Conta no livro que esteve, pelo menos, 15 vezes com Vladimir Putin, mas destaca uma reunião em 2006, perto de Moscovo, quando era chefe de gabinete de Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia. Foi uma reunião numa casa oficial, um grupo restrito, alguma intimidade. O que aprendeu sobre o presidente russo nesse dia?A razão por que eu estive mais ou menos 15 vezes com Vladimir Putin é que, nessa altura, na UE, tínhamos duas cimeiras anuais com a Rússia, o que traduz a importância do investimento que estávamos dispostos a fazer nessa relação. A isto juntava-se a Cimeira do G8 anual e, mais tarde, durante a crise financeira, ainda as cimeiras do G20. E essas eram as cimeiras formais. Havia outros encontros, como o que eu descrevo, que eram mais informais, one-on-one entre o presidente da Comissão Europeia e o presidente da Federação Russa. Este, de 2006, foi um dos mais íntimos e, para mim, dos mais interessantes. O Putin que eu encontrei nessa altura era um homem muito penalizado com o fim da União Soviética, que ele considerou publicamente como sendo uma das maiores catástrofes do século XX. Também considerava ter um grande peso sobre os ombros ao liderar um país como a Rússia, que ele considerava extraordinariamente complicado de gerir. E todas essas dimensões ficaram visíveis na conversa. O último encontro com Vladimir Putin em que participei deve ter sido em 2010 e de então para cá aconteceu muita coisa. A observação que faço à distância é de um homem que mantém o essencial dos traços que eu detetei entre 2005 e 2010, mas que esses traços, que nós já detetávamos nessa altura, se agravaram, se tornaram mais negativos e mais sombrios. Na altura, o principal problema dele connosco era um acordo de associação com a Ucrânia que ele achava que ia tratar de “capturar” a Ucrânia. Ainda não se falava do problema da NATO. E depois as coisas ficaram ainda mais complicadas a partir de 2007, quando ele fez o famoso discurso na Conferência de Munique, onde basicamente disse: “Se vocês estão a alargar a NATO é porque querem atacar-nos, não pensem que isto fica assim.” Depois invadiu a Geórgia, em 2008, e foi por aí fora, com a anexação da Crimeia em 2014 e a invasão frontal da Ucrânia em 2022. Putin optou pelo lado sombrio da Rússia e pelo lado sombrio da História.Quando fala dessa reunião, em 2006, estamos a falar de cinco anos depois do 11 de Setembro, de já 15 anos depois da desagregação da União Soviética, mas parecia ser uma época em que, apesar de tudo, as grandes potências eram mais dialogantes entre elas, em que os Estados Unidos, a Rússia e a China não estavam numa competição tão aberta. Foi uma época ilusória, ou seja, as grandes potências estão condenadas a enfrentar-se?Lembre-se que Putin estava no G8, foi anfitrião da cimeira em São Petersburgo, e também estava em Gleneagles, em 2005, importante cimeira que eu também descrevo no livro. Portanto, a Rússia fazia parte do grupo das grandes potências Ocidentais - do qual não constavam obviamente nem a China, nem a Índia -, que tinham aceitado a Rússia pós-soviética num gesto de abertura e de integração. Às vezes as pessoas esquecem-se disso, mas Putin esteve no G8 até à anexação da Crimeia..A própria China, nessa altura, não era vista como um rival, ainda, pelos próprios Estados Unidos?A China estava numa fase muito diferente: tinha acabado de aderir à Organização Mundial do Comércio em 2001, o que aliás foi um momento muito importante a que também faço referência no livro. A relação entre as potências era muito diferente. Obviamente havia grandes diferenças entre os Estados Unidos e a Rússia, e entre os Estados Unidos e a China, mas havia um entendimento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, havia diálogo político e relações comerciais normais. Nós, nessa altura, na UE, e sobretudo quando Dmitri Medvedev esteve como presidente e Putin era primeiro-ministro, tínhamos um grande objetivo de estabelecer um novo acordo com a Rússia, com vista à modernização da economia russa e ao estreitamento das relações bilaterais. A Rússia integrava na época um grupo de contacto com a NATO, onde havia comunicação, troca de informações entre chefias militares. E tudo isso ia no sentido de dizer que, embora houvesse diferenças de fundo, entre nós europeus e a Rússia, entre os Estados Unidos e a Rússia, havia uma vontade comum de se cooperar, de conversar, de fazer coisas em conjunto à medida do possível. As coisas depois agravaram-se substancialmente e aceleraram de forma muito negativa, a partir de 2007/ 