Fundo de Recuperação não pode ser como "dinheiro espalhado de helicóptero"

O ex-presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker acredita que Portugal conseguirá alcançar resultados concretos na Cimeira Social do Porto, comentando que se o primeiro-ministro António Costa não for bem-sucedido, "ninguém será, porque ele é um dos melhores".
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Numa entrevista concedida à Lusa em Bruxelas, no escritório que mantém na sede da Comissão Europeia, à qual presidiu entre 2014 e 2019, Jean-Claude Juncker, agora conselheiro especial do executivo comunitário liderado por Ursula von der Leyen, argumenta que o ambicioso pacote «NextGenerationEU» só faz sentido se a "enorme quantidade de dinheiro" (750 mil milhões de euros) for aplicado em "novas políticas".

No entanto, Juncker, que foi também presidente do Eurogrupo, entre 2005 e 2013, considera crucial o dinheiro ser bem aplicado, e diz por isso esperar "que este dinheiro não seja 'dinheiro de helicóptero', espalhado assim", sem discernimento.

O 'dinheiro de helicóptero' ('helicopter money') é um conceito de política monetária expansionista criado em 1969 pelo Prémio Nobel Milton Friedman e consiste na transferência direta de dinheiro para os agentes económicos individuais, recorrendo à parábola de lançar dinheiro de um helicóptero.

Para Juncker, o plano de recuperação só poderá produzir bons resultados se todos os meios que contempla forem dedicados "a reformas estruturais, no sentido nobre do termo, e programas orientados para o futuro que aumentem as hipóteses de crescimento da União Europeia".

"Se este dinheiro for utilizado para financiar políticas existentes, não levará a lado nenhum. Mas se forem postas em prática novas políticas, sobretudo a pensar nas gerações mais jovens, então terá sido bem investido", considera.

Em 14 de abril passado, a Comissão Europeia adotou "uma estratégia de investimento diversificada para mobilizar cerca de 800 mil milhões de euros, a preços correntes, até 2026", para financiar o «NextGenerationEU», peça central da resposta da UE à pandemia da covid-19, contando ter toda a "máquina montada" em junho, para em julho ir aos mercados.

Nesta mesma entrevista, Juncker diz acreditar que Portugal consiga alcançar resultados concretos na Cimeira Social do Porto, que se realizar a sete de maio, comentando que se o primeiro-ministro António Costa não for bem-sucedido, "ninguém será, porque ele é um dos melhores".

Considerando que Portugal está a realizar uma boa presidência da União Europeia (UE), o antigo primeiro-ministro luxemburguês destaca o contributo da presidência portuguesa para uma gestão à escala europeia da crise da covid-19, particularmente difícil dado matérias como a saúde pública e gestão de fronteiras serem da competência dos Estados-membros.

"Portugal fez um bom trabalho, tal como fez anteriormente. Sempre que Portugal esteve na presidência [do Conselho], a União Europeia fez progressos, umas vezes lentos, outras vezes rápidos. Devo dizer que, sendo Portugal um membro de longa data da União Europeia, sempre fez tudo o que era do interesse do processo de integração europeia. E isso foi um sucesso e tanto", afirma.

Sendo esta quarta presidência portuguesa marcada pela gestão da crise provocada, aos mais diversos níveis, pela pandemia da covid-19, Jean-Claude Juncker reconhece o desafio adicional que tal representa, dada a tentação dos Estados-membros de agirem unilateralmente, para mais em domínios, como os da saúde ou da gestão das fronteiras, em que não existe uma verdadeira competência europeia.

"Era e é muito difícil unir de uma forma clara e coordenada os esforços europeus quando se trata de lutar contra a pandemia. Logo no início desta crise pandémica, assistimos a uma política europeia que se caracterizava pelo facto de cada um dos Estados-membros estar a cozinhar a sua própria sopa pandémica no seu próprio canto", observa.

Lembrando a título de exemplo o sucedido com "o encerramento de fronteiras" decretado por muitos Estados-membros, em grande parte dos casos sem avisos prévios aos restantes, ou a decisão de alguns países de proibirem a exportação de equipamento médico, "o que não foi útil", Juncker aponta que "era bastante óbvio que os governos reagiam no seu próprio canto no seu próprio território nacional", sem atender à dimensão europeia da crise.

De acordo com o antigo presidente do executivo comunitário, "as coisas melhoraram desde então, porque os membros do Conselho Europeu solicitaram à Comissão Europeia que se encarregasse da vacinação" - não do processo em si, mas da aquisição e entregas -, "e a presidência portuguesa fez tudo para que os Estados-Membros respeitassem a dimensão europeia da questão pandémica".

"Portugal foi de uma grande ajuda a esse respeito", enalteceu.

O antigo presidente do executivo comunitário considera "da maior importância" alcançar progressos na área social, algo que já tentou promover há 24 anos, pois "não se pode construir uma União Europeia harmoniosa sem cuidar das questões sociais".

