“Macron comportou-se como Napoleão e agora enfrenta o seu Waterloo”
Rita Chantre / Global Imagens

“Macron comportou-se como Napoleão e agora enfrenta o seu Waterloo”

Em Lisboa para a 12.ª Conferência do Standing Group on the European Union, do European Consortium for Political Research, organizada pelo Instituto Português de Relações Internacionais na NOVA FCSH, Céline Spector analisou os resultados das europeias de 9 de junho e o panorama em França para as legislativas.
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As europeias de 9 de junho não trouxeram o tsunami de extrema-direita que se temeu, os grupos tradicionais mantiveram a maioria no Parlamento Europeu. Mas não deixou de haver uma subida da direita radical. É sintoma de um mal-estar no continente europeu?
É um fenómeno que observamos em quase todas as democracias ocidentais, sobretudo na União Europeia (UE), e que na minha opinião tem múltiplas causas. Existe, ligado às diversas crises que a UE tem vivido ao longo de vários anos, um receio de degradação. E isso é uma força motriz por trás de um voto bastante radical, mais a favor da extrema-direita. Há ainda uma insegurança cultural, além da insegurança económica, que não deve ser minimizada. O que dizem os franceses que votaram agora pela primeira vez no Rassemblement National [RN, ex-Frente Nacional] é que têm a perceção de uma nova forma de insegurança, ligada, entre outros, ao tráfico de droga, às violações, à violência. E esta sensação encontra eco nos media. Além disso, tem havido agressões específicas contra professores considerados como republicanos, como Samuel Paty [assassinado em 2020]. Professores sobretudo de História e Geografia, que, pelas suas funções, abordam assuntos considerados sensíveis por algumas pessoas. E isso teve um impacto enorme na opinião pública, o que pode ter levado regiões como a Bretanha, que antes pouco votavam no RN, a colocarem a lista da extrema-direita em primeiro. Portanto, acho que temos de ter em conta que há fatores económicos, culturais, e, de maneira mais geral, este receio da degradação que se junta à inflação e à redução do poder de compra, mais do que motivações de tipo racista ou xenófobo. 

Em França, a extrema-direita ganhou as europeias com grande vantagem, mas em Portugal, por exemplo, a extrema-direita subiu muito nas legislativas, mas menos nas europeias. Há uma diferença de mentalidade quando se vota para o Parlamento nacional e para o Parlamento Europeu?
Não sou especialista nessa área, mas é verdade que hoje, se considerarmos a extrema-direita num sentido lato, ou seja, o grupo dos Conservadores e Reformistas (ECR) e o Identidade e Democracia (ID), mais alguns não inscritos, como a AfD, que foi expulsa do ID mas talvez volte, uma vez que se tratou de uma estratégia de desdiabolização do RN, juntando todos obtemos quase um quarto do Parlamento. É ao mesmo tempo muito, mas menos do que tememos a certa altura. E penso que uma parte deste voto está ligada não só aos receios da imigração em massa, mas também ao Green Deal e à legislação ecologista. Há uma correlação clara entre o ceticismo climático e o voto da extrema-direita, entre a oposição às medidas antidiesel, anticombustíveis, que não têm em conta o poder de compra dos cidadãos. Dizer a alguém que vive numa zona rural, onde não há transportes públicos, para ter um carro elétrico é um pouco como quando Maria Antonieta disse ao povo “se não têm pão, comam brioche”. Há uma parte da população que está zangada com a diminuição dos serviços públicos, e, se juntarmos a isto a fúria contra as regulações ambientais, é um problema que a UE vai ter de resolver nos próximos anos. Se quisermos ser ambiciosos do ponto de vista do Green Deal, temos de repensar a relação entre justiça social e justiça ambiental, para evitar este bloqueio reacionário, que, de outra forma, nos irá destruir. 

Guerra na Ucrânia, ingerências estrangeiras, a possibilidade de Trump voltar ao poder nos EUA... Todos estes perigos ameaçam a democracia europeia quando ela precisava de ser mais forte?
Num certo sentido, sim. As ameaças são, ao mesmo tempo, externas e internas. Internamente, há vários anos que a questão da proteção do Estado de direito se coloca com acuidade. Para mim, a melhor notícia na UE nos últimos anos foi a vitória de Donald Tusk na Polónia e o facto de o PiS se ver desalojado do poder que ocupou durante oito anos, depois de ter implementado uma política de controlo dos meios de comunicação social, de redução do pluralismo, de amordaçamento parcial da sociedade civil e, sobretudo, de pôr em causa a independência do poder judicial. Isto faz com que a coligação entre a Hungria e a Polónia já não possa ter lugar. E mesmo que existam outros pequenos países a aderir ao bloco iliberal, não é à escala da Polónia. Portanto, a importância estratégica e política da Polónia na UE dá-me um pouco mais de confiança do ponto de vista interno. Do ponto de vista externo, estamos numa situação muito delicada. O que se deve, em particular, à interferência política e à desinformação vindas da Rússia e, em menor medida, de outros países. A China, o Qatar, com o escândalo do Qatargate, talvez Marrocos. E tivemos outros países que também tentaram. As tentativas de desestabilizar a democracia na Europa são extremamente poderosas e temos sido relativamente ingénuos relativamente a elas. Penso que agora a confiança aumentou, especialmente após estes repetidos escândalos no Parlamento Europeu. Compreendemos o perigo, mas não tomámos necessariamente medidas suficientes. Depois do Qatargate, Roberta Metsola anunciou uma bateria de medidas, mas aparentemente não são todas aplicadas. Há um certo número de obstáculos para implementar todas as medidas éticas e políticas necessárias para combater a corrupção e o peso dos lobbies.

