O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, e a líder do governo de Itália, Giorgia Meloni, são apontados como exemplos que minam a democracia.
O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, e a líder do governo de Itália, Giorgia Meloni, são apontados como exemplos que minam a democracia.FRANCOIS LENOIR/UNIÃO EUROPEIA

Europa vive “recessão democrática” impulsionada por cinco “desmanteladores”

União das Liberdades Civis da Europa alerta que Itália, Bulgária, Croácia, Roménia e Eslováquia são países “desmanteladores” que minam intencionalmente o Estado de Direito em quase todos os aspetos.
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A “recessão democrática” na Europa aprofundou-se em 2024, com os países considerados bastiões democráticos a resvalarem para tendências autoritárias “e a utilização mínima que a União Europeia faz da sua caixa de ferramentas do Estado de Direito quase não fez qualquer diferença”, conclui a edição deste ano do Relatório sobre Liberdades no Estado de Direito levado a cabo pela organização não-governamental União das Liberdades Civis para a Europa. Os governos de Itália, Bulgária, Croácia, Roménia e Eslováquia são considerados “desmanteladores”, por “minarem sistemática e intencionalmente o Estado de Direito em quase todos os aspetos”, enquanto a Hungria é apelidada de “elo mais fraco”.

Em 2024, a Itália enfrentou grandes problemas no que toca ao Estado de Direito, marcado por reformas que comprometeram a independência judicial e promoveram uma abordagem punitiva da Justiça, como propostas do governo de extrema-direita de Giorgia Meloni para dar poderes ilimitados ao ministro da Justiça sobre o Ministério Público, o que aumenta o controlo político sobre o judiciário, pode ler-se no relatório.

É ainda referido que a liberdade dos media enfrentou agressões sem precedentes, com ataques públicos oficiais visando os jornalistas e promovendo um ambiente hostil à crítica, que corroeu a liberdade de expressão. Exemplo disso é a decisão da televisão pública RAI de cancelar a presença do escritor Antonio Scurati num programa para ler o seu “Manifesto antifascista”, a propósito do feriado nacional de 25 de Abril, que celebra a libertação de Itália do fascismo.

Segundo a RAI a decisão deveu-se a “razões editoriais”, mas Scurati, conhecido pelas suas obras sobre Mussolini e o fascismo, disse que este episódio foi a “demonstração definitiva” das alegadas tentativas do governo de Meloni de exercer o seu poder sobre a televisão pública.

Adicionalmente, notam os autores do relatório, o direito ao protesto e ao envolvimento cívico em Itália “foi cada vez mais ameaçado, à medida que o governo se moveu para criminalizar a dissidência e silenciar as vozes da oposição”.

No que diz respeito à Eslováquia, é notado pela União das Liberdades Civis para a Europa que o Estado de Direito continuou a deteriorar-se na sequência de medidas tomadas pelo governo liderado pelo populista Robert Fico, como a abolição do Gabinete do Procurador Especial e da Agência Nacional de Criminalidade (que enfraqueceu ainda mais a capacidade de investigar e processar eficazmente a corrupção de alto nível), ou a lei dos “agentes estrangeiros” de inspiração russa, que obriga as organizações não-governamentais que recebem mais de 5000 euros de fundos de fora do país a ostentarem o rótulo de “organização apoiada pelo estrangeiro”.

“Além disso, o governo tem recorrido frequentemente a procedimentos legislativos acelerados, contornando a consulta pública e limitando a participação democrática no processo legislativo”, refere o mesmo relatório, que nota ainda que “a liberdade dos meios de comunicação social foi igualmente comprometida, com o aumento da influência política e das ameaças contra os jornalistas, que dificultam a sua capacidade de investigar e informar sem receios.”

Na Roménia, as Presidenciais de novembro “expuseram uma preocupante vulnerabilidade no que diz respeito aos conteúdos publicados nas plataformas sociais, particularmente o TikTok”, rede social que impulsionou Calin Georgescu, o quase desconhecido candidato de extrema-direita, até uma surpreendente vitória na primeira volta das eleições, entretanto anuladas. Ao mesmo tempo, uma proposta de lei para garantir a independência dos serviços públicos de televisão e rádio está parada no Parlamento há quase quatro anos.

