"Não me parece que Putin tenha interesse em auto-destruir-se"

Investigadora do IPRI-Nova, Diana Soller analisa os motivos da invasão da Ucrânia, como o presidente russo obedece a uma lógica própria e como esta guerra nos vai deixar perante um "mundo novo" em que "a nossa forma de vida voltou a ter de ser defendida".
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Depois de tantos meses de especulação, o que terá levado a Rússia a invadir agora?
Eu diria que não foram bem meses de especulação. Tenho defendido que foi o cruzamento de duas coisas: a primeira quase passou despercebida. Em junho de 2021, na Cimeira de Genebra, o presidente norte-americano declarou a Putin que considerava a Rússia uma grande potência (na tentativa de isolar a China). A Rússia terá visto nesta declaração uma porta aberta para aumentar a sua esfera de influência. Putin "reclamou" o seu prémio quando sentiu que Biden estava fragilizado devido à catástrofe da retirada do Afeganistão e à situação interna dos EUA, cada vez mais degradada. Intimou a NATO a regressar às fronteiras de 1997. Penso que não queria tanto. Mas queria decerto ter poder sobre a Ucrânia, que cada vez mais se aproximava do Ocidente. A segunda coisa é que Putin não contava com uma oposição tão grande da parte dos Estados Unidos. Achou que a ameaça do uso da força na Ucrânia seria o suficiente para levar Biden e a sua administração a "sacrificarem" Kiev para apaziguar a Rússia. Não foi o que aconteceu e, a certa altura, para manter a sua credibilidade, o Kremlin já não tinha alternativa a não ser avançar.

Ficou surpreendida com a escala da invasão da Ucrânia?
Sim e não. Sim, porque durante algum tempo achei que se tratava, sobretudo, de uma escalada militar nas fronteiras para obrigar os Estados Unidos e a Europa a negociarem com a Rússia numa situação que dava vantagem a Moscovo. Não, porque a partir de certa altura os EUA começaram a dar como certo um ataque em larga escala e os líderes europeus a pedir às populações que abandomassem a Ucrânia. Mais importante, uns dias antes da guerra começar, percebeu-se que a questão se tinha tornado uma espécie de "tudo ou nada" para Putin. A invasão começou na quinta-feira passada e, três dias antes, o presidente russo tinha feito um discurso que tornava muito claras as suas intenções.

As ambições imperiais de Putin podem alastrar a outros países?
É difícil de dizer. Creio que as ambições de Putin se estendem ao território da antiga União Soviética. No entanto, as Repúblicas Bálticas fazem parte da NATO e tentar atingi-las criaria grandes problemas a Putin, uma vez que o Artigo 5.º, que determina que a invasão de um Estado-membro obriga todos os outros a defendê-lo, seria certamente acionado. Além disso, a dissuasão nuclear continua a funcionar. Nunca houve guerra entre países detentores de armamento nuclear. Não me parece que Putin tenha interesse em autodestruir-se. Tenho ouvido e lido muitas vezes que o presidente russo é irracional, mas não me parece de todo que o seja. Obedece é a uma lógica muito própria, a uma visão da história e de como deveria ser o sistema internacional que é muito diferente da do Ocidente. Aliás, o seu discurso de 21 de fevereiro testemunha isso.

A Ucrânia tem mostrado forte resistência. É a prova de que ao contrário do que disse Putin a Ucrânia existe como nação?
A Ucrânia não só existe como nação como tem uma forte identidade. É verdade que há uma divisão entre uma Ucrânia mais russófila, a leste do rio Dnipro, e uma mais pró-ocidental, em que as raízes europeias e o ressentimento contra a União Soviética, especialmente no que se refere ao Holodomor, são marcas muito fortes. Mas se havia divisões, Putin terá conseguido esbatê-las nos últimos dias. Uma das mais poderosas formas de construção de identidade são as guerras.

A NATO errou ao criar expectativas de adesão à Ucrânia?
Isso também é um tema mal esclarecido. George W. Bush fez a proposta da entrada da Geórgia e da Ucrânia na NATO em 2008, mas esta foi rejeitada pela maioria dos Estados-membros, até na sequência da invasão russa à Abcásia e à Ossétia do Sul. Desde então nunca mais houve qualquer referência à entrada da Ucrânia na NATO. A hipótese não estava, sequer, em cima da mesa.

As sanções parecem não ser suficientes para travar Moscovo. O que mais pode ser feito nesse campo?
Neste momento, não muito mais do que está a ser feito. Sanções muito duras, envio de equipamento militar e ajuda humanitária à Ucrânia, gestos simbólicos dos governos e das instituições europeias - neste particular os Estados Unidos têm-se posto mais à margem - e das populações, que têm sido muito vocais no seu apoio a Kiev. Agora, se "a Guerra de Putin", como os responsáveis dos países e instituições europeias passaram a chamar-lhe, tiver um desfecho negativo para Kiev e o país passar a ter um governo fantoche controlado por Moscovo, toda a nossa perspetiva de segurança se altera. O chanceler alemão, Olaf Scholz, já transformou de forma quase irreconhecível a política externa de Berlim. Os países europeus - todos, sem exceção - terão de fazer o mesmo. Esta invasão é típica de transições de poder. Um Estado menos poderoso, a Rússia, está a tentar tirar vantagem da fraqueza da potência que detém o status quo para alargar a sua esfera de influência. Vamos ter fronteiras muito mais instáveis e a nossa economia também vai sofrer com as sanções. O que temos de fazer agora é prepararmo-nos para um mundo completamente novo, em que a nossa forma de vida voltou a ter de ser defendida. Esta é a lição que temos de tirar da tragédia da Ucrânia.

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