Ainda sobre a Europa, antes de ir a França. Fala-se num novo alargamento. Como é que uma UE com 30 ou 35 nações, com interesses, com valores e lealdades muito diferentes, vai conseguir manter-se unida?
Penso que desde 2004, com a integração dos países da Europa Central e Oriental, tem-se colocado a questão de saber se o alargamento ocorreu às custas do aprofundamento das instituições. As instituições que planeámos a seis, depois a nove, a 12, mesmo que fosse a 40, não deveriam enfrentar ataques à democracia e ao Estado de direito. Também não deveriam enfrentar opções tão diferentes em termos de política externa, sabendo que a UE está a tornar-se cada vez mais geopolítica. A questão da Europa da defesa surge novamente. Que haja uma divergência de interesses e valores em termos de política externa parece-me inevitável, e sê-lo-ia mesmo a 27, e teria sido a 15 ou mesmo a 6. Por outro lado, é aqui que volto ao aprofundamento das instituições. Houve um grupo de trabalho franco-alemão que se reuniu para pensar na forma como poderíamos reformar as instituições para evitar tornar a UE totalmente ineficaz na ótica de um alargamento a 30 ou 35. E fizeram propostas muito interessantes. Dizem, por exemplo, que em termos de política externa e de segurança comum parece difícil manter a regra da unanimidade no Conselho. Em segundo lugar surge a questão do papel do Parlamento Europeu em termos de controlo democrático da política externa e de segurança comum. Porque o Parlamento é um pouco o parente pobre. A UE  tem dado mais poder à Comissão e ao Conselho. O Parlamento contenta-se com declarações de princípio, e isto também ameaça o equilíbrio das instituições, o triângulo institucional. É algo em que precisamos pensar. Na situação de vulnerabilidade que é a nossa, como evitar a deriva executiva, ou seja, responder ao ressurgimento dos impérios com um aumento do poder executivo? Esse é um assunto para os próximos anos.

Em França, e na sequência da vitória do RN nas europeias, o presidente Macron dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições legislativas. Qual foi o objetivo político desta decisão?
Se a decisão pode ter sido totalmente impulsiva, uma reação ao orgulho ferido ao ver-se derrotado, uma forma de reacelerar o ritmo, de fazer esquecer essa derrota e retomar o controlo ao tornar-se novamente dono do relógio - o que é uma interpretação um tanto superficial, mas não completamente errada -, acho que temos de analisar isto em termos maquiavélicos também. Vejo Emmanuel Macron como uma espécie de príncipe maquiavélico que tenta enganar a sorte fazendo o que Maquiavel chamou de golpes. Golpes de autoridade que apanham o povo e a elite de surpresa - os grandes e o povo. E, finalmente, graças à sua audácia e a esta assunção de riscos tenta ser sempre o dono do jogo. A ideia era retomar o controlo como um príncipe maquiavélico. Ele quis deixar o povo atónito e atordoado e, de facto, houve um efeito de espanto. Mas o que era suposto ser um golpe de mestre revela-se agora uma armadilha. Ele não esperava a aliança-relâmpago, uma espécie de Blitzkrieg, que aconteceu na esquerda; ele queria fraturar a direita e isso ele conseguiu, com as divisões entre os que querem e os que não querem aliar-se à extrema-direita. Tanto as reações nacionais como internacionais a esta dissolução consideram que foi uma péssima ideia, que ele está a brincar com o fogo. Os franceses, tal como os parceiros europeus de Macron, estão muito zangados, e muitos não lhe perdoarão. Na esquerda moderada, como numa direita moderada, que estaria disposta, talvez, em caso de duelo, a votar a favor do candidato da maioria presidencial, creio que há muitas pessoas que se irão abster, que não votarão a seu favor, porque não perdoam ter brincado com as instituições e ter precipitado uma falsa campanha eleitoral, porque não há tempo para fazer uma campanha democrática em tão pouco tempo. O discurso foi que estava a agir em nome do povo, para dar ao povo todos os seus direitos, mas as pessoas percebem que não se trata realmente de dar poder ao povo, já que a campanha não é suficientemente longa para ser verdadeiramente democrática.

