Na primeira grande entrevista de Kamala Harris como candidata democrata à Casa Branca, a palavra “povo” foi referida 27 vezes, “Biden” 15, “economia” 7, “Israel” 6; a palavra “mulheres” apenas uma. Mais uma prova de que a mulher que já fez história ao tornar-se na primeira vice-presidente dos EUA e que a 5 de novembro quer tornar-se na primeira presidente da maior potência mundial não está muito interessada em fazer do facto de ser mulher parte central da sua campanha, ao contrário do que fez Hillary Clinton em 2016. Quebrar o teto de vidro pode continuar a ser o objetivo e o voto feminino essencial para tal, mas Harris prefere deixar nas mãos dos apoiantes o argumento do género. Mesmo se este está presente em boa parte dos ataques de que tem sido alvo por parte do rival republicano, Donald Trump, e do seu vice, JD Vance. .“O voto feminino poderá ser determinante nas eleições americanas. Serão umas das eleições mais disputadas, em que o que está em causa é o choque de valores basilares na sociedade norte-americana. A campanha de Harris está a concentrar-se noutros elementos identitários da vice-presidente, procurando não exacerbar a condição feminina”, explica ao DN Ana Mónica Fonseca. Para a diretora do CEI-IUL, Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, esta decisão de Harris tem várias explicações possíveis: “em primeiro lugar, por não querer concentrar demasiado a campanha nessa dicotomia, homem-mulher, porque poderá ser mais complexa para os indecisos e até para não antagonizar os moderados do partido republicano que se sintam hesitantes no seu voto. Por outro lado, para também naturalizar o facto de ela ser mulher, já ser vice-presidente e por isso ser ‘natural’ que ascenda ao cargo de presidente. Por fim, porque Harris é mulher, mas também é uma mulher de cor, sem filhos, com uma carreira de sucesso, por isso, ser apresentada ou focada ‘apenas’ como mulher poderia ser entendido como simplista num contexto em que as questões identitárias estão tão no centro da discussão.”.Diana Soller partilha desta opinião, recordando que durante a Convenção Democrata que confirmou Harris como candidata, depois de Joe Biden ter desistido de procurar um segundo mandato, “o facto de ser a primeira mulher vice-presidente e potencial primeira presidente mulher dos EUA foi apontado por vários oradores, portanto, ela não precisaria de o fazer.” A investigadora do IPRI/NOVA vê aqui semelhanças com a campanha de Barack Obama em 2008. “Ele dispensou sempre o argumento da raça. Até porque não era preciso dizer o que era evidente. Kamala Harris está a fazer o mesmo - pelo menos até aqui. Não é preciso dizer o que é evidente. A vantagem (e desvantagem) está lá. Realçá-la podia criar a imagem de que seria uma presidente diferente por razões de género. E Harris quer ser vista, acima de tudo, como futura presidente de todos os americanos.”.Mas quer se fale nele quer não, o teto de vidro existe e está bem presente na política americana. Basta olhar para a História. Em 2020 Harris foi a primeira mulher eleita para a vice-presidência dos EUA, mas mais, antes delas só por duas vezes os principais partidos haviam colocado uma mulher como candidata a esse cargo. Estamos a falar de Geraldine Ferraro em 1984, no ticket democrata com Walter Mondale, e Sarah Palin, em 2008, no ticket republicano com John McCain. Quanto a candidatas à presidência esta é a apenas a segunda vez que um grande partido - em ambos os casos, o Democrata - nomeia uma mulher, depois de Hillary Clinton em 2016. E também frente a Donald Trump. .Mas a campanha da ex-primeira dama e ex-secretária de Estado contrasta bastante com a de Harris agora. A começar pelo seu slogan - “Estou com ela” - quando agora a vice-presidente e o seu candidato a vice, o governador do Minnesota Tim Walz optaram por um combativo “Quando lutamos, ganhamos”. No discurso em que reconheceu a derrota em 2016, Clinton garantiu: “Eu sei que ainda não estilhaçámos o teto de vidro mais alto e mais duro - mas um dia alguém o fará e esperemos que mais cedo que pensamos neste momento”. Na Convenção que confirmou Harris, a ex-secretária de Estado voltou ao tema: “Juntos, abrimos muitas brechas neste teto de vidro mais alto e mais duro. Do outro lado deste teto de vidro está Kamala Harris a levantar a mão e a jurar como 47.