“Kamala Harris não é consensual porque é uma candidata da esquerda mais radical do Partido Democrata”
A decisão de Joe Biden de desistir da corrida veio demasiado tarde ou ainda há tempo para Kamala Harris ou outro candidato poderem derrotar Donald Trump em novembro?
O ideal era Joe Biden ter decidido não se recandidatar para haver primárias, porque na realidade esta sua fragilidade não há de ter começado no dia antes do debate de 27 de junho, que foi o que motivou todas estas mudanças. O ideal teria sido mesmo a não recandidatura. Desde o debate que se tornou perfeitamente claro que não era possível Joe Biden manter-se como candidato, portanto, do meu ponto de vista, devia ter desistido nos dias seguintes.
Mas ainda há tempo? O Partido Democrata esteve bastante dividido nestes últimos dias e agora parece estar a unir-se atrás de Kamala Harris...
Eu acho que é um bocadinho cedo para termos a certeza que o Partido Democrata se está efetivamente a unir em torno de Kamala Harris. Há figuras sobejamente importantes do partido que ainda não se pronunciaram, como Barack Obama. Há doadores que ainda não se pronunciaram, e esse pronunciamento deveria ter sido imediato se houvesse uma unanimidade. Acredito que o partido está é a pensar que uma espécie de miniprimárias até à convenção de meados de agosto pode ser mais prejudicial do ponto de vista eleitoral do que manter a candidatura de Kamala. Não sendo consensual, porque é da esquerda mais radical do Partido Democrata, ela precisa efetivamente de começar a fazer campanha o mais rapidamente possível.
O que é que falhou a Kamala Harris nestes três anos e meio para não surgir, logo desde o início, como candidata?
Duas coisas. A primeira foi o facto de Biden não lhe ter dado qualquer visibilidade enquanto vice-presidente, portanto os americanos não conhecem Kamala Harris. A segunda é exatamente aquilo que eu estava a dizer: Kamala Harris está à esquerda no Partido Democrata e Joe Biden tentou evitar, até o último momento, isto é a minha convicção, que o partido ficasse na mão de alguém que não tem uma agenda moderada. O que me parece é que Biden candidatou-se à reeleição precisamente para evitar que houvesse esse mal, para evitar que um candidato mais radical pudesse ganhar as primárias. No entanto, acabou por cair na própria armadilha, porque deixou de ter capacidade e, quem aparece como candidato natural, é precisamente quem Biden não queria que fosse candidato. Há aqui um problema grave dentro do Partido Democrata que não vai ficar resolvido, parece-me, mas que pode introduzir o partido numa crise profunda, principalmente se Kamala Harris não ganhar as eleições.
A escolha do candidato a vice-presidente poderá servir para balançar esse radicalismo da Kamala Harris?
Dificilmente, porque não há nenhuma figura do Partido Democrata, com algum relevo nacional e internacional, que se sujeite a ser o ou a vice-presidente de Kamala Harris. Provavelmente, a figura que vai surgir será um moderado, sim, mas um moderado sem expressão, sem importância política no partido ou nível nacional.
Do lado dos republicanos, isto obriga a mudar a campanha? Já não podem usar o argumento da idade, por exemplo. Como é que acha que os republicanos vão responder?
Os republicanos vão responder com a questão das guerras culturais. Quer dizer, vão dissecar Kamala Harris até onde puderem, e não é difícil, porque ela tem uma carreira pública. E vão tentar demonstrar que Kamala Harris é uma representante dessa ala mais à esquerda. Estamos a partir sempre do princípio que vai ser ela a candidata, mas até ao fim da convenção ainda não é certo. Agora, também é importante dizer, porque é a realidade, que qualquer que seja o candidato parte de uma desvantagem estrondosa relativamente aos republicanos, que estão em campanha há mais de um ano e apresentam-se como um partido unido à volta de um líder que, ainda por cima, agora clama que é ungido por Deus e que se salvou de uma tentativa de assassinato por intervenção divina. Portanto, qualquer candidato democrata vai ter muitas dificuldades em ganhar as eleições.
susana.f.salvador@dn.pt