No dia 27 de junho de 2023, acompanhado de dois amigos colombianos, de um guia e da escritora Victoria Amelina, a incursão de Héctor Abad Faciolince ao Donbass fica marcada por um míssil que atinge a pizaria onde estavam a jantar, em Kramatorsk. Morreram 13 pessoas, entre as quais duas gémeas de 14 anos e Amelina. O colombiano, que cedera o seu lugar na mesa à escritora, homenageia-a, bem como ao povo ucraniano, no seu mais recente livro, A Nossa Hora.Nas primeiras páginas diz ter esperado sentir-se mais jovem e mais vivo ao escrever, mas que na realidade se sentiu mais morto.E mais velho, sim. Para mim em geral não me custa muito escrever. Escrevo com facilidade, mas este livro custou-me muito escrever. Adoecia a escrevê-lo, deprimia-me escrevê-lo. Escrevia-o um pouco contra a minha vontade, mas com a obrigação de o escrever. Escrevê-lo foi mau. Eu teria querido ficar em silêncio, teria querido dedicar-me a esquecer melhor esta experiência. Mas tê-lo escrito dá-me como um certo descanso. Escrevê-lo foi traumático, mas tê-lo escrito já me situa numa outra posição. E tenho a sorte também de que a minha vida mudou depois da escrita deste livro: nasceram os meus primeiros netos, uns gémeos, uma experiência nova que eu sempre tinha querido ter. E de algum modo eu senti que eles eram como... Tinha-me afetado tanto a morte das gémeas em Kramatorsk que foi como se a vida voltava a nascer neles e havia um futuro. Embora isto não se vá apagar e vá deixar sempre dentro de mim uma certa melancolia... Ficou pacificado.Sim, sim. E também sem a obrigação de ter isto em primeiro plano na minha mente. Como que a memória se pode atenuar. Isto foi imprevisto. Não fui à Ucrânia escrever um livro. Eu não fui à Ucrânia como jornalista. Eu fui apresentar um livro, uma tradução numa feira do livro. Depois como que não podia resistir contra o rio da história e cheguei até um ponto em que quase morri. E bom, já não soube o que fazer mais com isso senão contá-lo, dar voz à Victoria, falar dos meus companheiros de viagem, falar de quão corajosos são.Este relato é também profundamente autocrítico. Admite a sua ignorância sobre a Ucrânia até 2019, a sua cobardia “mascarada de prudência” e até o autorretrato em versos. Por que se despiu para o leitor?Porque se me tivessem matado a mim, como teria sido o normal, a Victoria teria escrito um livro sobre o escritor colombiano que mataram à frente dela. E talvez nesse livro eu teria ficado como uma pessoa heroica, como um mártir da liberdade. E não é verdade, não é justo. Essa imagem que teria ficado de mim era falsa porque eu estava ali sem querer estar ali. Quando caiu a bomba eu escapei-me porque tinha medo de que caísse outra no mesmo sítio. Em contrapartida, o Sergio [Jaramillo], a Catalina [Gómez] e o Dima [Kovalchuk] ficaram com a Victoria. Não quis escrever o livro como “eu fui heroicamente à Ucrânia documentar a invasão russa”. Eu fui apresentar um livro com medo, deixei-me arrastar quase até à frente de batalha e aconteceu-me algo em que por acaso fiquei vivo. Mas não há nenhum mérito. Não o posso ocultar. Eu creio que um escritor tem de contar a verdade. E a verdade é essa. Nos seus livros a verdade tem de estar acima de tudo? Mesmo na ficção?Sim, sim. Há livros de ficção que são mentirosos. Para que não pareça que sou sempre muito autocrítico: sou bastante cobarde para viver, mas não sou nada cobarde para escrever. Ao escrever posso dizer toda a verdade, ainda que me doa, ainda que me afete muito.Escrever é um ato ético?Sim, sem dúvida. É um ato onde a verdade da minha experiência e a verdade do meu pensamento tem de estar ali. E a verdade do que penso e do que estudo. Para este livro estudei história da Ucrânia e história da Rússia.Em certa passagem fala da regra do seu pai de não fazer viagens dentro de viagens. Uma ficção não é isso, fazer viagens dentro de viagens?