Juan Fernández Trigo mostra o livro com as assinaturas do presidente Ramalho Eanes e dos reis Juan Carlos e Sofia, que recorda a reinauguração da residência oficial em Lisboa do embaixador de Espanha, três anos depois do assalto de 27 de setembro de 1975, em que o Palácio de Palhavã foi saqueado. Estamos na Sala Amarela, onde se destaca uma pintura da Escola de Velázquez, mas sobretudo um outro quadro que é um sobrevivente do ataque lançado por militantes da extrema-esquerda portuguesa em reação às cinco penas de morte numa Espanha ainda franquista, faz agora meio século. “Do que resta da decoração original, penso que a peça mais valiosa é esta pintura de Luca Giordano, a única que resta de uma coleção de sete, a que sobreviveu ao ataque à embaixada”, diz o embaixador. E sublinha que, depois da redecoração, “há peças novas de valor considerável, acima de tudo há muitas tapeçarias importantes, tapeçarias de Bruxelas dos séculos XVI e XVII, mas esta pintura é a estrela da residência”.Acrescenta o embaixador, que “existe um certo toque oriental depois de o palácio ter sido redecorado, e pode apreciar-se isso quando se comparam as fotografias dos inventários. O último inventário foi feito precisamente nos primeiros meses de 1974, ou seja, um ano e meio antes do ataque, e nota-se hoje um brilho distinto. Há biombos, há muitos jarrões chineses, que têm também um toque português, pois Portugal foi um país muito focado na Ásia”. Além da indemnização paga pelo Estado português, e do apoio à restauração, terá havido cedência de algumas peças para embelezamento deste palácio do século XVII, propriedade de Espanha desde 1918, quando foi comprado a Francisco de Almeida Grandella, o dono dos Armazéns que deram fama ao comércio no Chiado.Ao pagar uma indemnização e apoiar os esforços espanhóis para devolver a dignidade à residência do embaixador, o Estado português assumiu a sua responsabilidade perante o ato grave ocorrido em Lisboa, pois a sagrada proteção diplomática fracassou. Diz o embaixador Fernández Trigo que é preciso entender a época: “Portugal estava em plena convulsão revolucionária, e, ao mesmo tempo, isso coincidia com os últimos meses de vida de Franco, em que já era evidente uma fragilidade do regime. E houve naquele dia um elemento específico: as cinco execuções levadas a cabo pelo regime franquista. Isso obviamente exaltou os ânimos e, após vários dias de manifestações em frente ao Palácio, protestando contra a ditadura, as pessoas decidiram invadir, e isso causou agitação entre os dois países. Também é verdade que as coisas foram imediatamente recolocadas nos carris por vontade de Madrid e de Lisboa”.Relembra o embaixador (que chegou a Portugal em fevereiro de 2024, a tempo dos 50 anos do 25 de Abril) que a Revolução Portuguesa foi muito sentida em Espanha, até porque durante décadas, apesar das diferenças entre Salazar e Franco, os dois regimes autoritários tiveram semelhanças. E isso acabou abruptamente em 1974. “Tenho lido sobre a Revolução portuguesa e a reação espanhola. E penso que há uma influência da situação de saúde de Franco, ou seja, houve uma capacidade de reação muito menor por parte das autoridades espanholas, mas é verdade que houve um momento em que havia dúvidas dentro do próprio regime de Franco sobre como agir. Por um lado, Arias Navarro, que era o presidente do governo, aproximou-se dos americanos para, de certa forma, colocar-se à disposição caso algum tipo de intervenção fosse proposto; e, no entanto, meses depois, Gerald Ford e Henry Kissinger visitaram Madrid, encontraram-se com Franco e quando o assunto de Portugal surgiu na conversa, Franco desvalorizou como se quisesse insinuar que não havia vontade por parte de Espanha de colaborar numa possível intervenção que pudesse reprimir a Revolução. Provavelmente Arias Navarro acreditava que tinha um futuro possível, e talvez quisesse conquistar os americanos. No entanto, Franco estava muito cauteloso, pensando que o seu fim estaria próximo, não querendo que uma confusão de última hora complicasse as coisas”. . Apesar do fracasso na proteção diplomática, tendo sido a embaixada na rua do Salitre também atacada, o embaixador saiu ileso naquele dia. “O embaixador Antonio Poch recebeu informação de que algo iria acontecer e recomendou a todo o pessoal que abandonasse a residência sem explicar em pormenor e saiu, refugiando-se na casa de um dos diplomatas. O seu carro ficou queimado. De acordo com os relatos, houve pequenas explosões na zona das traseiras. Escalaram as janelas do Palácio e muitas pessoas começaram a entrar e, tanto quanto sei, houve testemunhas que disseram que a polícia e o exército não agiram. E, a partir daí, pinturas e tapeçarias foram saqueadas e queimadas no pátio de entrada. As