Quando naquela noite de abril de 2002 os resultados da primeira volta das Presidenciais surgiram nos ecrãs dos franceses, ao lado do rosto de Jacques Chirac aparecia o de Jean-Marie Le Pen. Foi o choque. Depois de meio século de vida política, o líder da extrema-direita francesa estava mais perto do que nunca do seu sonho: chegar ao Eliseu. O choque deu lugar à frente republicana, com todos unidos contra o líder da Frente Nacional (hoje Reunião Nacional), o que resultou numa vitória de Chirac na segunda volta com mais de 80%. Para o velho “pirata” da política francesa (numa alusão à pala que usou nos anos 70 após ficar sem uma vista) foi o auge da carreira, mas ainda viu a filha Marine, sua sucessora à frente do partido, superar o progenitor, tendo chegado por duas vezes à segunda volta das Presidenciais e a sua RN ser a mais votada nas legislativas de 2024. Jean-Marie Le Pen, o político que não hesitava em flirtar com o racismo e o antissemitismo, morreu esta terça-feira aos 96 anos. “Marine Le Pen percebeu os erros do pai e tentou evitá-los na sua atividade político-partidária. Em especial, tentou desligar o seu partido da carga histórica que tinha contribuído para décadas de diabolização política. Enquanto Le Pen pai explorou a memória e a história, a filha Le Pen passou a olhar mais para a sociedade atual e a tentar explorar as suas disfunções”, explicou ao DN Francisco Seixas da Costa. O embaixador, que serviu em França entre 2009 e 2013, lembrou como Le Pen era “por natureza, um provocador. Há um lado de espetáculo nas suas tomadas de posição, que talvez tenha afetado a eficácia da sua ação como figura política”, Para o diplomata, “a sua tentação para desvalorizar o impacto da violência antijudaica e a desculpabilização do colaboracionismo pró-nazi acabaram por se revelar fatores limitativos da capacidade de mobilização do Front Nacional.” “Não consigo identificar um legado claro de Jean-Marie Le Pen. Nem sequer para a extrema-direita francesa, que só tem vindo a crescer malgré lui”, diz..Filho de um pescador e de uma costureira, Jean-Marie Le Pen nasceu em 1928 em Trinité-sur-Mer e teve uma infância modesta. Órfão de pai aos 14 anos, quando este morreu na explosão de uma mina submarina, aos 16 tenta alistar-se no Exército, mas é rejeitado por não ter idade. Só em 1953, já formado em Direito, entra nas forças armadas e é enviado para a Indochina lutar contra “o inimigo comunista”, como lembrará na primeira parte das suas memórias Filho da Nação. Mas chega já depois da derrota na batalha de Dien Bien Phu e acaba a trabalhar no jornal do Exército. De volta a França, conhece Pierre Poujade e é pelo seu partido de extrema-direita que é eleito deputado em 1956. Volta, no entanto a alistar-se e vai combater na Argélia, integrado num batalhão de paraquedistas. A guerra de independência argelina reforça o seu compromisso com a extrema-direita e o seu ódio ao general De Gaulle. Na altura, é condecorado, mas as acusações de tortura irão persegui-lo, reaparecendo nos anos 80 e de novo no início dos anos 2000.De volta a França, desentende-se com Poujade e em 1962 perde o lugar de deputado. Segue-se uma travessia do deserto..“Guardo de Jean-Marie Le Pen uma imagem pouco simpática. Tinha aquele ar arrogante que algumas pessoas pesporrentes assumem perante os outros, de quem nada tem a aprender e de quem já viu tudo."Francisco Seixas da Costa, embaixador.Condenado por apologia aos crimes de guerra em 1971, no ano seguinte é cofundador da Frente Nacional. Numa década de violência política, em 1976 a casa dos Le Pen em Paris é alvo de um ataque à bomba, com Le Pen, a mulher Pierette (voltaria a casar, com Jany Paschos) e as três filhas do casal, a escapar ilesos. Nesse ano, herda a fortuna de Herbert Hubert, um milionário apoiante da extrema-direita e seu admirador, mas o sucesso político só volta em 1984, quando a FN consegue 11% nas europeias e a adoção do sistema proporcional (mais tarde revertida) lhe permite eleger 35 deputados nas legislativas desse ano. Numa crise económica, a sua retórica anti-imigração ganha adeptos. Depois de uns anos 90 marcados por alguns escândalos da FN e do ponto alto em 2002, o novo milénio ditará o lento afastamento de Le Pen. Líder da FN desde 2011, Marine Le Pen afasta de vez o pai da presidência honorária do partido, sete anos depois. Mas isso não o silenciou, o que só a idade e os problemas de saúde conseguiram nos últimos anos..Com a sua morte, a sua maior herança é o apelido, com tudo a indicar que Marine faça uma quarta tentativa de chegar à presidência em 2027. Mas também com a sua neta Marion, filha da filha do meio, Yann, a ter fundado o seu próprio partido no ano passado depois de eleita eurodeputado pelo Reconquista, de Éric Zemmour, ainda à direita da RN. Marion despediu-se do avô com uma longa mensagem na rede social X na qual afirma: "Parte tranquilo, não abandonarei a missão"..Nas suas sete décadas de carreira política, Jean-Marie Le Pen passou algumas vezes por Portugal, como em 1990 num encontro de eurodeputados de extrema-direita em Sesimbra em que chamou “estalinista” ao presidente Mário Soares. Desafiado por Francisco Louçã, então líder do PSR mas escudado por uma carteira profissional de jornalista do Rouge, uma revista de esquerda francesa, Le Pen deu a conferência de imprensa por terminada. Mas não o confronto com Louça, que acusou de “mentiroso”, só para ouvir este lembrar-lhe que não era bem-vindo a Portugal porque por cá não aceitamos as ideias “racistas e xenófobas”. .O embaixador Francisco Seixas da Costa também teve oportunidade de conhecer pessoalmente Le Pen - primeiro num debate no Parlamento Europeu e mais tarde num jantar num barco no Sena, lembrando agora ao DN: “Guardo de Jean-Marie Le Pen uma imagem pouco simpática. Tinha aquele ar arrogante que algumas pessoas pesporrentes assumem perante os outros, de quem nada tem a aprender e de quem já viu tudo: coisas evidentes que os outros não veem por falta de clarividência.”