É verdade. E sobretudo as ficções que me agradam geralmente são assim. A mim agrada-me muito a estrutura de As Mil e Uma Noites, por exemplo. Que é como uma boneca russa. Ou agrada-me muito a estrutura do D. Quixote que tem novelas dentro das novelas. E eu escrevi livros que têm essa mesma estrutura. Por exemplo, Basura [Lixo], que é de um vizinho que um dia desce por acaso ao lixo do edifício e encontra os escritos de alguém que vive em cima que é um escritor reformado. E todos os dias vai e encontra no lixo algo e reprodu-los. São histórias dentro das histórias. Por isso, de certa forma...De certa forma não seguiu sempre o conselho do seu pai. É verdade.A Nossa Hora é uma homenagem não só à Victoria Amelina, um cisne, como a sua mulher descreveu, mas também aos demais companheiros de viagem. São os seus heróis? Ou na vida real não há heróis?Eu creio que a Catalina e o Sergio têm uma vida muito mais heroica. Sim, são heróis como a Victoria. A Victoria é muito rara porque em geral as mulheres na guerra e na Ucrânia particularmente, as mulheres vão para um sítio mais seguro e os homens ficam a fazer a guerra. No caso da Victoria era o oposto. Ela volta ao país, dedica-se a documentar os crimes de guerra e o seu marido vive fora, noutro país. A Catalina foi na ambulância com a Victoria até Dnipro sabendo que os russos às vezes atacam ambulâncias. E eles voltaram. A Catalina esteve em Kramatorsk várias vezes, o Dima também. Que saiba, o Sergio voltou a Kiev, pelo menos. Eu não vou voltar até que ganhem a guerra ou se acabe a guerra injustamente com o plano de Trump. Mas Borges dizia que cada homem busca a sua morte e a morte que eu busco não é uma morte heroica como a do meu pai. Eu não quero uma morte assim.. Quer morrer como a sua mãe?Como a minha mãe, sim. De velho e rodeado da gente que quero e que me quer. Prefiro essa morte. É a conclusão mais clara a que cheguei e também a que me fizeram ver os meus filhos. Disseram-me: “Dás-te conta de que se te tivessem matado na Ucrânia nós teríamos ficado tão loucos como tu e como as tias ou as tuas irmãs?” É que ser filho de um herói é complicado. É bonito, sinto muito orgulho do meu pai [Héctor Abad Gómez, médico e militante dos direitos humanos, assassinado em 1987, sobre quem Faciolince escreveu Somos o Esquecimento que Seremos], mas é complicado. Eu respeito-o e quero muitíssimo ao meu pai. E é verdade o que escreveu Petrarca, que uma bela morte toda a vida honra, mas aos que ficam vivos lixa-lhes muito a vida.Voltando à questão: há heróis?Sim, há, mas em geral são heróis mais discretos. Creio eu, são pessoas que desconhecemos. Esses são os heróis que estão a salvar o mundo, como no poema de Borges Os Justos. Há uma velha crença judaica de que Deus não destrói a Terra porque sempre há dez justos. Esses são os heróis que me agradam.A iniciativa Aguanta Ucrania! foi útil para esclarecer a população da Colômbia?Foi uma maneira eficaz de contrariar a propaganda russa na América Latina e de fazer conhecer um pouco melhor o problema da Ucrânia, de fazer ver que não é uma operação militar especial, que é uma invasão, que há que dar às coisas o nome justo que têm. Eu creio que pelo menos fez pensar duas vezes aos governos. Em jornais do Brasil era muito difícil publicar coisas, um pouco porque uns seguiam Bolsonaro, que era um pouco pró-homem forte putinista, e depois Lula como bastante neutral, contudo publicaram-nos coisas que eu creio que são úteis para contrariar a propaganda absurda de que há uma causa para a invasão russa e o certo é que é uma invasão imperial, e os países da América Latina nasceram e existem contra o imperialismo. A América Latina tem muitos problemas, mas tem um mérito: temos muitíssimos