2008, quando se percebeu que, afinal, o sr. Putin não acreditava verdadeiramente nesta vontade de cooperação e que estava muito marcado pelo fim da União Soviética, e estava a ver como uma ameaça quer a aproximação da União Europeia aos países da antiga União Soviética, com o alargamento de 2004, quer, depois, a aproximação à Ucrânia. E depois, sobretudo, a expansão da NATO até à fronteira com a Rússia, e aquela oferta, na Cimeira de Bucareste, para a Ucrânia e a Geórgia poderem, eventualmente, vir a ser também membros da NATO. Tudo isso precipitou uma radicalização do lado do Putin, que é o que temos hoje.Nessa época, a União Europeia mostrava um especial dinamismo, com o grande alargamento a Leste de 2004, 10 países, depois a Bulgária e a Roménia passado pouco tempo. Quando nós olhamos hoje para a União Europeia, obviamente que não tem esse fogo, esse dinamismo, e a minha pergunta é: o que é que fez mais mossa no projeto europeu? Mais do que a crise do Euro, com as divisões todas que vieram ao de cima, foi o Brexit, a saída de um país tão crucial como o Reino Unido, que abalou a UE?Costumo dizer que o Brexit é uma má ideia bem vendida e mal contrariada. Nesse sentido foi uma má ideia do ponto de vista do Reino Unido, como foi uma má ideia para a União Europeia. Agora, não me parece que seja o fator mais determinante das dificuldades que temos atualmente. Acho que o fator principal das nossas dificuldades atuais na UE é, sobretudo, a combinação do que eu chamo o fator Putin-Trump-Xi, a combinação da ameaça à nossa segurança, que representa atualmente o sr. Putin, as consequências negativas do distanciamento e do retraimento dos Estados Unidos em relação à Europa e, em terceiro lugar, o ressurgimento da China como um ator global, colocando desafios importantes à União Europeia. Então, diria que a UE é afetada por esse fator externo triplo, e depois também pelo fator interno, que é a questão do populismo. O meu livro é sobre dois divórcios: é sobre o divórcio global entre as nações, o colapso da ordem que nós conhecemos na segunda metade do século XX e, sobretudo, depois do fim da Guerra Fria; e depois o divórcio no seio de cada nação - a oposição entre uma elite mais globalista e as forças populistas que exploram os instintos mais básicos de uma parte da opinião pública. A combinação destes dois divórcios - que interagem e que têm efeitos negativos um sobre o outro - é, a meu ver, a raiz fundamental dos problemas que nós temos atualmente. O Brexit faz parte disso porque enfraqueceu a União, enfraqueceu o Ocidente, e, a meu ver, enfraqueceu também o Reino Unido.Menciona a expansão dos populistas, mas também se diz que a Europa deixou de produzir líderes que sejam mobilizadores, ou seja, que encarnem convictamente os valores da Europa. Da sua experiência de lidar com políticos europeus, lidou muitos anos com a chanceler Angela Merkel. Foi esta alemã a última grande líder da Europa ou mesmo ela já não tinha esse papel agregador?Os líderes são eles próprios e a sua circunstância, como qualquer ser humano. Portanto, é difícil analisar os líderes sem ter em conta o contexto em que eles atuaram. O que eu vejo atualmente na Europa são governos relativamente fracos, geralmente em coligação e em coligações difíceis de gerir, portanto uma fragmentação do sistema político, que já começa a acontecer também em Portugal, mas acontece em França, acontece na Alemanha, acontece também no Reino Unido, embora o sistema eleitoral britânico esconda o real impacto dessa fragmentação. Temos, na maioria dos casos, ou governos minoritários, com um só partido, mas com fraco apoio parlamentar, ou governos de coligação maioritários mas relativamente instáveis. Governos que estão sob pressão de forças populistas, quer à esquerda, quer à direita, que têm uma agenda muito oportunista e muito a curto termo. O mundo é mais difícil de governar hoje do que era no final do século passado, isso é muito claro. Tivemos ali um período chamado de “fim da história”, em que as coisas eram mais fáceis de gerir, mas atualmente é muito mais complicado. Por todas estas razões, eu tenho alguma dificuldade em acusar individualmente os líderes, embora naturalmente eles não possam ser totalmente ilibados..Falou do fator triplo externo que afeta a Europa. O desafio maior, neste momento, além da ameaça da Rússia, e da competição da China, é lidar com o aliado transatlântico? Donald Trump traz novidades absolutas na América, ou as suas políticas, estilo pessoal à parte, são a continuidade de uma tendência que já se