Guterres cita Shakespeare e pede impostos para combustíveis fósseis
O secretário-geral antevê um "inverno de descontentamento global" perante as crises globais, numa assembleia geral das Nações Unidas sob a tensão da guerra na Ucrânia.
Depois de dois anos de assembleias gerais realizadas com recurso ao vídeo para os chefes de Estado ou de governo discursarem devido à pandemia, o regresso generalizado à sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, ficou marcado pelo discurso do secretário-geral. Uma advertência aos líderes e diplomatas sobre a "cascata de crises" e seus efeitos que irá culminar em breve num "inverno de descontentamento global", numa adaptação da primeira frase de Ricardo III, de William Shakespeare.
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Com a ausência dos líderes da Rússia e da China, os chamados dias de debate da 77.ª assembleia geral da Organização das Nações Unidas arrancaram com uma mensagem de António Guterres que começou por dizer que o "mundo está em grandes dificuldades" para logo de seguida dar o exemplo positivo dos acordos assinados há dois meses em Istambul, entre as autoridades de Kiev e de Moscovo com o governo turco e as Nações Unidas, para garantir o desbloqueio dos cereais ucranianos dos seus portos, bem como dos fertilizantes russos.
"Há outra batalha que devemos terminar - a nossa guerra suicida contra a natureza. A crise climática é a questão decisiva do nosso tempo. O mundo está viciado nos combustíveis fósseis." António Guterres
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"Este navio é um símbolo do que podemos alcançar quando trabalhamos em conjunto", afirmou Guterres ao falar do Brave Commander, o primeiro navio que navegou sob bandeira da ONU, tendo transportado 23 mil toneladas de cereais para a Etiópia e Iémen. "Cada navio também transporta uma das mercadorias mais raras da atualidade: a esperança."

Apesar dos avisos sombrios, Guterres destacou os acordos que permitiram retomar o tráfego marítimo de navios com cereais ucranianos.
© EPA/JASON SZENES
Mas esperança foi um sentimento que deve ter desaparecido entre quem continuou a ouvir o dirigente português, quando este disse que "se o mercado dos fertilizantes não estabilizar no próximo ano, o problema pode ser a distribuição de comida", tendo apelado para a "remoção dos obstáculos à exportação dos fertilizantes russos" e seus ingredientes, apesar de lembrar que nenhum destes produtos está sujeito às sanções económicas ocidentais.
"A Rússia não pode impor a sua vontade por meios militares ainda que com cinismo proponha simulacros de referendos em territórios bombardeados e mais tarde ocupados." Emmanuel Macron
Horas antes, Vladimir Putin acusou a Europa de bloquear 300 mil toneladas de fertilizantes. "O cúmulo do cinismo é que mesmo a nossa oferta de transferir gratuitamente 300 mil toneladas de fertilizantes russos bloqueados nos portos europeus, devido a sanções, para países que deles necessitam continua sem resposta", afirmou.
"Não tenhamos ilusões, estamos em mares agitados", prosseguiu Guterres. "Um inverno de descontentamento global está no horizonte. A crise do aumento de custo de vida está a agravar-se. A confiança está a desmoronar-se, as desigualdades estão a disparar, o nosso planeta está a arder. As pessoas estão em sofrimento - com os mais vulneráveis a padecer mais. A carta das Nações Unidas e os ideais que representa estão sob ameaça. Temos o dever de agir. E no entanto estamos manietados numa colossal disfuncionalidade mundial", pelo que apelou para uma coligação global.
"África já sofreu o suficiente com o fardo da história, não quer ser o centro de uma nova Guerra Fria." Macky Sall
Além de um retrato panorâmico desanimador, António Guterres sugeriu a redistribuição dos lucros das empresas ligadas aos combustíveis fósseis para ajudar a baixar os preços dos alimentos e para compensar os danos das alterações climáticas.
Enquanto o presidente brasileiro aproveitou o palco para fazer campanha eleitoral e atacar Lula da Silva, e o chileno Gabriel Boric para advogar pela humildade em democracia, em resultado da derrota do referendo à proposta da nova constituição, o turco Recep Erdogan assumiu-se como mediador de conflitos.
"Continuaremos a envidar esforços para acabar com a guerra com base na integridade territorial e na soberania da Ucrânia. Precisamos de encontrar uma solução diplomática que dê a ambas as partes uma saída digna para a crise." Recep Erdogan
Sobre a guerra da Rússia na Ucrânia, defendeu uma "saída digna" para a crise. Numa entrevista à PBS, Erdogan revelou que os dois países concordaram numa troca de 200 prisioneiros e reafirmou defender que Moscovo se retire de todos os territórios ocupados.
cesar.avo@dn.pt
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