Javier Milei, o extremista vencedor das primárias que está a agitar a Argentina

O economista beneficiou do voto dos descontentes e da abstenção. Ao triunfar nas primárias apresenta-se como a alternativa da extrema-direita ao bloco peronista-kirchnerista e ao bloco da direita tradicional.
Publicado a
Atualizado a

Tem uma melena que o identifica num fósforo, como Boris Johnson, e patilhas que o Carlos Menem dos anos 80 não desdenharia. Em cima do palco ou na televisão é abrasivo como Donald Trump, e quando Lula da Silva venceu as presidenciais brasileiras ligou ao derrotado Jair Bolsonaro para felicitá-lo pelo resultado. Javier Milei é a sensação política do momento, ao ficar em primeiro lugar nas primárias abertas, simultâneas e obrigatórias (PASO), beneficiando da profunda crise económica e de um sistema político dominado pelo duopólio do peronismo e da direita.

As PASO excluíram 23 candidaturas - ficam agora cinco concorrentes à primeira volta das presidenciais, que se disputam em 22 de outubro - mas sobretudo elevaram o economista Javier Milei à condição de principal figura. Apesar de o voto ser obrigatório entre os 18 e os 70 anos, registou-se uma abstenção elevada (30,4%), e ainda 6% de votos em branco e nulos, sinais de desencanto com a classe política, a mesma que Milei promete despachar "com pontapés no cu".

No hotel em que Milei esperou pelos resultados festejou-se como se o candidato tivesse já sido o sucessor de Alberto Fernández, enquanto à porta os seus seguidores gritavam "a casta tem medo". As sondagens previam 20% dos votos e o líder da Liberdade Avança acabou por recolher 30%, mais do que os votos da coligação de direita Juntos pela Mudança (28,2%) que escolheram Patricia Bullrich em detrimento do presidente da autarquia de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta.

Citaçãocitacao"Uma Argentina diferente é impossível com aqueles que sempre falharam. Somos uma alternativa que não só acabará com o kirchnerismo, mas também com toda a casta política parasitária que arruinou este país." Javier Milei

Em terceiro (27,2%) ficou o bloco peronista-kirchnerista, tendo os eleitores optado por Sergio Massa, que promete um governo de "unidade nacional", mas os números estão contra o atual ministro da Economia. Não tanto por partir para a campanha eleitoral em terceiro, mas porque o país debate-se com 115% de inflação e 43% da população sobrevive abaixo da linha da pobreza - o que ajudará a explicar a ausência na campanha do presidente Fernández e da vice Cristina Kirchner.

Quem medrou no pântano de um sistema político que não aprendeu as lições da bancarrota de 2001 foi Javier Milei, de 52 anos. Defensor da menor intervenção estatal na economia, deu-se a conhecer fora do meio académico como colunista na imprensa e autor de um programa de rádio, até se tornar num popular conferencista e personalidade nas redes sociais que não se furta ao insulto. Para ganhar adeptos não tem qualquer problema em recorrer a expedientes populistas como entregar o salário de deputado através de um sorteio.

E o que defende Milei? As suas ideias vagueiam entre o neoliberalismo resultante da chamada escola austríaca, um autoproclamado anarcocapitalista, ou seja a oposição a quase tudo o que seja do Estado. Em concreto, para pôr cobro à inflação, Milei propõe trocar o peso argentino pelo dólar e, posteriormente, "dinamitar" o Banco Central, que é para si fonte de todos os problemas do país.

Se chegar à presidência, o economista quer eliminar boa parte dos ministérios, incluindo o da Educação, mas foi quando disse que iria fechar o Ministério da Mulher que estalou a polémica. "Não vou pedir perdão por ter um pénis" foi o seu argumento, ao que a ministra da tutela Elizabeth Gómez Alcorta respondeu na mesma moeda: "Parece ridículo fechar um ministério por ter pénis." Além de se mostrar contra o feminismo, passou a definir-se contra o aborto, cuja legalização foi aprovada em 2020. Outras medidas que defende são o porte livre de armas e a criação de um mercado de órgãos para transplante. Sobre o meio ambiente afirma que as alterações climáticas são "uma mentira do socialismo".

Ao ter como amigo Eduardo Bolsonaro e ao manter relações estreitas com o Vox, partido de extrema-direita espanhol, Milei demonstra que não é só "libertário". E se é verdade que não se diz saudosista da ditadura militar que governou o país com punho de ferro entre 1976 e 1983, tem como número dois Victoria Villarruel, que quer reescrever a história, e afirma que a esquerda exagera no número de vítimas da repressão.

Há mais de um ano, a cientista política Ana Iparraguirre já antecipava que as hipóteses "reais" de Milei chegar à Casa Rosada. "O que mais me preocupa é que este discurso virulento, com traços antidemocráticos, pode produzir cicatrizes a longo prazo que são mais graves do que quem quer que ganhe", comentava ao Washington Post.

Victoria Eugenia Villarruel, de 48 anos, é a candidata a vice-presidente ao lado de Milei, repetindo a posição com que ambos foram eleitos deputados nas legislativas de 2021. O seu perfil não é espalhafatoso, mas não menos controverso.

Filha de um tenente-coronel que fez parte de operações militares classificadas em tribunal em 2012 como um "genocídio" - a morte de 30 mil pessoas -, a advogada ganhou notoriedade por negar os crimes da ditadura. Criou um centro de estudos sobre o terrorismo, no qual tem defendido que as verdadeiras vítimas foram os militares, e acusa o kirchnerismo de proteger os ex-guerrilheiros que sobreviveram.

cesar.avo@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt