Como país de maior dimensão, mais populoso e dono da economia mais forte da América Latina, o Brasil tem tudo para liderar a região. Mas, em tempos de crise e tensão, como no rescaldo das recentes eleições na Venezuela, a tradicional voz rouca de Lula da Silva impõe-se sobre as demais? A influência do presidente do Brasil vai além dos demais governos de centro-esquerda regionais? Como democracia plena mas membro do bloco de emergentes BRICS, o Planalto consegue manter equidistância e autonomia entre o eixo Estados Unidos-União Europeia e o eixo China-Rússia?.O “dia seguinte” às eleições na Venezuela é o pano de fundo: após o Conselho Nacional Eleitoral, controlado pelo governo, anunciar resultados parciais apontando uma vitória apertada de Nicolás Maduro, no dia 29 de julho, líderes mundiais expressaram ceticismo quanto aos resultados divulgados e não reconheceram o atual presidente, há 11 anos no poder, como vencedor. O Centro Carter e a Organização dos Estados Americanos também manifestaram suspeitas devido à falta de resultados detalhados. Na sequência, a oposição, liderada pelo candidato Edmundo González Urrutia, reivindicou vitória. .No tabuleiro internacional, China, Rússia e outros países, incluindo cinco latino-americanos, reconheceram Maduro como presidente reeleito. A União Europeia, o governo português, a Argentina, de Milei, e até o Chile, do esquerdista Gabriel Boric, não reconheceram e exigiram transparência. E o Brasil, tal como México, Colômbia, Estados Unidos e outros, preferiram esperar para ver e evitaram tomar posição definitiva. .O DN convidou três cientistas políticos, dois baseados no Brasil e um na vizinha Argentina, outro país influente, por tradição, na América Latina, hoje, sob a presidência do libertário de direita Javier Milei, ideologicamente a léguas do moderado de esquerda Lula, para analisarem a posição brasileira na região. E, em resumo, um diz que é inevitável, e palpável, a liderança local do país lusófono, outro sublinha que, precisamente por ser lusófono, o Brasil se sente culturalmente distante dos vizinhos e o terceiro revela que Milei aposta na vitória de Donald Trump em novembro para ganhar espaço geoestratégico..Segundo retrospetiva de Roberto Georg Uebel, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, “o Brasil tinha uma liderança internacional ativa durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e depois nos primeiros do Lula mas perdeu-a, um pouco, ainda durante o governo da presidente Dilma Rousseff”. “Depois”, prossegue o académico, “Michel Temer fez um governo muito direcionado à política doméstica e, finalmente, Jair Bolsonaro optou pelo isolacionismo, com dois únicos aliados, Israel de Benjamin Netanyahu e Estados Unidos de Donald Trump, colocando o Brasil num ostracismo total”..Nessa perspectiva, diz Uebel, “Lula, no seu terceiro governo, tem recebido os holofotes porque tenta resgatar o protagonismo do Brasil, em particular na América Latina, onde é a maior economia e tem a maior população da região, as segundas maiores das Américas, atrás, em ambos os casos, dos Estados Unidos, até porque o atual presidente brasileiro ainda é uma figura carismática e muito querida pelas lideranças de esquerda da região”..“No tempo de Temer e de Bolsonaro, sobretudo, houve uma certa disputa pela hegemonia da região entre Brasil, entre México, entre Colômbia, que acabou por não se concretizar, porque governos de esquerda assumiram esses países e todos se alinharam ao Brasil”, acrescenta. “Por isso, não vejo nenhuma nação latino-americana capaz de ocupar o lugar de prestígio que o Brasil tem hoje, nem mesmo a Argentina, que, no governo de Maurício Macri, e agora, com Milei, se tenta posicionar como alternativa regional”, afirma. “Dada a crise económica interna, a política externa no governo argentino fica muito limitada”..Eleições na Venezuela e vitória contestada de Maduro vieram testar liderança de Lula na América Latina.Federico PARRA / AFP.Argentina quer ser farol.Carlos De Angelis, cientista político da Universidad de Buenos Aires, concorda: “Curiosamente, Milei colocou Lula na lista dos comunistas internacionais que empobrecem o povo, mesmo com a economia do Brasil a crescer e a da Argentina a cair abruptamente”..“O presidente da Argentina acredita, entretanto, que pode ser o farol da região, no lugar do Brasil, se Trump ganhar as eleições de novembro nos Estados Unidos, tendo em conta que Lula, claro, apoiará Kamala Harris, e que a Casa Rosada tem hoje uma política exterior muito dependente dos Estados Unidos, e, como Milei repete à exaustão, os seus aliados são apenas Washington e Telavive,”, continua De Angelis. “Porém, mesmo assim, o mais provável é que, ganhe Trump ou ganhe Kamala, os Estados Unidos vejam na região o Brasil, de Lula, como principal líder e parceiro económico”, completa..