"Lutar até ao fim" em Mariupol

A Rússia deu um ultimato para os últimos soldados que estão cercados numa siderurgia entregarem as armas, mas o primeiro-ministro rejeitou-o. Cidade portuária pode ser "uma linha vermelha" nas negociações entre Kiev e Moscovo, disse o chefe da diplomacia, depois de Zelensky também ter ameaçado acabar com o diálogo.
Publicado a

A Ucrânia promete "lutar até ao fim" em Mariupol, depois de os russos terem feito um ultimato para que os últimos soldados ucranianos depusessem as armas. Apesar de as atenções estarem centradas nesta cidade portuária, os ataques russos continuam noutras zonas, à espera da grande ofensiva prevista na região do Donbass. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse numa entrevista à CNN que "esta batalha pode influenciar o destino de toda a guerra".

Numa ofensiva comunicacional nas televisões norte-americanas de vários líderes ucranianos, coube ao primeiro-ministro Denys Shmyhal transmitir a promessa de lutar até ao fim em Mariupol. "A cidade ainda não caiu", disse ao programa This Week, da ABC. "Ainda há as nossas forças militares, os nossos soldados. Eles vão lutar até ao fim", afirmou Shmyhal. Já ao programa Face the Nation, da CBS, o chefe da diplomacia, Dmytro Kuleba, avisou que "Mariupol pode ser uma linha vermelha" nas negociações.

No sábado, numa entrevista a meios ucranianos, Zelensky já tinha avisado que a "eliminação" das forças em Mariupol será o fim das negociações de paz com Moscovo. "Ficaríamos num impasse, porque não negociamos nem o nosso território nem o nosso povo", afirmou. Segundo Kuleba, as negociações a nível de chefes da diplomacia estão paradas há semanas, decorrendo só a nível inferior. O presidente russo, Vladimir Putin, já admitiu que as negociações estão num "beco sem saída".

Shmyhal insiste que a Ucrânia continua a querer uma solução diplomática, "se possível", mas também continuará a lutar até ao fim. "Não nos vamos render", disse na entrevista à ABC.

As declarações de Shmyhal sobre Mariupol foram divulgadas horas depois do fim do ultimato russo. De madrugada, Moscovo exortou os últimos soldados ucranianos, que estarão na fábrica metalúrgica de Azovstal "numa situação desesperada, praticamente sem comida e água, a entregarem-se até às 6.00 locais. "A todos aqueles que depuserem as armas é garantido que pouparemos a vida", disse o coronel-general Mikhail Mizintsev, num comunicado citado pela agência russa TASS.

Segundo o mesmo responsável, os cerca de 400 "militares e mercenários" cercados têm pedido autorização a Kiev para se renderem, "mas em resposta recebem ameaças de execução". Moscovo alega que o governo ucraniano deu ordens aos combatentes do batalhão de Azov para "matar no local" aqueles que se quiserem render. Na quarta-feira, Moscovo alegou que mais de mil soldados se tinham rendido noutra siderurgia, Illyich, que também pertence à empresa Metinvest, cujo proprietário Rinat Akhmetov prometeu nunca operar sob a ocupação russa.

Além dos militares, Kuleba lembrou na CBS que na cidade portuária há também ainda civis cercados. "A situação em Mariupol é terrível do ponto de vista militar e de partir o coração. A cidade já não existe", afirmou. "O resto do exército ucraniano e um grande grupo de civis estão basicamente cercados pelas forças russas. Eles continuam a sua luta, mas parece-me que, pela forma como o exército russo se comporta em Mariupol, eles decidiram arrasar a cidade a qualquer custo", acrescentou.

Numa entrevista ao programa State of the Union da CNN, feita na sexta-feira e transmitida ontem, Zelensky reiterou que a Ucrânia não está disposta a ceder território à Rússia. O presidente alegou que não há garantias de que Moscovo não tente capturar Kiev se conseguir conquistar no leste do país a região de Donbass, onde se espera a próxima grande ofensiva russa. "É por isso que é muito importante para nós não permitir, mantermos a nossa posição, porque esta batalha pode influenciar o destino de toda a guerra", referiu.

Esta ofensiva comunicacional dos responsáveis ucranianos surge em vésperas da visita, que é esperada esta semana, do primeiro-ministro a Washington. Na viagem será acompanhado pelo ministro das Finanças, Serhiy Marchenko, e o governador do Banco Central, Kyrylo Shevchenko, devendo participar em encontros do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. "Armas, finanças e sanções são o trio que irá parar o agressor e restaurar a paz", lembrou Shmyhal à ABC. O primeiro-ministro lembrou que o seu país está com um défice de cinco mil milhões de dólares por mês e precisa de ajuda financeira.

O Papa Francisco lamentou, diante de cerca de 50 mil fiéis reunidos na Praça de São Pedro, esta "Páscoa de guerra", lançando um apelo à paz. "Todos vimos demasiado sangue, demasiada violência. Os nossos corações estão cheios de medo e angústia, com tantos dos nossos irmãos e irmãs a terem que se fechar para ficarem seguros dos bombardeamentos", indicou. "Que haja paz na Ucrânia martirizada, tão duramente testada pela violência e destruição da guerra cruel e sem sentido para a qual foi arrastada. Que em breve amanheça uma nova esperança nesta terrível noite de sofrimento e morte", referiu.

Zelensky insiste que o que está a acontecer na Ucrânia é genocídio, algo que o presidente norte-americano, Joe Biden, também já afirmou. Mas o francês Emmanuel Macron pede cuidado com as palavras. "Disse-lhe que quero que ele perceba que isto não é uma guerra, é um genocídio. Convidei-o a vir quando tiver a oportunidade. Ele vem e vai ver e tenho a certeza que perceberá", disse Zelensky, referindo-se a uma conversa telefónica que teve com Macron na quinta-feira. Também acredita que o próprio Biden irá visitar Kiev, apesar de a Casa Branca dizer que não há planos nesse sentido.

No terreno, e apesar de as atenções estarem centradas em Mariupol, continuam os bombardeamentos noutras áreas do país. O Ministério da Defesa russo disse ter atingido uma fábrica militar nos arredores da capital, em Brovary, num ataque com mísseis de alta precisão durante a noite. O presidente da câmara, Igor Sapozhko, confirmou a destruição de infraestruturas, sem dar mais pormenores, indicando que eram possíveis falhas de eletricidade.

Em Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana, que fica a apenas 21 km da fronteira com a Rússia, pelo menos cinco pessoas morreram e 13 ficaram feridas numa série de ataques. Os jornalistas da AFP relataram incêndios em vários blocos de apartamentos na cidade, causados pelos bombardeamentos. Os edifícios governamentais já foram destruídos noutros ataques nos mais de 50 dias de guerra.

susana.f.salvador@dn.pt

Diário de Notícias
www.dn.pt