Manifestação dos Houthis em Sanaa, em solidariedade para com os palestinianos, após a morte de Sinwar.
Manifestação dos Houthis em Sanaa, em solidariedade para com os palestinianos, após a morte de Sinwar.EPA/YAHYA ARHAB

Hamas e “eixo da resistência” inabaláveis após a morte do “mártir” Sinwar

O Ocidente, a começar pelos EUA, acredita que morte do arquiteto dos ataques do 7 de Outubro abre a porta a negociar cessar-fogo em Gaza. Mas aliados do grupo terrorista dizem que nada muda na luta contra Israel.
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A mensagem do chamado “eixo da resistência” foi a mesma: a morte do líder do Hamas, Yahya Sinwar, não muda nada na luta contra Israel. O grupo terrorista palestiniano disse que “fica mais forte” com este “martírio” e deixou claro que não haverá a libertação de reféns antes do fim da “agressão”, contando com o apoio do Hezbollah e do Irão. No Ocidente, com os EUA à cabeça, há esperança de que esta morte possa mudar o rumo da guerra em Gaza e abrir a porta a negociações. Mas não é claro que seja o caminho que Israel quer tomar.

“É dolorosos perder pessoas, especialmente líderes únicos como Yahya Sinwar, mas temos a certeza de que vamos vencer no fim”, disse o número dois do grupo terrorista palestiniano, Khalil Al-Hayya. Aquele que foi o principal negociador do Hamas - nas tentativas dos EUA, do Egito e do Qatar de alcançar um cessar-fogo - insistiu que os 101 reféns que ainda estão em Gaza não serão libertados antes de a “agressão” de Israel parar e as suas tropas saírem do enclave palestiniano.

“Israel pensa que matar os nossos líderes significa o fim do nosso movimento e da luta do povo palestiniano. O Hamas é um movimento liderado por pessoas que procuram a liberdade e a dignidade e que não pode ser eliminado”, indicou Al-Hayya, que vive no exílio no Qatar. “As mortes dos nossos líderes tornam o grupo mais forte e mais popular.” Desde o fundador, Ahmed Yassin, que todos os líderes do grupo foram mortos por Israel - a única exceção é Khaled Meshal, que era o chefe político quando foi envenenado em 1997, mas recebeu a tempo o antídoto após pressão da Jordânia e dos EUA.

Meshal é um dos nomes que se fala que pode suceder a Sinwar, que era apontado por Israel e pelos EUA como o “principal obstáculo para o cessar-fogo” em Gaza. “Agora morreu, vamos ver”, disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby. O presidente dos EUA, Joe Biden, considera a morte de Sinwar “uma oportunidade para procurar um caminho para a paz” e “um melhor futuro em Gaza sem o Hamas”.

Mas não é claro que o caminho das negociações seja o escolhido por Israel, que prosseguiu esta sexta-feira com os ataques e bombardeamentos na Faixa de Gaza. Segundo indicaram fontes médicas à estação árabe Al-Jazeera, pelo menos 34 pessoas morreram. As Forças de Defesa de Israel (IDF) indicaram ter enviado mais uma unidade do exército para o norte do enclave, para apoiar as operações em Jabalia, com os residentes a dizer que estavam isolados. Israel disse ter enviado 30 camiões de ajuda humanitária para a zona, indicando que o objetivo é impedir que os combatentes do Hamas reagrupem após a morte de Sinwar.

Para os especialistas, a morte do líder do Hamas volta a deixar claro que Israel não tem um plano para o dia seguinte ao final da guerra. “Ironicamente, o assassinato há muito esperado de Sinwar expõe a ausência de qualquer plano político israelita coerente e de ideias para a Gaza do pós-guerra”, escreveu no jornal Haaretz o diplomata israelita Alon Pinkas, que entre outros cargos foi conselheiro político de Shimon Peres. “É por isso que a guerra não terminará tão cedo (a não ser que haja uma rendição em massa do Hamas nos próximos dias e semanas)”, referiu.

