Uma cama de solteiro, uma mesa, uma cadeira, um armário, uma casa de banho privada, uma televisão, um aparelho de ar condicionado e um mini frigorífico numa sala de 12 m², com janela, isolada das celas comuns do edifício da Superintendência da Polícia Federal (PF) em Brasília, é o espaço onde Jair Bolsonaro já começou a cumprir a pena de prisão de 27 anos e quatro meses por tentativa de golpe de estado, a que foi condenado a 11 de setembro.O ex-presidente, que segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) liderou um plano que visava derrubar e até assassinar, entre outras autoridades, Lula da Silva, que o derrotara nas eleições de 2022, escapou da degradada e sobrelotada prisão da Papuda, o seu maior temor, mas ainda sonha com o cumprimento da pena na vivenda em que mora num condomínio de luxo a poucos quilómetros dali, por questões de saúde. Por agora, está numa cela semelhante à que Lula ocupou, na Superintendência da PF de Curitiba, por 580 dias, entre 2018 e 2019. Michel Temer e Collor de Mello são os outros presidentes detidos após a redemocratização de 1985.Entretanto, na cela em que está Bolsonaro, de 70 anos de idade, o juiz relator do processo, Alexandre de Moraes, autorizou-o a ter cuidados médicos à disposição 24 horas ao dia por causa de refluxo grave, doenças cardíacas, pneumonia recorrente, neoplasia maligna da pele e mais seis problemas de saúde listados pelos seus advogados, e a manter uma alimentação especial levada por aliados. “Ele tem essa preocupação de que pudessem fazer alguma coisa com ele aqui, não está a desconfiar dos agentes da PF, mas não sabe da origem da comida até chegar à mesa dele, qual o trajeto, por quais mãos passa”, advertira o senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho de Jair.A defesa do ex-presidente argumenta, por outro lado, que há jurisprudência no caso de Collor, condenado por corrupção já este ano mas a cumprir pena domiciliar, mas o STF deve recusar requerimentos nesse sentido, ainda mais depois de o próprio Bolsonaro ter admitido que tentou derreter a pulseira eletrónica quando estava em casa por culpa, alegou, de “uma alucinação”. E de, noutras oportunidades, ter pedido asilo à Argentina, presidida pelo aliado Javier Milei, passado duas noites na embaixada da Hungria, sob regime do amigo Viktor Órban, e violado a proibição de uso de redes sociais. Assim, Bolsonaro, que na quarta-feira, 26 de novembro, passou por audiência de custódia e viu o STF ratificar a decisão da prisão, terá obrigatoriamente de cumprir parte da pena em regime fechado, isto é, sem poder sair da cadeia, mas deve, com tempo de detenção e bom comportamento, progredir para regimes mais brandos, à luz da legislação brasileira. Essa legislação, no entanto, ficou mais rígida em 2019 por decisão do próprio Bolsonaro, presidente à época.Os advogados do ex-presidente reclamam, por outro lado, da recusa do STF em aceitar “embargos infringentes”, o último recurso possível. Mas a corte entendeu que como os réus foram condenados por quatro votos a um, esse recurso, supostamente utilizável apenas em casos de 3-2, não cabe. No Congresso Nacional, parlamentares bolsonaristas insistem na aprovação de uma amnistia a Bolsonaro e demais envolvidos no plano de golpe, apostando numa momentânea relação deteriorada entre as chefias do poder legislativo, da Câmara dos Deputados e do Senado, e os líderes parlamentares ligados a partidos do Governo Lula. E, na internet, páginas de apoiantes de Bolsonaro revoltados com a prisão falam em greve de camionistas como protesto, segundo o jornal Metrópoles. Dos oito condenados do chamado “núcleo crucial” do plano de golpe, só Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, cumpre pena na Papuda mas numa cela individual, com direito a duas visitas por semana e pista de caminhada num edifício à margem dos principais, chamado de Papudinha. Como Torres foi delegado de polícia, a mesma polícia diz que, com esse tratamento, “preserva a integridade física, moral e psicológica” do preso.Os generais Augusto Heleno, que foi ministro do Gabinete Institucional, e Paulo Sérgio Nogueira, que ocupou a pasta da Defesa, estão presos no Comando Militar do Planalto, ainda em Brasília. A prisão do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, é nas instalações da própria força náutica, ainda na capital brasileira.Dos outros três réus, o general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice de Bolsonaro em 2022, já está preso preventivamente desde dezembro na Vila Militar, no Rio de Janeiro, o ajudante de ordens da presidência, Mauro Cid, cumpre apenas dois anos em regime aberto, por ter colaborado com a justiça, e o ex-diretor da agência brasileira de inteligência, Alexandre Ramagem, visto num condomínio de luxo na Flórida, é considerado foragido da justiça.É a primeira vez na história do Brasil que militares cumprem pena por golpe de estado, depois de em 1964 terem protagonizado um, nesse caso bem sucedido, que resultou em 21 anos de ditadura. Os militares em causa incorrem ainda na perda dos postos por, de acordo com a Constituição brasileira, o oficial condenado a mais de dois anos de prisão poder ser expulso da corporação. A propósito, José Múcio, atual ministro da Defesa, considerou a prisão dos militares “um fim de ciclo”. “Este doloroso processo teve um princípio, teve um meio desagradável e teve um fim com a prisão de pessoas mas com as instituições preservadas”. No plano político, com a prisão de Bolsonaro cresce, entretanto, a pressão sobre Tarcísio de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura e atual governador de São Paulo, a concorrer pelo campo da direita (e da extrema-direita) à presidência em 2026 contra o já declarado pré-candidato Lula. Tarcísio, no entanto, diz que “a prisão" do amigo "não muda nada” e que em 2026 será candidato à reeleição no estado mais populoso e mais rico do Brasil. CRONOLOGIA202230 de outubroLula vence Bolsonaro com 50,9% dos votos 20238 de janeiroInvasão à Praça dos Três Poderes, em Brasília, por apoiantes de Bolsonaro21 de setembroNo telefone de Mauro Cid, ajudante de Bolsonaro, a Polícia Federal (PF) descobre planos de golpe; Cid aceita colaborar com as autoridades 202421 de novembroApós mais de um ano de investigação, PF acusa 34 pessoas por participação no golpe, incluindo Bolsonaro, como líder da organização, ex-ministros e militares que planearam assassinato de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) 14 de dezembroBraga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa de Bolsonaro e candidato a vice dele nas eleições de 2022, é detido 202526 de marçoSTF recebe denúncia da PGR contra Bolsonaro4 de agostoAlexandre de Moraes decreta prisão domiciliar a Bolsonaro por incumprimento da regra de não usar redes sociais2 de setembro“Núcleo crucial” do plano de golpe, constituído, segundo o STF, por Bolsonaro e mais sete réus, começa a ser julgado11 de setembroBolsonaro é condenado a 27 anos e quatro meses de prisão por golpe de estado e outros crimes7 de novembroMaioria dos recursos dos condenados são negados22 de novembroAlexandre de Moraes agrava a pena de Bolsonaro de domiciliar para preventiva, depois de o ex-presidente ter tentado violar a pulseira eletrónica25 de novembro STF declara trânsito em julgado e Bolsonaro passa a cumprir pena efetiva de 27 anos e quatro meses de prisão numa cela de 12 m2 na superintendência da PF de Brasília.Bolsonaro justifica tentativa de tirar pulseira eletrónica com “surto, alucinação e paranoia”