Há quatro anos, Joe Biden venceu as presidenciais dos EUA porque voltou a unir o Partido Democrata, manteve um apoio elevado entre os afro-americanos, foi capaz de apelar ao centro e conquistar independentes, continuou a ter as mulheres do seu lado e recuperou parte do voto masculino que Hillary Clinton tinha perdido em 2016, além de reforçar a votação entre os eleitores com mais educação..Esta foi a conclusão de um estudo do Pew Research Center em 2021 e esta é uma fórmula que Kamala Harris terá de afinar, se também quiser derrotar Donald Trump - melhorando também entre os eleitores latinos e os que não têm curso superior. “Não se deixem enganar, será uma luta”, disse o ex-presidente Barack Obama na Convenção Democrata, em Chicago, avisando que a corrida será renhida, para lá do recuperado entusiasmo após a desistência de Biden..Desde Bill Clinton, em 1992, e com exceção de George W. Bush, em 2004 (no rescaldo dos atentados do 11 de Setembro), que os democratas têm vencido sempre o voto popular nas presidenciais. Mas nos EUA as eleições são indiretas, servem para escolher os membros do Colégio Eleitoral, razão pela qual Bush, em 2000, e Trump, em 2016, acabaram na Casa Branca apesar de terem tido menos votos a nível nacional do que Al Gore e Hillary Clinton..Uma das razões da vitória de Biden em 2020 passou pela elevada participação - 66,6%, mais 6,5 pontos percentuais do que nas Presidenciais de 2016. O democrata conseguiu 81 milhões de votos, mais 15 milhões do que Hillary quatro anos antes, sendo que o próprio Trump também melhorou o resultado, ganhando mais 12 milhões de votos..A vitória de Harris dependerá da capacidade da atual vice-presidente de mobilizar o partido e os seus eleitores. Um mês depois de Biden ter desistido da corrida a seu favor, o cenário parece hoje mais favorável, com o entusiasmo a traduzir-se no registo de um maior número de eleitores democratas ou, dos que se registaram como independentes, de jovens e mulheres - o que poderá também ser boas notícias para Kamala. Eleitores que não pareciam mobilizados com Biden, que em 2020 tinha sido capaz de recuperar votos democratas que em 2016 tinham ido para terceiros partidos (conquistaram mais de cinco milhões de votos)..“Esta eleição será renhida. Em alguns estados, apenas alguns votos em cada círculo eleitoral podem decidir o vencedor. Por isso, precisamos de votar em números que eliminem qualquer dúvida”, lembrou a ex-primeira dama Michelle Obama no palco da convenção. “Vamos trabalhar como se as nossas vidas dependessem disso”, apelou na segunda noite da convenção (já madrugada de quarta-feira em Lisboa)..Kamala e o marido, Doug Emhoff, com Joe e Jill Biden, na primeira noite da convenção. FOTO: Robyn Beck / AFP.Eleitores afro-americanos.Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, conseguiu nas eleições de 2008 um recorde de 95% dos votos dos afro-americanos. Biden, há quatro anos, alcançou os 92% - apesar de receios democratas de que os homens negros iriam apoiar Trump. Se- gundo as sondagens, Kamala, que quer ser a primeira mulher - ainda para mais negra e de ascendência indiana - na Casa Branca, está a sair-se melhor entre o eleitorado negro do que Biden..Os afro-americanos representaram só 11% do eleitorado há quatro anos, mas são cruciais para os democratas. Os eleitores brancos constituem o maior bloco - eram 72% nas eleições de 2020, segundo o Pew Research Center - embora a sua percentagem tenha diminuído drasticamente nas últimas décadas..Em relação ao voto latino - são cerca de 36 milhões de potenciais eleitores e representam 15% do eleitorado -, Trump conseguiu ganhar a Biden muitos votos dentro desta minoria, apesar das suas políticas anti-imigração. Teve um em cada quatro votos latinos, quando quatro anos antes Hillary tinha conquistado 81% desses eleitores e Trump apenas 16%..Existe margem de manobra para Harris melhorar, sendo que nas sondagens ela está a fazer melhor do que Biden estava até desistir, parecendo ter travado uma sangria de votos latinos para Trump. Os analistas dizem que a vice-presidente, que é da Califórnia, onde os latinos são o maior grupo