“Há na Argentina, na verdade, uma sensação contraditória em relação a Lula porque ele é o sobrevivente daquela onda de centro esquerda populista, ou bolivariana, na América Latina, e porque ele foi o único, até agora, que conseguiu voltar a governar, sempre com muito pragmatismo nas políticas sociais e, sobretudo, muita seriedade na política exterior, ao contrário da política externa argentina, que é errática e confusa”. “Lula, por outro lado, apoiou muito [o candidato peronista derrotado por Milei] Sergio Massa, incluindo através de consultores de campanha, porque há fortes vínculos entre o peronismo e o kirchnerismo, e fracassou”, lembra..Em relação às eleições venezuelanas, ao contrário da posição cautelosa (ou dúbia?) do Brasil, o governo Milei foi claro. “Além de setores muito minoritários da esquerda, já ninguém apoia Maduro, sendo que Milei, claro, chama Maduro de ditador, assim como Maduro chama Milei de nazi, e a Venezuela serve de ferramenta para que Milei, como outros governantes, desvie o assunto das situações complicadas que se vivem no país”..“As eleições na Venezuela, por outro lado, tiveram impacto muito forte na Argentina porque o país recebeu cerca de 200 mil venezuelanos, menos do que o Peru, a Colômbia ou o Brasil, mas ainda assim um número considerável e com grande interação social em Buenos Aires, mas, além disso, porque desde o governo Macri a Venezuela é descrita, digamos, como ‘uma visão maligna’, a expressão ‘vamos nos tornar uma Venezuela’ foi muitas vezes repetida para associar o chavismo e o kirchnerismo [corrente política liderada por Nestor e Cristina Kirchner]”, sublinha..Por sua vez, Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado, lembra que há diferenças históricas e culturais entre Brasil, colonizado por Portugal, e demais países latino-americanos, colonizados, na sua maioria, por Espanha..Líder sem seguidores.“Andrés Malamud, investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em A Leader Without Followers [um líder sem seguidores], discute porque o Brasil não influencia, como seria de esperar pela sua dimensão material, os vizinhos”, recorda Vieira. “Ora, uma das razões da influência limitada pode ser a língua”..“O Brasil é o único país que fala português na região, enquanto a grande maioria fala espanhol, e tem, por isso, uma cultura e uma estrutura administrativa diferentes, porque esses países tiveram, mesmo sob colonização espanhola, mais autonomia e por isso desenvolveram um pensamento próprio distante do Brasil”. “E a recíproca é verdadeira”, assinala. “Numa pesquisa de 2014, liderada por académicos da Universidade de São Paulo, só 4% dos brasileiros se achavam latino-americanos, até porque muitas pessoas aqui acham que latino é o indígena”..“Então, mesmo que a esquerda latino-brasileira deseje, por tradição, uma maior integração latino-americana com o fim de reforçar a autonomia, de forma similar ao que se passa em África, estes fatores históricos, até mais do que os conjunturais, constrangem essa integração”, observa. “A relação entre Brasil e Venezuela, que até começou com uma relação económica próxima entre Hugo Chávez e Fernando Henrique Cardoso, é muito mais pragmática do que identitária”, reforça o académico. “E, sem essa relação identitária, o Brasil é um líder sem seguidores”..“A grande vantagem, entretanto, do Brasil no século XXI é a participação nos BRICS sem romper com o Ocidente”, afirma. “E Lula, com a sua dualidade, é a personagem ideal para manter uma agenda de desenvolvimento, mais cara aos BRICS, e ao mesmo tempo fazer, como parece que fará, uma conferência em prol da democracia com Biden, Scholz, Sánchez, Macron”..“Se o Brasil dialoga com os regimes autoritários dos emergentes e com o mundo democrático ocidental pode, dessa forma, funcionar como honest broker, isto é, negociador aceito pelos dois lados, o bloco euro-atlântico e o bloco euroasiático, é nesse contexto que se entende a posição da diplomacia brasileira de não reconhecer os resultados, isso garante-lhe apoio dos EUA e mantém China e Rússia sem se intrometerem”..REAÇÃO LATINO-AMERICANA À ELEIÇÃO DE MADURO.QUEM RECONHECE.Bolívia.Cuba.Dominica.Honduras.Nicarágua.QUEM NÃO RECONHECE.Argentina.Chile .Costa Rica.El Salvador.Equador.Guatemala.Panamá.Paraguai.Peru.Rep. Dominicana.Uruguai.QUEM AINDA NÃO DECIDIU.Brasil.Colômbia.México