O presidente dos EUA, Donald Trump, alega ter acabado com oito guerras - a última delas a na Faixa de Gaza -, mas também já começou pelo menos uma: contra o narcotráfico. As Forças Armadas norte-americanas lançaram nos últimos dois meses nove ataques contra lanchas alegadamente usadas para traficar drogas, matando 37 pessoas. Esta semana, os ataques foram no Pacífico e não nas Caraíbas, onde estão oito navios e um submarino, com Trump a insistir que tem “autoridade legal” para atuar em águas internacionais, mas também a avisar que pode avançar para ataques em terra. A guerra é alegadamente contra o narcotráfico, mas Trump não esconde o desejo de derrubar o regime venezuelano de Nicolás Maduro - admitiu, aliás, ter dado autorização à CIA para atuar na Venezuela. E também não hesita em entrar em choque com o homólogo colombiano, Gustavo Petro, pondo em causa um dos seus principais aliados na América Latina.Assim que regressou à Casa Branca, em janeiro, Trump assinou uma ordem executiva que declara os cartéis de droga - entre eles o venezuelano Tren de Aragua, que alegam ter ligações a Maduro - como “organizações terroristas estrangeiras”. Esta quinta-feira (23 de outubro), ao partilhar no X as imagens de mais um ataque - o segundo no Pacífico em 24 horas -, o secretário da Defesa norte-americano (rebatizado secretário da Guerra), Pete Hegseth, voltou a apelidar os narcotraficantes de terroristas. “Estas organizações são a Al-Qaeda do nosso hemisfério e não vão escapar à justiça”, indicou Hegseth. “Tal como a Al-Qaeda fez a guerra na nossa pátria, estes cartéis estão a fazer a guerra na nossa fronteira e no nosso povo”, acrescentou..O alvo MaduroO foco dos EUA tem sido Maduro, que está no poder na Venezuela desde 2013 e, em 2020, foi acusado de narcotráfico pelo Departamento de Justiça americano. Ele nega todas as acusações, mas Trump aumentou, já este ano, a recompensa por informações que possam levar à sua captura para os 50 milhões de dólares (cerca de 43 milhões de euros) - o mesmo valor que tinha Osama Bin Laden. Os EUA não reconheceram a vitória de Maduro nas eleições do ano passado, apoiando o opositor Edmundo González - tal como, em 2019, tinham apoiado Juan Guaidó. Questionado se tinha autorizado a CIA a “remover” o líder venezuelano, Trump disse que seria “ridículo” responder. “Mas acho que a Venezuela está a sentir o calor”, afirmou aos jornalistas. E já admitiu possíveis ataques em terra, com os especialistas a sugerir que pode atingir eventuais acampamentos de narcotraficantes ou pistas de aviação que estes possam usar e não diretamente o regime. Depois de, em meados de agosto, os EUA terem destacado para as Caraíbas pelo menos oito navios de guerra e um submarino nuclear - e dezenas de milhares de soldados - Caracas respondeu convocando os 4,5 milhões de membros da Milícia Nacional Bolivariana para a defesa do país - para lá dos membros das Forças Armadas. Diante dos múltiplos ataques contras as lanchas, Maduro ainda defendeu a diplomacia. “Tem de triunfar a paz”, afirmou, apelando depois num inglês macarrónico: “Not war, yes peace, por favor povo dos EUA”. Mas, já esta semana, Maduro anunciou que tem cinco mil mísseis antiaéreos russos (os Igla-S) prontos a usar, alegando que são “as armas mais poderosas que existem” e que garantem “a paz, estabilidade e tranquilidade” aos venezuelanos. A irritação de PetroMas, na guerra contra os alegados narcotraficantes da Venezuela, os EUA atingiram também embarcações que tinham origem na Colômbia - metendo ao barulho o presidente colombiano, que não esconde os desacordos com Trump. “Seja nas Caraíbas, seja no Pacífico, a estratégia da Administração dos EUA rompe as normas do direito internacional”, escreveu Petro no X, depois do último ataque de quarta-feira..O presidente acusa Trump de o insultar a ele e à Colômbia, alegando que em causa já não está uma estratégia antidroga - e os dois países colaboraram desde o início do milénio nesta área e Petro sempre se mostrou disponível para continuar -, mas “afetar as eleições no próximo ano, procurando novamente a vitória da extrema-direita, forte e comprovadamente ligada ao narcotráfico, mas obediente a invasões”. Não é a primeira vez que Petro e Trump, de lados ideológicos opostos da política, entram em choque. O presidente colombiano viu, em setembro, os EUA retirarem o seu visto (ele na prática já tinha saído do país), depois de ter defendido, à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas, que os militares norte-americanos deviam ignoras as ordens de Trump. No próprio discurso na ONU, denunciou os ataques às embarcações nas Caraíbas, que noutras ocasiões descreveu como “atos de tirania”.O choque atingiu o ponto mais alto no último fim de semana, quando Petro acusou os EUA de assassinarem um pescador colombiano (num dos ataques às lanchas) e violarem a soberania do seu país. Trump respondeu acusando o homólogo de encorajar a produção de droga na Colômbia e anunciou o possível aumento das tarifas e a suspensão dos apoios dos EUA - o investimento na segurança e na guerra às drogas (nomeadamente quando Álvaro Uribe estava no poder, entre 2002 e 2010) terá ajudado à queda da guerrilha das FARC, que desarmaram em 2016. Mas o apoio americano não acabou com os problemas de segurança - o sonho de “paz total” de Petro está em risco com ataques de grupos armados em zonas fronteiriças com a Venezuela ou o assassinato do candidato presidencial Miguel Uribe. Nem resolveu o problema das drogas, com a produção a aumentar - no ano passado a área de cultivo de folha de coca subiu 10% (o Governo de Petro alega que é menos do que noutros anos) e a produção de cocaína 50%, segundo os dados das Nações Unidas.Trump alega que os EUA estão a atacar os narcotraficantes em “autodefesa”, mas o próprio Congresso tem dúvidas (tal como organizações de defesa dos direitos humanos). Em setembro, os democratas avisaram que a Administração não tinha dado “qualquer justificação legal legítima” para os ataques e que os militares dos EUA não têm o poder para “caçar suspeitos” e “matá-los sem julgamento”. Dois sobreviventes de um dos ataques, um colombiano e um equatoriano, foram entretanto devolvidos aos respetivos países para serem “detidos e acusados” - evitando que sejam levados à justiça americana. As críticas ouvem-se até entre os republicanos, que avisam que só o Congresso tem o poder para declarar a guerra. Ainda assim, a maioria republicana chumbou no Senado uma proposta que exigia que o presidente pedisse autorização para novos ataques, e estes prometem repetir-se.