Durante muito tempo habituámo-nos a ver uma frente republicana contra a extrema-direita em França. Isso já não existe?
Está a acontecer em França o que aconteceu na Suécia e noutros países da UE, ou seja, a ideia de um cordão sanitário, de uma frente republicana, dissolveu-se e a extrema-direita, que antes era ostracizada, entrou no jogo normal da vida política democrática. Houve vários fatores que contribuíram para tal. Surgiu em França um partido de direita ainda mais radical, o Reconquista!, de Éric Zemmour, que defende a ideia da grande substituição e tem posições mais xenófobas que o RN, que, de facto, se desdiabolizou sob a égide de Marine Le Pen

E ainda mais com Jordan Bardella?
Ainda mais com Jordan Bardella, que conseguiu os melhores resultados, sobretudo entre os jovens. Um terço dos jovens franceses votou RN, porque Bardella fez uma campanha de proximidade no TikTok, porque se apresenta como uma rock star, porque os comícios do RN são quase discotecas, há uma espécie de ritualização festiva que funciona. Ele próprio parece muito simpático, filho de imigrantes, de famílias modestas, criado em Seine-Saint-Denis - tudo isso seduz uma parte da população que se sentiu desprezada pela arrogância tecnocrática da atual maioria presidencial. Temos, portanto, uma série de fenómenos que fazem com que o cordão sanitário desapareça e que o RN, que se comportou de forma muito diferente da França Insubmissa (LFI, na sigla em francês) na Assembleia Nacional na última legislatura, ganhe uma espécie de respeitabilidade no seio das instituições - já não é um pária. 

A esquerda juntou formações muito diferentes na Frente Popular. Acha que vai resistir unida?
É óbvio que esta união é extremamente frágil e começa já a mostrar algumas fissuras e acho que toda a gente tem consciência disso. Quem votou em Raphaël Glucksmann nas europeias, que foi alvo de ataques infames da França Insubmissa, de uma campanha antissemita violentíssima, quem votou nele dificilmente se reconhece nos excessos da LFI. E mesmo dentro deste partido, depois de uma purga na própria noite das europeias, há divisões. Portanto, há todas as razões possíveis para que o programa comum - que é real, tem 150 propostas, inclusive medidas sociais, aumento do salário mínimo, regresso ao debate sobre a idade da reforma - não resista às brigas pessoais. O que foi muito hábil na criação do programa comum é que eles conseguiram ir para além dos seus desentendimentos, por exemplo, na questão nuclear ou no conflito israelo-palestiniano. Conseguiram ultrapassar os desacordos e chegar a pontos de acordo suficientes para que a Frente Popular ressuscite a esperança e agregue o voto contra o inimigo absoluto que era tradicionalmente o RN. Mas percebe-se que esta união programática dificilmente aguentará, sobretudo quando se colocar a questão de quem deve ser o primeiro-ministro. Também é difícil imaginar que as próximas reviravoltas da política externa, inclusive o conflito israelo-palestiniano, não tragam novos desacordos. Além de que, se a Frente Popular vencesse e tentasse aplicar estas medidas, haveria logo uma queda dos mercados, um aumento dos spreads. Ficariam sob ataque, sobretudo numa altura em que a dívida pública é tão elevada e em que a França é alvo de um procedimento por défice excessivo por parte da Comissão Europeia. 

Falamos de legislativas, mas os olhos já se viram para as presidenciais de 2027. Marine Le Pen já se apresenta como candidata, mas como é que se explica o fracasso de Macron para criar um sucessor para o macronismo?
Hoje fala-se em  “macronia”, inventámos este termo para designar uma espécie de oligarquia tecnocrática um pouco arrogante, que opera entre si, numa câmara de decisão muito masculina e muito fechada. A razão pela qual um movimento que não tinha vocação imediata para se transformar num partido político conseguiu uma rede territorial tão poderosa como a dos outros partidos, mas não conseguiu criar sucessores dignos do nome para Emmanuel Macron, não deixa de ser um exercício solitário de poder. Emmanuel Macron comportou-se um pouco como Napoleão e hoje enfrenta o seu Waterloo.

Nesse cenário, Marine Le Pen impõe-se?
O que Marine Le Pen conseguiu foi passar a imagem de uma personalidade calorosa e próxima das preocupações dos franceses mais vulneráveis, mais modestos, os que sofrem mais com a inflação. Ela conseguiu diabolizar a pessoa que queria diabolizá-la. E é uma inversão do estigma que faz parte de uma estratégia que ela conseguiu implementar, mostrando-se com gatos, mostrando-se com flores, mostrando-se numa espécie de terapia de carinho nos mercados, entre os franceses, numa espécie de atitude física empática. Ela conseguiu colocar Júpiter numa posição estratosférica, onde, em última análise, os franceses se sentiram desprezados por um monarca republicano. E penso que, de facto, será difícil reverter isso. 

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