O que aconteceu entre a Tailândia e o Camboja?No domingo, uma confrontação na fronteira entre militares dos dois países deixou dois soldados tailandeses feridos e acabou com o cessar-fogo acordado em julho. As partes acusaram-se mutuamente de terem iniciado a violência. Desde então, repetiram-se trocas de tiros e de artilharia, e a força aérea tailandesa bombardeou posições cambojanas. Quais as consequências das hostilidades?O Camboja afirmou que nove civis morreram, incluindo um bebé, e outros 46 ficaram feridos, não tendo feito qualquer referência a baixas entre os militares. O exército tailandês disse que há a lamentar cinco soldados mortos e dezenas de feridos. Além disso, 400 mil tailandeses tiveram ordem de retirada em quatro províncias junto da fronteira, enquanto do outro lado se conta a deslocação de 130 mil cambojanos.E em julho, que aconteceu?Houve cinco dias de combates depois de uma mina terrestre ter ferido cinco soldados tailandeses. Em resultado, morreram pelo menos 38 pessoas e foram deslocadas 300 mil. Qual é a causa do conflito? Oficialmente, deve-se a desacordos sobre a demarcação da fronteira comum, de cerca de 800 quilómetros. O Camboja tem como referência um mapa traçado em 1907, durante o domínio colonial francês, o qual a Tailândia não reconhece. Dois históricos templos hindus, Preah Vihear e Ta Muen Thom, estão no centro da discórdia alimentada por décadas de tensões. Nada se fez para resolver a disputa fronteiriça?Em parte. A soberania relativa a Preah Vihear foi dirimida no Tribunal Internacional de Justiça, primeiro em 1962 e de novo em 2013. Em ambas ocasiões, o tribunal com sede em Haia decidiu que o templo é do Camboja. Porém, as áreas limítrofes não foram delimitadas. Na segunda-feira, uma torre de comunicações próxima do templo foi alvo de um ataque aéreo tailandês. . Há outras motivações para o conflito?Sem dúvida. O Camboja, nas mãos da família Hun, tem hoje uma economia dependente da indústria de cibercrimes. Segundo um relatório de 2023 do United States Institute of Peace sobre o crime transnacional no sudeste asiático, estima-se que os lucros destas atividades tenham rendido 12,5 mil milhões de dólares (10,7 mil milhões de euros), ou seja, metade do PIB do Camboja. Apesar de as fraudes poderem apanhar pessoas de qualquer lado, as vítimas tailandesas contribuem em dinheiro com cerca de 30% para esse bolo e com um número indeterminado de pessoas que são levadas ao engano por redes de tráfico. Estima-se que até 150 mil pessoas de várias nacionalidades trabalhem nesses centros em condições de escravatura. Em junho, os meios de comunicação tailandeses acusaram Hun Sen, o homem que deixou o cargo de primeiro-ministro para o filho, mas que mantém todos os poderes, de ser o “patrono político” dos centros que funcionam junto da fronteira. Em julho, a força aérea tailandesa bombardeou vários edifícios dedicados ao cibercrime, inclusive um a mais de 100 quilómetros da fronteira. No entanto, Banguecoque não assume estar a lutar contra os grupos criminosos. Este conflito não é um dos oito que Donald Trump alegou ter resolvido?Sim. O presidente dos Estados Unidos, que não esconde a ambição de ser distinguido com o Nobel da Paz - em paralelo com ameaças de invasão militar à Venezuela -, repetidamente se gaba de ter acabado com múltiplas guerras. Até agora, a Casa Branca foi palco de duas cerimónias de assinatura de acordos de paz: Arménia e Azerbaijão, em agosto, e República Democrática do Congo e Ruanda, na semana passada. No que toca aos restantes conflitos, a intervenção de Trump ou dos EUA é contestada e, em qualquer dos casos, não foram sanados. Neste caso, foi o primeiro-ministro da Malásia Anwar Ibrahim, enquanto presidente rotativo da Associação dos Países do Sudeste Asiático (ASEAN), quem sentou à mesma mesa tailandeses e cambojanos para um acordo de cessar-fogo. Mas Trump, que na antevéspera do acordo escrevera uma mensagem na sua rede social a dizer que não assinaria qualquer acordo aduaneiro com ambos os países, reclamou de pronto os créditos: “Agora acabei com muitas guerras em apenas seis meses - sinto-me orgulhoso por ser o presidente da paz!”, escreveu então. Os EUA não reagiram ao reacender do conflito?Na terça-feira à noite, Trump disse que iria usar a sua influência para pôr fim aos combates. Mas o primeiro-ministro tailandês, Anutin Charnvirakul, disse na quarta-feira que Washington não tinha contactado a Tailândia sobre o tema e que as hostilidades não vão parar a pedido de Trump, a quem disse pretender explicar a posição do seu país. Já o secretário de Estado norte-americano Marco Rubio apelou às duas partes para cumprirem os compromissos assumidos em outubro na Malásia, quando reafirmaram o fim da hostilidades e foi prevista a remoção de armamento pesado da fronteira e a coordenação da remoção de minas terrestres na região.