étnico, precisará do voto de dois terços destes eleitores para conseguir ganhar e que ainda não está nesse patamar..A congressista Alexandria Ocasio-Cortez, que pertence à ala mais à esquerda do partido, discursou na primeira noite da convenção, mas não falou para os latinos como ela. Ainda assim teve direito a falar em prime time, ao contrário de há quatro anos, então estrela em ascensão, quando só lhe foram dados 90 segundos em vídeo para falar - e ela apoiou o senador Bernie Sanders e ignorou Biden. Este upgrade também parece mostrar um Partido Democrata sem medo das vozes mais radicais - apesar de ela já não ser tão radical como antes, tendo sido criticada por só dizer que Harris “está a trabalhar arduamente para garantir um cessar-fogo em Gaza e garantir a libertação dos reféns”..Centro e independentes.A necessidade de conquistar eleitores ao centro é outro dos desafios de Kamala, se quiser entrar na Casa Branca pela porta grande. Uma tarefa difícil num panorama político que parece cada vez mais extremado, mas onde um número recorde de 51% de eleitores se identificam como independentes - segundo uma sondagem Gallup. E 70% deles acreditam que ambos os partidos, o Democrata e o Republicano, são “ideologicamente demasiado extremos”..Biden, que discursou na primeira noite da convenção, fez dez pontos melhor do que Hillary entre os independentes em 2020, além de ter também melhorado o registo da ex-secretária de Estado entre os republicanos moderados e liberais. Com o Partido Republicano cada vez mais à imagem de Trump, Harris poderá tentar aventurar-se entre os seus eleitores desiludidos..“O Grand Old Party foi sequestrado por extremistas e transformou-se num culto”, disse no palco da convenção democrata o autarca de Mesa (Arizona), John Giles, explicando que o falecido senador John McCain (adversário de Obama em 2008) era o seu herói. “O Partido Republicano de John McCain desapareceu”, lamentou. E não foi o único republicano anti-Trump em Chicago. Harris poderá chegar aos eleitores conservadores que são contra o ex-presidente, mas que também não se viam a votar em Biden. Muito depende do programa que apresentar e do impacto que tiver o seu discurso desta noite, que fecha a convenção. .Há quatro anos, Biden recuperou parte do voto masculino que Hillary tinha perdido - o sexismo foi um problema na campanha da ex-primeira dama que tinha como slogan “I’m with her” (estou com ela) - e manteve o bom resultado que os democratas costumam ter entre o eleitorado feminino. Hillary foi uma das estrelas do primeiro dia da convenção, dizendo que ela não quebrou o “teto de vidro”, mas que acredita que Harris o fará e se tornará na primeira mulher presidente..Hillary Clinton não conseguiu quebrar o “teto de vidro”. Agora é a vez de Harris. FOTO: Mandel NGAN / AFP.Mas a própria candidata não quer centrar a discussão nas questões de género, preferindo focar-se no seu historial e nas políticas. A posição a favor de uma proteção federal do aborto, indo mais longe do que Biden, deverá ajudar Harris a consolidar o voto feminino - pelo menos das mulheres que não são pró-vida..Educação.Outro fator de divisão entre os eleitores prende-se com a educação. Apesar de inicialmente ser visto como o partido das elites, o Partido Republicano tem vindo a perder terreno para o Democrata no que diz respeito aos eleitores com cursos superiores - enquanto ganha apoio entre a classe trabalhadora que não estudou na universidade. Dos 35% de norte-americanos com um curso, 61% votaram em Biden em 2020, enquanto 53% dos que não têm um curso optaram por Trump..Tendo à partida garantido o apoio daqueles com educação superior, Harris tem que procurar reconquistar também o dos que não frequentaram a universidade. Biden, no seu discurso, mostrou-se orgulhoso de ter sido o primeiro presidente a participar num piquete de greve. Também a escolha do governador do Minnesota, Tim Walz, como candidato a vice-presidente servirá para atrair eleitores brancos, das zonas rurais, mas também dos arredores das grandes cidades..O candidato a vice de Kamala, Tim Walz. FOTO: KAMIL KRZACZYNSKI / AFP).susana.f.salvador@dn.pt