ª presidente dos EUA”..Ana Monica Fonseca admite: “é claro que o teto de vidro está lá e bem presente. São poucas as mulheres a ocupar cargos de liderança política no contexto nacional americano e sobretudo nos cargos de topo”. A diretora do CEI-IUL está convencida que “estando a concorrer com a dupla Trump-Vance, Harris será sempre visada pela sua condição feminina, que será reforçada também pelo facto de nenhuma mulher ter conseguido alcançar o que ela quer alcançar, ser presidente. O argumento de ‘não vai ser agora, não estamos preparados, é uma mudança demasiado radical’ poderá sempre pesar na cabeça dos eleitores mais indecisos e mais ao centro, quer democratas quer republicanos.” E por isso acredita que “a sua postura quase contida relativamente a esta questão se deva também à necessidade de captar votos republicanos, de virar os estados republicanos a seu favor, de modo a apresentar-se como uma presidente que virá trazer um espírito de entendimento e concertação entre as duas Américas, agora tão distintas entre os apoiantes de Trump e os que estão contra ele.” Ainda assim, prossegue a professora, Harris “não esconde que as suas políticas serão claramente de defesa dos direitos associados às mulheres e que foram diretamente atacados pela presidência Trump, nomeadamente na questão do aborto e direitos reprodutivos.”.Também Otília Macedo Reis sublinha a natureza histórica da candidatura de Harris. Para a diretora executiva da Comissão Fulbright Portugal, grande conhecedora da sociedade americana, “é sempre bom ter mulheres com condições para aceder a posições de liderança, tanto na política como noutras áreas”. E acredita que “vai ser uma eleição emocionante e potencialmente surpreendente à Casa Branca”. Sobre a capacidade de Harris ir buscar votos dos indecisos, Diana Soller é mais cética: “O número de indecisos e de eleitores que podem mudar de ideias e simultaneamente vão às urnas é muito reduzido.” A investigadora do IPRI/NOVA recorda mesmo assim que “as últimas sondagens revelam que Kamala cresceu entre o eleitorado feminino, o que é positivo para a sua candidatura.”.Desde que foi confirmada como candidata, Kamala Harris tem vindo a ganhar vantagem sobre Trump nas sondagens. A última Reuters/Ipsos dá-lhe 45% das intenções de voto, contra 41% para o republicano. Uns meros quatro pontos de diferença que dizem ainda menos num país onde o voto não é direto e a batalha é ganha nuns poucos estados cujo voto é decisivo para ter a maioria no Colégio Eleitoral. .É verdade que o mesmo estudo mostra Harris 13 pontos à frente de Trump no voto feminino. Mas não é de espantar quando a linha de ataque do ex-presidente contra a rival tem quase sempre o seu género na mira, além de referências à sua raça - Harris é filha de uma indiana e de um jamaicano. Também JD Vance despertou a ira das feministas quando ressurgiu um seu comentário sobre as “childless cat ladies” (à letra, “as senhoras dos gatos sem filhos”) que, segundo ele, põem em causa a família tradicional e o futuro dos EUA. Ora se não são conhecidos animais de estimação a Harris, a vice-presidente não tem, de facto, filhos, mas recebeu logo o apoio dos enteados, Cole e Ella. .Ao seu lado no difícil caminho até à Casa Branca, Harris tem o vice, Tim Walz, que com o seu passado de professor e treinador de liceu e a sua luta contra a infertilidade pode ser uma arma poderosa. “A escolha de Tim Waltz procurará clarificar esta postura: Harris não está contra as famílias ‘tradicionais’, pelo contrário, quer arreigar-se de ser a representante também das ‘verdadeiras’ famílias tradicionais, dos que são de classe média, que estão envolvidas na comunidade, que passam por desafios e que os ultrapassam juntos”, garante Ana Mónica Fonseca. A diretora do CEI-IUL recorda que “a imagem de Tim Walz é a oposta de Trump. Walz passa como alguém que está presente, que é cuidador, que assume as suas fragilidades e se afasta das tradicionais imagens de masculinidade tóxica tão presentes no lado do candidato republicano. Perante isto, acho que será determinante para captar as simpatias dos eleitores mais indecisos, e reforçar o voto feminino em Kamala Harris.”.Para Diana Soller, o que Harris e Walz estão a fazer é “mostrar a sua face mais humana, mais pessoal aos eleitores para captarem a sua empatia” A investigadora lembra que “toda a Convenção Democrata andou à volta desse tema: os candidatos, os oradores, mesmo os que ocuparam cargos importantes no establishment americano, apresentaram-se como pessoas da classe média com os mesmos problemas que todos nós temos - incluindo Walz e Kamala”. E remata: “a mensagem essencial foi essa. Uma tentativa de fazer com que os eleitores se identifiquem com eles.”.PIONEIRAS.Hillary Clinton .Até Harris, Clinton era a única mulher candidata à presidência dos EUA por um grande partido. Primeira-dama muito política, senadora por Nova Iorque, secretária de Estado de Barack Obama, para quem perdera a nomeação democrata em 2008, em 2016 perdeu as presidenciais para Trump, apesar de ter mais 3 milhões de votos populares. Geraldine Ferraro .Congressista por Nova Iorque, em 1984 tornou-se na primeira mulher candidata à vice-presidència por um grande partido. Ao lado do democrata Walter Mondale, sofreu pesadíssima derrota face a Reagan. Morreu em 2011 aos 75 anos. Sarah Palin .Governadora do Alasca, foi a escolha de John McCain para vice no ticket republicano que seria derrotado por Obama/Biden nas presidenciais de 2008. Em 2022 tentou voltar à política mas perdeu a eleição para a Câmara dos Representantes.