sentia?Trump é sintoma e causa. É causa, sem dúvida, mas também é sintoma. Não nos podemos esquecer que Trump foi eleito democraticamente, foi eleito pelos votos dos cidadãos americanos e tem por isso legitimidade e representatividade. Agora, neste século, um país que elegeu sucessivamente George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump, Joe Biden e depois, outra vez, Donald Trump, é um país que está à procura do seu caminho, de alguma maneira. Portanto, por um lado, Trump é o sintoma de um mal-estar americano, que eu tento explicar um pouco no livro, mas, ao mesmo tempo, é também um acelerador dessa tendência. E os seus dois mandatos são dois mandatos muito negativos na medida em que acentuam essa fragmentação, essa divisão dentro dos Estados Unidos e, nesse sentido, Trump é causa do problema também. Mas não deixa de ser sintoma. O que é que está na agenda dessa realidade? Eu tento explicar isso no livro. É a tensão, sempre permanente na História Americana, entre o isolacionismo, a tentação isolacionista, e o excecionalismo, ou seja, o facto de os americanos considerarem que o país deles é excecional, com uma ligação direta a Deus. Há um misticismo americano que está muito presente. Daí essa contradição entre isolacionismo e intervencionismo, que é um sinal do excecionalismo americano. Essa tensão está sempre aí. Eles foram isolacionistas até Franklin Roosevelt decidir entrar na Segunda Guerra Mundial, sobretudo porque foram atacados em Pearl Harbor. Depois tiveram o intervencionismo “neocon” de George W. Bush, depois de atacados no 11 de Setembro. Mas também tiveram a racionalidade de Obama que no fundo disse : “Eu não quero entrar em guerras eternas, eu não vou arriscar a vida de americanos.” O que explica o que ele fez ao ignorar as suas próprias linhas vermelhas no caso da Síria. Portanto, temos, no fundo, manifestações dessa oscilação da política externa americana que, a meu ver, traduz essa tensão entre o isolacionismo e o intervencionismo, sob o manto do excecionalismo.Mas hoje afeta especialmente a Europa, não é?Neste momento, nós europeus somos uma das principais vítimas da acentuação dessa tendência neste segundo mandato de Trump. Por isso digo que o fator externo que nos afeta tem uma componente triangular - uma componente americana, uma componente russa e uma componente chinesa -, para além do nosso fator interno, que é importante, da desagregação por causa do fenómeno populista. Portanto, a minha esperança atualmente, falando da União Europeia, é de que a crise atual seja, enfim, isto é um bocadinho paradoxal de dizer, mas a minha esperança é de que a crise atual seja suficientemente séria para desencadear o instinto de sobrevivência da União..Então e a NATO? Acha que a NATO também está em risco ou não?Eu acho que está em sério risco, obviamente, porque a NATO sem a América é um outro animal. Mas deixe-me dizer algo que tem a ver com tudo o que estamos a dizer sobre a relação entre os Estados Unidos e a União Europeia. Não devemos desistir da América de forma irresponsável e precipitada. Eu acho que é cedo demais para desistir da América. Porque temos tido as tais oscilações nos últimos 25 anos, e eu não sei quem é que se vai seguir a Trump. A América não vai ser nunca mais o que era antes, no sentido de ser o polícia do mundo, de estar aberta, no fundo, a salvaguardar a segurança da Europa. Não tenhamos ilusões, não voltará a ser como era, mas não será necessariamente como é atualmente. Portanto, do meu ponto de vista, do ponto de vista europeu, não devemos desistir da América. Não podemos dar-nos ao luxo de desistir da América e não parece que a América esteja já num ponto de situação em que desistiu também da Europa. Portanto, temos de gerir isto com inteligência e resiliência.Foi embaixador da UE nos Estados Unidos, tal como no Reino Unido, mas também na ONU. Pela sua experiência, pelo que viu acontecer nos bastidores, ainda há espaço para o multilateralismo?A minha frase preferida em relação às Nações Unidas atualmente é dizer que não devemos deitar fora o bebé com a água do banho. E a água do banho é uma crise fundamental. As Nações Unidas, em alguns momentos recentes, estiveram muito perto da irrelevância, mas se nós deitarmos o bebé fora com a água do banho, com o que é que ficamos? Somos capazes de recriar, de refazer as Nações Unidas? Não me parece. Ou seja, antes de deitarmos o bebé, deitemos a água fora, vamos tentar melhorar as coisas, mas vamos tentar preservar o bebé para que ele possa crescer quando as condições forem mais