porque Guterres foi eleito secretário-geral durante a presidência russa do Conselho de Segurança e o representante do Kremlin na ONU, Vasily Nebenzya, é o mesmo desde 2017. Ainda no ano passado, Guterres visitou o país a convite do governo e nessa ocasião reuniu-se com Putin e recebeu um doutoramento honoris causa do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo. Os contactos são naturalmente regulares e dias antes da invasão da Ucrânia houve até uma reunião por videoconferência com o ministro Lavrov. Guterres sempre teve a ideia de que não há segurança internacional sem a participação da Rússia, um membro fundador da ONU que tem poder de veto e é responsável por uma fatia relevante do orçamento geral.

O novo método, mais transparente e democrático, que levou à sua eleição em 2016 dá a Guterres legitimidade reforçada para enfrentar até um peso pesado como a Rússia de Vladimir Putin?
FD: Apesar da eleição ter sido decidida, como todas as anteriores, pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, é inegável que António Guterres goza de uma legitimidade sem precedentes, fruto da visibilidade e da participação que a sociedade civil teve no processo. No entanto, esta legitimidade não significa qualquer reforço dos seus poderes reais, que não foram revistos nem atualizados. Adicionalmente, António Guterres não deixou de ser o líder de apenas um dos cinco principais órgãos da ONU, o Secretariado, pelo que o efeito prático das suas declarações públicas e decisões internas continuará limitado. Tal como aconteceu com os seus antecessores, a prioridade é conseguir trabalhar com o Conselho de Segurança.

O outro lado da questão: depois desta crítica direta a Moscovo, Guterres vai ter condições para mediar negociações entre a Rússia e a Ucrânia ou até entre a Rússia e o Ocidente?
PL: Entre os líderes ocidentais em funções, depois da saída de Merkel, ninguém conhece melhor Putin do que Guterres. Enquanto primeiro-ministro, defendeu que NATO e Rússia deviam evoluir para uma aliança e no final dos anos 90 chegou mesmo a ser ele a figura escolhida por Putin para entregar ao presidente Clinton uma mensagem sobre o Tratado dos Mísseis Antibalísticos. Enquanto alto comissário para os refugiados, foi dos poucos funcionários internacionais autorizado a entrar na Ossétia do Sul no verão quente de 2008, já com Lavrov como ministro dos Negócios Estrangeiros. Como secretário-geral da ONU a relação manteve-se próxima. Guterres é, porventura a par do Papa, o único intermediário credível e capaz para essas futuras negociações, cujos pontos cimeiros da agenda terão de ser um cessar-fogo e o acesso e a segurança das agências humanitárias ao terreno.

Dos outros pesos pesados do Conselho de Segurança, nomeadamente Estados Unidos e China, algum terá ficado especialmente agradado com a frontalidade de Guterres ou pelo contrário agora temem que um dia se vire contra eles também?
FD: As declarações de António Guterres terão sido ouvidas com a máxima atenção em Pequim, por fornecerem um possível prognóstico sobre qual seria a reação do secretário-geral a uma eventual tentativa de reunificação com Taiwan pela força. Sempre defendemos que este seria possivelmente o dossier mais difícil para o segundo mandato de Guterres, até porque se hoje já é claro que os Estados Unidos não irão intervir militarmente em caso de invasão russa da Ucrânia, não é tão certo que não o façam caso o Exército de Libertação Popular da China decida atravessar o estreito de Taiwan - que ainda tem reconhecimento internacional de quase 15 Estados, incluindo a Santa Sé. Ao mesmo tempo, o próprio Guterres não terá ficado indiferente à reação do Representante Permanente da China no Conselho de Segurança à invasão da Ucrânia: "A China defende a paz, nos seus próprios termos".

A ONU vai sobreviver a esta crise ou tem de ser refundada para refletir o mundo atual e não os vencedores de 1945, o ano da sua fundação?
FD: Um veto da Rússia pode sempre ser ultrapassado na Assembleia-Geral, através da resolução Uniting for Peace. De qualquer forma, estamos diante de um possível ponto de inflexão para as Nações Unidas. Ao contrário da NATO, cujos limites de intervenção estão bem definidos, a ONU move-se num terreno político mais incerto, encontrando-se num momento make or break, onde pode fazer prova de vida e sair fortalecida ou cair numa crise irreversível. Outro risco-limite, ainda que improvável, é o da Rússia não ser simplesmente afastada do sistema, como alguns Estados e analistas já defenderam, mas o de Moscovo sentir-se incentivada a sair pelo próprio pé, desencadeando a criação de um modelo de organização internacional paralelo ao das Nações Unidas. O reforço de presença chinesa nas várias agências e fundos da ONU nas últimas décadas, em especial no peacekeeping, retira força a esta hipótese, mas não é de excluir a possibilidade de ainda virmos a assistir a uma fratura - auto-infligida ou não - que poderá levar a um novo corpo na nova ordem internacional, assente mais em princípios de soberania e de não ingerência nos assuntos internos dos Estados, à imagem e semelhança dos valores e interesses dos adversários do Ocidente liberal.

leonidio.ferreira@dn.pt

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