E há quem tema que, em vez de levar ao diálogo, a morte de Sinwar leve a uma guerra regional. “Infelizmente, estamos à beira de uma guerra regional abrangente”, disse o chefe da diplomacia egípcio à televisão estatal. “Há partes interessados ​numa escalada”, acrescentou.

Duas leituras de um vídeo

A complexidade do que acontece na região é percetível com as diferentes leituras do vídeo daqueles que terão sido os últimos momentos de vida do arquiteto do ataque de 7 de outubro de 2023, que matou 1200 pessoas. 
O vídeo, divulgado pelas IDF, mostra Sinwar sozinho, sentado num sofá com o rosto tapado. Está ferido no braço direito e tem um pau na mão esquerda, que acaba por atirar na direção do drone que o estava a filmar. Um segundo vídeo mostra um tanque a disparar contra o edifício onde ele estava. A autópsia indicou contudo que, apesar dos ferimentos, terá morrido de um tiro na cabeça, disparado à distância.

O primeiro vídeo dá uma imagem de fragilidade, mas junto dos seus apoiantes e aliados a leitura feita é que morreu como um herói. “Ele morreu vestido com um colete militar, a lutar com uma arma e com granadas, e depois quando foi ferido e estava a sangrar, lutou com um pau. É assim que os heróis morrem”, disse Adel Rajab, de 60 anos, em Gaza, citado pela Reuters. “Vou garantir que ver este vídeo é um dever diário para os meus filhos e os meus netos no futuro”, indicou também Ali, um taxista de 30 anos.

“Ele morreu um herói, a atacar, não a fugir, a segurar a sua espingarda e a enfrentar o exército de ocupação na linha da frente”, indicou o Hamas num obituário de Sinwar publicado online, em que o apelida de “grande símbolo nacional”. Mas Sinwar é também visto como um símbolo para outros do “eixo da resistência”. 

Uma “fonte de inspiração”

Os Houthis, do Iémen, elogiaram o seu martírio, “enfrentando e não recuando, lutando pela causa mais elevada e justa”. O Hezbollah, cujo líder Hassan Nasrallah foi morto no final de setembro, anunciou a “transição para uma nova e crescente fase no confronto” - sem dar mais pormenores. Só esta sexta-feira, mais de 75 projéteis terão sido enviados do Líbano para Israel, fazendo soar os alarmes no país. De acordo com as IDF, pelo menos 1500 combatentes do grupo xiita libanês terão sido mortos desde a incursão dos militares israelitas no sul do Líbano, no início do mês.

Um dos peritos do Atlantic Council e antigo número dois dos serviços de informação dos EUA para o Médio Oriente, Jonathan Panikoff, lembrou que “as operações de Israel no Líbano já começaram e não são susceptíveis de parar, independentemente do resultado em Gaza” a menos que haja um mega-acordo. E lembrou: “Há divisões dentro dos círculos políticos e militares em torno da guerra em Gaza. Não as há em relação à campanha contra o Hezbollah.”

O “eixo de resistência”, que inclui ainda grupos rebeldes no Iraque, é liderado pelo Irão. O chefe da diplomacia iraniana reagiu no X à morte de Sinwar, dizendo que o seu “destino” estava “lindamente retratado na sua última imagem”. Para Abbas Araghchi, o líder do Hamas “lutou corajosamente até ao fim no campo de batalha” e é “uma fonte de inspiração para todos os combatentes da resistência na região”. E insistiu: “Os mártires vivem para sempre e a causa da libertação da Palestina da ocupação está mais viva do que nunca.”

O Irão ainda aguarda a resposta israelita ao ataque com mísseis balísticos lançado no início do mês, em resposta à morte de Nasrallah e de outros dirigentes do “eixo da resistência”. O presidente dos EUA, no final da sua visita à Alemanha, considerou contudo que “há uma oportunidade” de conseguir “lidar com Israel e o Irão de forma a acabar com o conflito”, acabando com os ataques e as retaliações.

susana.f.salvador@dn.pt

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