favoráveis. Mas é preciso entender que as Nações Unidas não podem funcionar se o Conselho de Segurança não funcionar. E o Conselho de Segurança não funciona se os seus membros permanentes - os P5 - não funcionarem. Quando os membros permanentes são a causa da crise das Nações Unidas, como por exemplo a Rússia ,quando viola claramente a Carta das Nações Unidas de forma sistemática nos últimos anos, ou a China boicotando alguns eixos de ação, ou os Estados Unidos funcionando à margem da Carta, é evidente que os P5 não funcionam, e se os P5 não funcionam o Conselho de Segurança não funciona. E se o Conselho de Segurança não funciona, as Nações Unidas não funcionam, a começar com o secretário-geral. As pessoas muitas vezes dizem: “Ah, o secretário-geral por que é que ele não faz mais?” O secretário-geral tem o poder que o Conselho de Segurança lhe dá, e que a Assembleia-Geral lhe dá, mas sobretudo o Conselho de Segurança. Então não podemos pedir ao secretário-geral que faça omeletes sem ovos. E, de facto, o Conselho de Segurança não está a dar esse mandato, claro, e esse apoio e essa solidez de que o secretário-geral precisa. Portanto, eu ainda acredito nas Nações Unidas, elas têm de ser reformadas e António Guterres tem feito muito para as reformar, mas ele tem de contar com os Estados-membros. As Nações Unidas serão o que os Estados-membros das Nações Unidas quiserem que elas sejam. Agora, se temos os P5, que não se entendem; se temos os P5, que violam a Carta,; se temos os P5, que retiram o financiamento, como está a fazer agora o Sr. Trump, como é que se quer que as Nações Unidas funcionem? Agora, antes de deitarmos fora o bebé com a água do banho, vejamos que alternativas é que temos e se elas são melhores do que as Nações Unidas. Não me parece que haja, no mercado, nenhuma alternativa a não ser um divórcio total entre as Nações. Ou seja, uma situação em que não temos um sistema unificador, um sistema de referência, quer em termos de valores, quer em termos de atuação, e que no fundo se crie ou uma divisão muito clara entre, por um lado, o mundo americano e o mundo chinês, ou por outro, uma divisão em zonas de influência, uma americana, uma chinesa, uma russa ou euro-asiática, sabendo, no entanto, que a existência destas esferas de influência tendem, mais tarde ou mais cedo, a entrar em choque entre si. O divórcio das Nações não nos dá nenhuma garantia de segurança.Neste contexto de divórcio das nações, o título do seu livro, que teve edição original em inglês, Portugal só tem uma solução, que é continuar a apostar no projeto europeu a par do atlantismo tradicional?Portugal, e eu digo isso na introdução que fiz para a edição portuguesa, tem uma opção europeia e atlântica que é certa, que é correta e que não tem alternativa. Essa opção tem sido objeto de um largo consenso nacional. No entanto, temos de ter atenção àqueles que poderão pensar em pôr em causa essa opção. Portugal não pode dar-se ao luxo de estar só, nem sequer orgulhosamente só, no mundo atual. Portanto, temos de ser muito realistas, muito frios na análise, e a nossa análise diz claramente que Portugal, no mundo atual, tem de fazer parte de grupos de nações solidárias, e esses grupos são claramente a União Europeia e a NATO. No entanto, para Portugal ser um membro eficaz, eficiente, efetivo e credível dessas organizações, tem de se empenhar nesses projetos. Portugal é um país de média dimensão na UE e na NATO, mas à escala mundial é um país pequeno, e tem de apostar nessas opções fortes. Por isso, eu gosto sempre de ver Portugal na linha da frente da construção europeia, como estivemos em relação ao Euro, como devemos estar em relação à Ucrânia e ao alargamento, mesmo que alguns pensem que ele pode ter alguns custos de curto prazo para Portugal. Mas, do ponto de vista estratégico, Portugal tem de estar sempre na linha da frente da Construção Europeia, como tem de estar na linha da frente da Defesa Europeia e do reforço da NATO e do reforço da cooperação entre a União Europeia e a NATO. Essa é a única maneira de Portugal ter a sua capacidade de garantir a solidariedade em caso de problemas : ser solidário com os outros para que os outros sejam solidários connosco. Dito isto, temos também de não esquecer o que são alguns dos nossos trunfos adicionais. Nós temos a relação com a África, claramente, e a relação com a América do Sul e com a lusofonia em geral, que nunca deve ser descurada. Mas isto serve de pouco se Portugal não estiver seriamente ancorado na sua relação com a Europa e com os Estados Unidos.