anos, mais de um século, sem fazer nenhuma guerra internacional. Nós não atacamos o território dos países vizinhos. E mais, as nossas fronteiras são as partes mais atrasadas e pobres dos países porque não cuidamos delas. E a legislação internacional que surgiu da Segunda Guerra Mundial, houve muitos juristas latino-americanos que ajudaram a fixar isso, que os mais fortes não têm direito a apoderar-se dos países mais fracos e mais pequenos. Bom, desde que os norte-americanos resolveram eleger Trump, isso mudou tudo, toda a equação. Porque sempre se declarou um admirador de Putin. A ele agradaria ter o poder autocrático que tem Putin. Agora quer intervir na Venezuela. E eu detesto o regime regime de Maduro. O chavismo destruiu um dos países mais prósperos da América Latina. Mas isso não lhe dá direito a entrar para matar. E os seus delírios sobre a Ucrânia são desesperantes.Está pessimista quanto ao desfecho da guerra?Putin começou esta invasão querendo destruir completamente a Ucrânia, apoderar-se completamente da Ucrânia, depor o governo, matar Zelensky ou quem sabe envenená-lo, como fez com tantos outros. E dizendo que a Ucrânia não existia. Eu creio que isto já é impossível. A Ucrânia, ainda que com 25% menos de território, é nitidamente um país que existe. Às vezes os países existem devido a grandes sofrimentos, a grande dor, mas agora sem dúvida essa vitória é da Ucrânia. A Ucrânia existe mais do que nunca e não vai perdoar à Rússia durante muitos anos. Enquanto não haja uma democracia na Rússia não lhe vai perdoar este massacre devastador, esta mortandade espantosa, este deslocamento de milhões de fugitivos ucranianos. Em certo sentido, a Ucrânia terá ganho porque a Ucrânia existe. Se não a conhecíamos antes, conhecemos agora.Qual foi a sua impressão da Ucrânia?Pareceu-me uma sociedade muito viva, com muita vontade de viver, com muita vontade de se continuar a apaixonar, de ler, de fazer teatro. Às vezes as condições extremas e a proximidade da morte produzem uma reação de haver muita vontade de viver. Eu senti-o na Ucrânia. Não é gente desmotivada. Claro que estão tristes, claro que sofrem, claro que agora podem ter de enfrentar um inverno sem aquecimento, mas são gente muito forte. Não creio que seja possível que a Rússia se apodere de toda a Ucrânia e eles baixem a cabeça. É que eles já conheceram durante anos a liberdade e a liberdade é uma droga muito forte e muito agradável. Aqui, como não provaram a falta de liberdade, há muitos jovens que pensam que isso não importa. Mas quando perdes a liberdade é como perder o oxigénio. Eles já sabem o que é esse oxigénio e não vão aceitar perdê-lo.O livro centra-se na sua experiência num país em guerra, mas a Colômbia também viveu décadas de guerrilha. O país já se reconciliou?Não, a Colômbia continua a ter muitos problemas. Tem muitos grupos armados, mas agora são claramente muito associados ao narcotráfico. E, de qualquer forma, a guerra da Colômbia nunca teve as dimensões de uma guerra internacional entre dois exércitos muito poderosos. Na Ucrânia há uns 200 soldados colombianos que trabalham lá um pouco como mercenários. E eles próprios dizem que o conflito colombiano, comparado com o conflito da Ucrânia, é quase uma brincadeira de crianças. Ou seja, o da Colômbia foi horrível, mas em 30 ou 40 anos de conflito houve 400 mil mortos. Na Ucrânia em quatro anos houve pelo menos 500 mil mortos russos e 500 mil mortos ucranianos, e mais dezenas de milhares de civis. É uma guerra como eram as guerras europeias. É uma guerra terrível de muito, de muito poder militar e económico. As guerras internacionais têm dimensões distintas. Ou seja, os ucranianos defendem-se com tudo e os russos, com o seu poder imperial, atacam com tudo..A Nossa HoraHéctor Abad FaciolinceAlfaguara256 páginas