Coube a António Filipe Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, relembrar a história do Palácio de Palhavã, que este ano celebra um século como propriedade do Estado espanhol, primeiro como embaixada, depois como residência do embaixador em Lisboa. Contou na quinta-feira o historiador de arte que se trata de um edifício do século XVII, que teve inquilinos famosos como os três filhos ilegítimos de D. João V, aos quais o povo chamava de "meninos da Palhavã" mesmo quando um deles até era já inquisidor-mor do reino. Claro que também se falou de pormenores artísticos, como as esculturas italianas nos jardins, mas sobretudo os episódios históricos vieram ao de cima, como o assalto em setembro de 1975, quando o Portugal revolucionário decidiu protestar contra um franquismo que vivia os últimos dias (Franco morreu em novembro)..E por falar em Francisco Franco, o seu irmão Nicolás ali habitou durante duas décadas a partir de 1938, recordou Ignacio Vásquez Molini, outro dos participantes numa mesa redonda organizada pelo embaixador Eduardo Gutiérrez Sáenz de Buruaga na sua celebrada residência (a oficial). Antes, pormenorizou Vázquez Molini, a ditadura salazarista tinha feito a vida negra ao embaixador Sánchez Albornoz, representante da república espanhola desafiada pelo generalíssimo. Desde cortar a água e a luz até dificultar o abastecimento da despensa, valia tudo, sublinhou o escritor, que sobre o tema publicou no passado, em edição portuguesa, o romance A Embaixada Vermelha em Lisboa..Num ambiente culto mas descontraído, o moderador da mesa redonda, Inocencio Arias, não resistiu a alertar que a noite prometia aos presentes a assombração dos diplomatas que ali viveram e que por algum razão não foram referidos, um chiste, ou piada, a juntar a muitas outras, algumas sobre Cristiano Ronaldo e o Real Madrid, o que tem muito peso vindo de um homem que escreveu antes do sucesso do futebolista português no clube espanhol um livro sobre Os Três Mitos do Real Madrid, para ele Di Stefano, Butragueño e Raúl. Não falou da obra, nem de uma eventual edição atualizada talvez para Quatro mitos, mas deixou bem claro o quanto, como adepto, agradecia ao português..Foi, aliás, de cumplicidade entre espanhóis e portugueses toda a sessão. Já no início o embaixador Eduardo Gutiérrez falava de um momento de excelentes relações, o que a recente visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa a Espanha também serviu para comprovar. E presente estava Martins da Cruz, que foi embaixador em Madrid e também ministro dos Negócios Estrangeiros. Alinhando também na tese das relações cada vez mais sólidas, não deixou de brincar com as diferenças de personalidade entre os dois povos, sintetizando-as na diferença entre o uso do imperativo, bem castelhano, e o do condicional, tão português. Impossível aqui de repetir com a mesma piada, alternando entre um idioma e o outro, está a sua imitação do espanhol que entra num bar, cumprimenta com poucas palavras o dono, um tal Pablo, e exige uma cerveja. Pelo contrário, imita também Martins da Cruz, um português entra, questiona o sr. Silva como vai a saúde e com jeitinho lá lhe pergunta em tom de favor pessoal se lhe pode servir uma cerveja. Riso geral..No mesmo registo quase informal, outro participante, Antonio Sáez Delgado, professor da Universidade de Évora, falou dos intelectuais de um país e do outro que se interessaram pelo vizinho, como Miguel de Unamuno e José Ortega Y Gasset, notando que mais facilmente se encontra autores portugueses editados em Espanha do que o contrário. Sentado na assistência, reagiu logo Javier Rioyo, diretor do Instituto Cervantes em Lisboa, explicando que tal se deve à facilidade com que muitos portugueses leem em espanhol e isso desde sempre, pois mesmo D. Quixote demorou século e meio a ser traduzido para português porque era lido no original. Inocêncio Arias interveio também, mas para lamentar que Eça de Queiroz seja menos conhecido do que merece pelos espanhóis, muitos reconhecendo o nome mas hesitando até se é português ou brasileiro o autor de livros como O Primo Basílio, muito elogiado pelo veterano diplomata que em tempos serviu em Portugal e que também chegou representar a Espanha na ONU..À mesa redonda, que quase foi uma tertúlia luso-espanhola, seguiu-se uma receção, com o pianista Paulo Oliveira a interpretar repertório espanhol e português do século XX (Falla, Granados, Albéniz e Vianna da Motta). Lá fora, quase noite, viam-se os lindíssimos jardins do Palácio de Palhavã, memória viva dos tempos em que tudo à volta era um imensa quinta e a zona um subúrbio de Lisboa. Recordo-me de descobrir este palácio quando estudante universitário vindo de Setúbal de autocarro tinha direito duas vezes por dia a vê-lo de fora. Eram os tempos em que a estação de metro da Praça de Espanha (pois claro!) ainda se chamava Palhavã. O interior magnífico só descobri anos mais tarde como jornalista, e impressiona talvez ainda mais. Foi um grande investimento o feito por Espanha em 1918, mesmo que ninguém na mesa redonda soubesse o valor pago. Vázquez Molini relembrou que naquele ano final da Primeira Guerra Mundial, em que a Espanha se mantivera neutral, o país exibia grande pujança económica, como prova, acrescentou, o produzir o Hispano-Suíço, talvez o melhor automóvel da época, e ter Leonardo Torres y Quevedo a criar dirigíveis destinados a viajar até às Américas..Para quem quiser saber mais sobre este palácio lisboeta com alma espanhola recomenda-se um livro editado em 2009, que junta o texto de José Monterroso Teixeira com as fotografia de Laura Castro Caldas e Paulo Cintra. Foi iniciativa na época da própria embaixada.