Num dia, a Rússia e os Estados Unidos acordam em restabelecer as relações diplomáticas e de virem a explorar oportunidades económicas e de investimento em conjunto, assim que a guerra na Ucrânia ficar para trás. No dia seguinte, os presidentes dos EUA e da Ucrânia entram num pingue-pongue depois de Donald Trump fazer acusações e declarações falsas sobre a guerra e a popularidade de Volodymyr Zelensky. A relação entre os dois homens caiu no ponto mais baixo desde que o primeiro fez coerção para o segundo encontrar material comprometedor em relação a Joe Biden em troca de ajuda militar - o motivo pelo qual a Câmara dos Representantes destituiu Trump pela primeira vez (mas o Senado não). Como na rábula do polícia bom e do polícia mau, o líder russo veio a público afirmar que “o processo de negociações será realizado com a participação tanto da Rússia como da Ucrânia”.O processo de reabilitação de Vladimir Putin - a quem impende um mandado de detenção emitido pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra - e do seu regime prossegue. O presidente norte-americano, que várias vezes foi elogioso em público para com o líder russo, adotou nas últimas horas alguns pontos da narrativa do Kremlin. O presidente ucraniano não ocultou a sua indignação (“surpresa”, disse) pelo facto de as delegações dos Estados Unidos e da Rússia terem reunido na Arábia Saudita sem que Kiev tivesse sido posta ao corrente, quando um dos assuntos em cima da mesa era a guerra. E, de visita à Turquia, fez questão de adiar a viagem a Riade, um dia depois da reunião russo-americana, para “não haver coincidências”. Donald Trump afinou e, primeiro em conferência de imprensa, depois em réplica na sua rede social, atacou uma e outra vez Zelensky e a Ucrânia. “Bem, já lá estão há três anos”, disse em referência à invasão russa. “Deviam ter acabado com isto. Nunca deviam ter começado”, declarou, atribuindo a responsabilidade à Ucrânia pelo início da guerra, e depois por não a terem terminado: “Podiam ter feito um acordo.”.“Gostaria de ver mais verdade da parte da equipa de Trump. Porque nada disto beneficia a Ucrânia.”Volodymyr Zelensky. Na capital saudita, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov negou ter discutido um plano de paz em três fases com os seus interlocutores norte-americanos, mas mostrou-se agradado com a ideia. O suposto plano, noticiado pela Fox News, previa um acordo de paz antecedido da realização de eleições na Ucrânia. Segundo o Kremlin, Zelensky não tem legitimidade ora porque considera que a revolução Euromaidan, em 2014, foi um “golpe armado anticonstitucional” orquestrado pelos EUA, ora porque o mandato do presidente ucraniano expirou em maio passado. .“Um ditador sem eleições, Zelensky tem de agir rapidamente ou não lhe restará um país.”Donald Trump.Trump, questionado se iria apoiar a exigência russa de “forçar a Ucrânia a realizar novas eleições para poder assinar qualquer tipo de acordo de paz”, falou de “uma situação em que não houve eleições” e ligou a ausência do escrutínio a uma suposta impopularidade do presidente. “Essencialmente temos lei marcial. O líder da Ucrânia, detesto dizê-lo, tem uma taxa de aprovação de 4%”. Volodymyr Zelensky respondeu à letra. “Se alguém pretende substituir-me neste momento, isso não vai acontecer. Relativamente aos 4%, vimos esta desinformação, sabemos que vem da Rússia. Compreendemos isso e temos provas de que estes números estão a ser discutidos entre os EUA e a Rússia. Infelizmente, o presidente Trump, por quem temos um grande respeito como líder do povo americano, que respeitamos muito e que nos apoia constantemente, vive neste espaço de desinformação”, disse aos jornalistas ucranianos. Segundo a mais recente sondagem, 57% dos ucranianos confiam no presidente. A sua popularidade atingiu o ponto máximo após a invasão russa (90% ). .350Mil milhões de dólares é quanto Trump alega que os EUA gastaram numa “guerra que não podia ser ganha”. Na realidade, Washington despendeu 69,2 mil milhões em assistência militar desde 2014.. Zelensky, que não se deu ao trabalho de explicar que um país em guerra e com parte do território ocupado não tem condições para organizar eleições justas, seguras e livres, rejeitou ainda a alegação de Trump de que os Estados Unidos “deram” 350 mil milhões de dólares à Ucrânia. “A verdade é um pouco diferente, embora, claro, estejamos gratos pelo apoio. Mas gostaria de ver mais verdade da parte da equipa de Trump. Porque nada disto beneficia a Ucrânia -- está a ajudar a tirar Putin do isolamento”, disse ainda. .320Mil milhões de dólares foi quanto se gastou em armas para Kiev, diz Zelensky: 120 mil milhões do lado ucraniano, 200 mil milhões entre EUA e UE..Trump retrucou numa mensagem no Truth Social: “Comediante de sucesso modesto” que se “recusa a fazer eleições”, mimoseou, antes da farpa mais funda, em tom de ameaça: “Um ditador sem eleições, Zelensky tem de agir rapidamente ou não lhe restará um país.” Foi depois a vez de outros atores continuarem a guerra de palavras. “Ninguém pode forçar a Ucrânia a desistir. Vamos defender o direito à nossa existência”, declarou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano Andrii Sybiha. O chanceler alemão Olaf Scholz classificou as declarações de Trump de “simplesmente erradas e perigosas” por negarem a Zelensky a sua legitimidade democrática. O primeiro-ministro britânico Keir Starmer lembrou que Zelensky foi “eleito democraticamente” e que é “razoável” não se realizarem eleições durante uma guerra, tal como aconteceu no Reino Unido durante a Segunda Guerra. Já o governo francês fez saber, através da porta-voz Sophie Primas, “não compreender muito bem a lógica” das declarações de Trump sobre a responsabilidade ucraniana em desencadear a guerra. Do lado americano, o vice J.D. Vance avisou Kiev de que “falar mal” de Trump nos media é “forma atroz” de lidar com esta administração.“O que Trump está a fazer é uma rendição antecipada”, comentou o antigo embaixador dos EUA na NATO Ivo Daalder, citado pelo Politico. “Querem voltar à normalidade como se estivéssemos em 1987 com Gorbachev e não em 2025 com Putin. É uma leitura completamente errada do que é Putin.”