Na entrevista Jean-Claude Juncker defende que a Conferência sobre o Futuro da Europa, cujo lançamento oficial ocorrerá imediatamente após as cimeiras do Porto, em 09 de maio em Estrasburgo, deve "assegurar" que a UE alarga as suas competências na área da saúde, o que defende ser "muito necessário".

O ex-presidente da Comissão Europeia considera que a UE tem de ser "menos ingénua" com a China, defendendo que os "europeus têm de organizar melhor as suas relações" com as outras potências estrangeiras.

"No que se refere à China, temos de ser menos ingénuos do que fomos nas últimas décadas. A China é, claro, um parceiro comercial importante da UE - dependendo dos diferentes Estados-membros, porque os países europeus têm relações comerciais distintas com a China -, mas também é um rival e um concorrente", afirma.

Juncker destaca que o mercado interno da China é "grande" e a UE deve procurar "garantir" que se "mantém aberto para as empresas europeias, da mesma maneira que o mercado interno da Europa está aberto a empresas chinesas".

"Precisamos de um acesso melhor ao mercado interno da China e todos os esforços nessa direção são bem-vindos", sublinha.

Nesse sentido, Juncker considera que o acordo de investimento UE-China - cujo acordo de princípio foi alcançado entre a União Europeia e a China em dezembro de 2020, após sete anos de negociações que tinham começado sob a presidência de Juncker - é "um passo na direção certa", mas peca por ser pouco robusto no que se refere às condições laborais.

No acordo em questão, a China - que, até ao momento, continua sem ratificar quatro das oito convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre as quais as duas referentes ao trabalho forçado - compromete-se a "implementar de maneira eficaz" as convenções que já ratificou, a "trabalhar com vista à ratificação" das que faltam e a "fazer esforços contínuos e sustentados para ratificar" as duas convenções sobre trabalho forçado.

Para Juncker, essas referências às convenções da OIT são "muito fracas".

"A China tem de perceber que esperamos que os nossos parceiros chineses respeitem todas as normas e princípios internacionais" sobre questões laborais, destaca.

Nesta mesma entrevista Jean-Claude Juncker considera que a sua sucessora, Ursula von der Leyen, "não foi tratada da maneira apropriada" na visita a Ancara, mas rejeita ver no incidente "um símbolo de divisão entre instituições europeias".

"Sempre fui tratado da maneira que é apropriada para um presidente da Comissão Europeia. Ela não foi tratada da maneira apropriada durante a visita à Turquia, mas isto não é um símbolo de divisão entre as instituições europeias, é responsabilidade do protocolo turco", aponta Juncker.

O incidente diplomático que ocorreu na Turquia em 07 de abril, no qual apenas o Presidente turco, Recep Tayip Erdogan, e o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, tiveram direito a cadeiras, enquanto foi reservado a Ursula von der Leyen um lugar secundário num sofá lateral, razão pela o incidente ficou conhecido como sofagate.

"É preciso perceber que, segundo o protocolo internacional, o presidente do Conselho Europeu é o 'número um', o presidente da Comissão é o 'número dois' e, se o presidente do Parlamento Europeu estiver a assistir a reuniões, é ele que sobe para 'número um'. Isso nunca foi uma grande dificuldade para mim", sublinha.

Nesse sentido, Juncker -- que, durante a sua presidência, propôs aos chefes de Estado e de Governo da UE que as funções de presidente do Conselho Europeu e da Comissão Europeia se fundissem numa só -- considera que "o sofagate não é um argumento suficientemente valioso" para motivar essa reforma institucional.

"Mas penso que, de facto, sobretudo nas próximas décadas, é cada vez mais difícil para os nossos parceiros no mundo perceberem por que é que temos dois presidentes", frisa.

O ex-presidente da Comissão Europeia mantém assim que "seria mais fácil para os europeus serem compreendidos se houvesse apenas um único presidente da União Europeia".

"Fiz essa proposta há uns anos, os Estados-membros não gostaram, mas irão descobrir o seu valor nos próximos anos", afirma.

Juncker reagia assim ao incidente do 'sofagate' que, esta segunda-feira, foi debatido com Ursula von der Leyen e Charles Michel durante a sessão plenária do Parlamento Europeu.

No decorrer do debate, a presidente da Comissão Europeia assumiu que se sentiu "magoada e sozinha" durante o incidente, sublinhando que tal aconteceu unicamente por ser mulher.

"Sou a primeira mulher a presidir à Comissão Europeia. Eu sou a presidente da Comissão Europeia e é assim que esperava ser tratada quando visitei a Turquia há duas semanas: como presidente da Comissão. Mas não fui. Não posso encontrar nos Tratados da UE qualquer justificação para a forma como fui tratada, pelo que tenho de concluir que aconteceu porque sou uma mulher", destacou Von der Leyen.

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