pessoas entravam e levavam coisas”. Em Espanha, com Franco muito debilitado e Juan Carlos ainda príncipe, terá sido Arias Navarro a gerir a situação. Em Portugal, Pinheiro de Azevedo era desde há dias o chefe do governo, Costa Gomes o presidente, e Melo Antunes o ministro dos Negócios Estrangeiros. “Franco morreu dois meses depois do ataque, e começou a ter os seus problemas de saúde, se não no final de setembro, na primeira quinzena de outubro, porque lembro-me que esteve internado mais de um mês, primeiro no Palácio do Pardo e depois já num hospital. O rei Juan Carlos era ainda príncipe. Terá sido Arias Navarro a tomar as decisões que era necessário tomar”, relembra o embaixador, diplomata que antes de Portugal chefiou missões no Haiti, Cuba, Paraguai e Venezuela. Foi também embaixador da UE no Uruguai.Sobre se desde o início houve um sentimento em pessoas dos dois governos que era necessário acalmar as tensões, Fernández Trigo responde: “penso que sim. Tinha 15 anos na altura, lembro-me das notícias, e não creio que houvesse qualquer animosidade particular. Penso que nessa altura o que provavelmente aconteceu foi mais um certo medo por parte das autoridades franquistas do que poderia acontecer em Espanha, ou seja, de facto, o grande medo do exército espanhol naquela altura era a União Militar Democrática, que era como uma espécie de embrião de movimento das forças armadas, que estavam muito preocupadas em reprimir. Nunca ganhou força, mas começou a ser falada”. A Revolução portuguesa tinha causado surpresa em Espanha e havia quem se interrogasse sobre se podia ali acontecer o mesmo. Se contarmos desde o início da Guerra Civil, em 1936, o generalíssimo governava há quatro décadas. . “Creio que a facilidade com que o regime faz o haraquiri e entende que tem de tomar decisões depois de Franco morrer, é um pouco determinada pelo que aconteceu em Portugal um ano antes. ‘O mesmo não nos pode acontecer. Temos de tomar decisões para que isto não se transforme em algo violento’. O exemplo português teve provavelmente um efeito, de início de surpresa, choque e preocupação, e, a longo prazo, de levar a tomar decisões para que algo assim não pudesse acontecer”.Uma visita guiada revela um Palácio de Palhavã ricamente decorado, apesar de algumas ausências continuarem a ser notadas. Por exemplo, da capela desapareceu uma pintura de Juan Pantoja de la Cruz, substituída na redecoração. O essencial das novas peças veio do Património Nacional, dos fundos do Museu do Prado e dos fundos do próprio ministério.Fernández Trigo ainda antes de apresentar credenciais claro que já conhecia o Palácio, cuja história fascina e está cheia de episódios bem mais antigos do que os incidentes no PREC. “É um palácio que não pertencia à monarquia portuguesa, mas que a monarquia arrendou às famílias que o possuíam em duas ocasiões. Uma delas no século XVIII, quando D. João V reconheceu os três Meninos de Palhavã como filhos. Foi aqui que ocorreu um dos acontecimentos históricos mais significativos. Um dos Meninos era o inquisidor-geral e outro era o arcebispo de Braga. E o marquês de Pombal apareceu aqui em diversas ocasiões, e numa delas o inquisidor recusa-se a autorizar um livro que teorizava sobre a importância da monarquia e o direito de limitar os direitos da Igreja. Isto provoca um enorme confronto e Pombal condena à morte os dois Meninos que estavam presentes. Surpreendentemente, escaparam. Em última análise, como eram meios-irmãos do rei D. José I, as sentenças foram comutadas, mas foram banidos de Lisboa durante 17 anos. Portanto, é um palácio que teve muitas vicissitudes, mas há essa ligação importante com a monarquia portuguesa. Por outro lado, acho que se tem mantido muito bem ao longo dos anos; é um marco na cidade e, para Espanha, motivo de orgulho. Pertence ao Estado espanhol desde 1918 e em 1939, no final da Guerra Civil, passou a ser apenas uma residência. Mudámo-nos para a rua do Salitre, onde hoje se encontram os escritórios do consulado e da embaixada, junto à Avenida da Liberdade. Também foram atacados em setembro de 1975. Aliás, disseram-me que as bandeiras da ETA e da FRAP foram colocadas no meu escritório atual”.O embaixador, que foi buscar um dos velhos inventários, o de 1971, mostra fotos a preto e branco da residência. E chama a atenção para uma da entrada, dos azulejos com o brasão de D. João V. Intactos e no mesmo lugar. “Na verdade, não estavam no Palácio, mas quando o diplomata espanhol o comprou em 1918, aparentemente visitou um antiquário em Lisboa e encontrou estes azulejos. Não são originais do palácio, mas são o brasão de D. João V, o rei de Portugal, o pai dos Meninos de Palhavã”. .Os cem anos espanhóis do Palácio de Palhavã.Quando os ibéricos estão inspirados...