Guerra vs. "operação militar especial". Duas realidades alternativas

Para a Ucrânia é uma guerra, para a Rússia é uma "operação militar especial". Uma ou outra não se desenrolam apenas no terreno, com armas, mísseis ou sistemas de defesa aéreos. Há também uma batalha de comunicação.
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No primeiro mês desde a invasão da Ucrânia, houve três ataques contra alvos civis que geraram forte condenação internacional. Kiev acusou Moscovo de "crimes de guerra", mas para os três casos os russos arranjaram uma explicação, quer negando a responsabilidade, quer alegando que os alvos não eram civis, mas militares.

A cidade no sudeste da Ucrânia, importante ponto estratégico entre a Crimeia anexada em 2014 e as autodenominadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, está sitiada quase desde o início da guerra pelas forças russas. Ao 14.º dia da invasão, o hospital pediátrico e maternidade foram destruídos. Nas redes sociais, há vídeos que mostram mulheres grávidas a serem retiradas do local, no meio de destroços e carros queimados.

A Ucrânia denunciou um ataque russo com "várias bombas lançadas de aviões" contra um alvo civil. Moscovo alegou, contudo, que o hospital era um alvo militar, porque já não havia médicos e pacientes no local. Horas antes do ataque, isso mesmo tinha sido dito pela porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, que alegou que os civis tinham sido expulsos do edifício, que estava a ser usado como posto de combate.

O próprio chefe da diplomacia, Sergei Lavrov, alegou um dia depois que o hospital estava a ser usado como base pelo batalhão Azov, uma milícia ultranacionalista que foi integrada nas forças armadas ucranianas e que tem o seu centro nevrálgico na cidade.

Quando nas redes sociais começaram a aparecer os vídeos das grávidas a serem retiradas do hospital, Moscovo disse que tinham sido encenadas e que as mulheres eram atrizes, não verdadeiras vítimas. Um dos argumentos apresentados, incluindo no Twitter da embaixada da Rússia no Reino Unido, era o facto de uma das mulheres ser uma "bloguer de beleza" ucraniana, identificada como Marianna Podgurskaya. Alegava-se que ela fazia o papel de duas das mulheres grávidas, uma delas com um pijama branco às pintas pretas e outra numa maca. Além disso chamavam a atenção para uma das fotos ser tirada por um "famoso fotógrafo de propaganda", Evgeniy Maloletka, e não pelos socorristas ou testemunhas, como seria esperado. O Twitter removeu esta mensagem por violar as suas regras.

Podgurskaya é de facto uma bloguer, que relatou nas suas redes sociais a sua gravidez. Foi mãe de Veronika um dia depois do ataque. Já a segunda grávida, que aparecia na maca na foto da Associated Press (Maloletka é um freelancer a trabalhar para a agência de notícias norte-americana), acabaria por morrer depois de ter tido a pélvis esmagada e a anca deslocada, tal como o bebé que nasceu via cesariana. Os médicos do hospital para onde foi transferida disseram à AP que ao perceber que estava a perder o bebé, ela gritou "matem-me agora". Os médicos não a conseguiram salvar. Pelo menos cinco pessoas acabaram por morrer como consequência do ataque ao hospital.

Uma semana depois do ataque ao hospital pediátrico e maternidade de Mariupol, chegaram notícias de que tinha sido destruído o teatro da cidade, em cuja cave as autoridades ucranianas estimam que estivessem abrigados 1300 civis - um número impossível de confirmar, até porque os últimos jornalistas ocidentais, da AP, deixaram, entretanto, a cidade. No chão à frente e atrás do edifício, escrita em grandes letras em cirílico visíveis do ar, estava a palavra "crianças" em russo. Isso não evitou que o teatro fosse bombardeado.

A Rússia nega, contudo, qualquer responsabilidade. De acordo com Moscovo, as suas forças não atacaram naquele dia alvos na cidade de Mariupol. O major general Igor Konashenkov, do Ministério da Defesa russo, alegou que foi o batalhão Azov que rebentou com o edifício que tinha "minado" e onde mantinha os civis como escudos humanos. "Antes, soube-se por refugiados que saíram de Mariupol, que os nazis do batalhão Azov podiam estar a manter os civis como reféns no edifício do teatro, usando os pisos superiores como posições de tiro", indicou, explicando que depois da "provocação" no hospital, "o edifício do teatro no centro da cidade nunca foi considerado um alvo para destruição".

Os trabalhos de resgate foram dificultados pelos combates nas ruas da cidade, havendo apenas indicação por parte das autoridades locais que teriam sido resgatadas 200 pessoas e uma mulher teria ferimentos graves. Não se falava em mortos. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, alegava que "centenas" ainda estariam sob os escombros, não se sabendo se, entretanto, conseguiram sair sozinhos, se ficaram presos ou se o número inicial de eventuais vítimas seria exagerado.

A capital ucraniana não tem sido poupada, com os ataques a intensificarem-se nos últimos dias do primeiro mês da invasão. No último domingo à noite, o alvo foi o centro comercial Retroville, com 250 lojas, cinema e três mil lugares de estacionamento, que ficou totalmente destruído. Kiev estava sob recolher obrigatório, mas ainda assim terão morrido oito pessoas. Os jornalistas só puderam aceder ao local na manhã seguinte. Imagens de uma câmara de vigilância captaram o momento da explosão, com a onda de choque a levantar a câmara e a mostrar a bola de fogo. Como o vídeo estava apontado mais para baixo, não era possível ver se a explosão tinha sido causada por um míssil russo, como se suspeitava. Contudo, Moscovo não hesitou em assumir a responsabilidade pelo sucedido.

Segundo o porta-voz do Ministério da Defesa, Igor Konashenkov, a Rússia usou "armas guiadas com precisão de longo alcance" para destruir um local de armazenamento de um "sistema de rockets de lançamento múltiplo" e munições no centro comercial, que já não estava em funcionamento. Moscovo divulgou imagens de drones onde mostrava um veículo militar próximo do edifício, voltando a acusar as autoridades ucranianas de usar infraestruturas civis para esconder armamento usado para atacar as tropas russas. O porta-voz disse que as imagens aéreas eram "prova absoluta do uso criminoso pelo regime nacionalista de Kiev de edifícios civis como posições de tiro para sistemas de artilharia e rockets", reiterando que a Rússia usa mísseis só para atacar alvos militares. À AFP, moradores junto ao centro confirmaram ter visto um lançador de rockets móvel na área nos dias antes do ataque.

susana.f.salvador@dn.pt

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