É ainda referido pelo relatório que o Estado de Direito na Roménia diminuiu ainda mais “devido à forte influência da publicidade política nos meios de comunicação social, o que compromete a independência dos jornalistas e favorece a divulgação de informações tendenciosas”, mas também que “as respostas inadequadas das instituições à desinformação e a falta de consultas públicas eficazes comprometem a integridade dos processos democráticos e enfraquecem os controlos e equilíbrios.”

A manipulação das instituições para atingir adversários políticos e empresariais do governo - liderado desde janeiro por Rosen Zhelyazkov, do Cidadãos pelo Desenvolvimento Europeu da Bulgária, o principal partido do país - em vez de combater eficazmente a corrupção é um dos pontos negativos apontados pela União das Liberdades Civis para a Europa em relação à Bulgária.

É ainda apontado que os sistemas de fiscalização do Estado foram enfraquecidos pela instabilidade política e por atrasos nas eleição de novos membros em agências-chave, minando o pluralismo e uma governação eficaz.

“Além disso, o espaço cívico foi ameaçado pela nova legislação que restringiu as atividades das ONG e liberdades restringidas relacionadas com a identidade de género, criando barreiras ao seu envolvimento em ambientes educativos”, pode ler-se na edição deste ano do Relatório sobre Liberdades no Estado de Direito.

A Croácia é apontada como uma nação onde o sistema judicial “enfrentou desafios significativos” devido à polémica nomeação de Ivan Turudic como procurador-Geral do Estado, um juiz com laços próximos à União Democrática Croata, o partido do primeiro-ministro Andrej Plen- kovic (no cargo desde 2016), e associado a suspeitos de corrupção, “o que enfraqueceu os esforços de luta contra a corrupção e suscitou preocupações sobre a integridade e a independência” da Justiça.

No panorama dos media croatas, é referido que as alterações ao Código Penal correm o risco de sancionar os autores de denúncias, e tem havido falta de progressos na implementação de proteções contra processos judiciais estratégicos que ameaçam os jornalistas. O relatório afirma ainda que “os esforços para garantir uma distribuição justa e transparente da publicidade estatal e melhorar os quadros legais para a liberdade de imprensa continuam a ser inadequados.”

Por último, a União das Liberdades Civis para a Europa afirma que a Hungria, governada por Viktor Orbán desde 2010, pode ser colocada numa categoria à parte destes outros cinco países, “uma vez que a sua classificação em termos de Estado de Direito é claramente inferior à média da União Europeia”. E lembra que “já no seu relatório intercalar de 2022, o Parlamento Europeu classificou a Hungria como um ‘regime híbrido de autocracia eleitoral’”.

Os autores do relatório notaram que, no ano passado, “o Estado de Direito sofreu uma nova regressão significativa em vários domínios”. Desde o sistema judicial, que se “debate com um financiamento inadequado e com falta de pessoal, o que levou a um aumento da pressão governamental que ameaça a independência judicial”, aos media, que prosseguem sem “alterações legislativas para reforçar a liberdade dos meios de comunicação social” e com cada vez mais entidades controladas pelo Estado.

O espaço cívico húngaro, acusa este relatório europeu, está a ser minado por leis restritivas que visam as ONG e a participação do público, enquanto as violações dos Direitos Humanos aumentaram, com a adoção de nova legislação sem consulta pública e o incumprimento contínuo das decisões dos tribunais internacionais.

Um dos casos flagrantes é a criação do Gabinete de Proteção da Soberania, que tem amplos poderes para investigar cidadãos ativos na vida pública, permitindo o “aprofundamento das atividades do governo para minar o sistema democrático e o envolvimento dos cidadãos”.

“Tendo em conta estas violações sistémicas do Estado de Direito, na sequência da recusa do governo em aplicar reformas genuínas e dos truques para evitar melhorias duradouras em domínios problemáticos, a Hungria não seria admitida na União Europeia atualmente”, vaticina a edição deste ano do Relatório sobre Liberdades no Estado de Direito.

ana.meireles@dn.pt

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