Em abril de 1944, a fábrica da morte de Auschwitz deixava escapar dois homens. Rudolf Vrba e Fred Wetzler eram os primeiros judeus a fugir do campo de concentração. Juntos, ludibriaram milhares de homens das SS, passaram sob cercas eletrificadas, percorreram pântanos, montanhas e rios. Em liberdade, Vrba tornou-se uma testemunha ocular do genocídio nazi. Memorizou cada detalhe do seu cativeiro, informação que contextualizou no relatório de 32 páginas que expôs ao mundo a Solução Final. Relatório que chegou às mãos de Roosevelt, de Churchill e do Papa. O impacto do documento não produziu inicialmente o efeito que Rudolf Vrba estimara. Aos seus olhos, o mundo parecia não acreditar na máquina de morte nazi. Jonathan Freedland, jornalista britânico, investigou a vida de Rudi, como ternamente chama ao sobrevivente de Auschwitz. Colunista do The Guardian e apresentador da série de história contemporânea da BBC Radio 4, The Long View, Freedland entregou aos escaparates o livro O Mestre da Fuga - O Homem que Fugiu de Auschwitz para Avisar o Mundo. Falámos com o autor..O seu primeiro contacto com a história de Rudolf Vrba ocorre aos 19 anos, em 1986. Quer contar-nos em que contexto e que impressão lhe deixou esta história? Deparei-me pela primeira vez com a figura de Rudolf Vrba numa sessão de cinema em Londres. Assistia ao filme Shoah do cineasta francês Claude Lanzmann e foi uma experiência estranha, com aquela procissão de homens grisalhos, velhos, quebrados. De repente, surge em cena uma figura que explodia carisma. Pareceu-me o Al Pacino em Scarface. Usava um casaco de couro bege, tinha o cabelo escuro e farto. E, acima de tudo, falava a língua inglesa, quando todos os outros no filme falavam em polaco, russo ou alemão. Assemelhava-se a uma figura do nosso mundo, naquele presente, ao invés de uma figura do passado. E então, menciona, quase como um aparte, que havia escapado de Auschwitz. Acontece que o cineasta não parecia muito interessado nessa história. Mas eu, jovem, vi-me dominado por essa imagem. Na época, percebia que era quase impossível a um prisioneiro judeu escapar de Auschwitz. E, no entanto, ali estava aquele homem, relativamente jovem, que havia escapado do campo de concentração. Eis a razão para viver fascinado com esta história e, de certa forma, julgo que sempre soube que a investigaria mais profundamente..Sim e acaba por recuperar a história de Vrba mais de 30 anos depois. Porquê agora? Sim, a decisão de escrever a história de vida de Vrba tardou quase 40 anos. Contudo, voltava constantemente à narrativa de Rudi [Rudolf] porque este arriscou tudo para tirar a verdade oculta sob uma montanha de mentiras e, de repente, estamos perante um mundo que se afoga em mentiras. Os exemplos óbvios foram a campanha do Brexit e a campanha de Trump em 2019. Mas também penso em Vladimir Putin e na Rússia e a sua constante desinformação para perceber que estamos cercados por mentiras. O exemplo de Rudi pareceu-me uma espécie de caso definitivo de combate à pós-verdade e combate às notícias falsas. Esperava que, ao destacar o que ele havia feito, pudéssemos uma vez mais perceber como a verdade é importante. Que, às vezes, a diferença entre a verdade e a mentira pode ser a diferença entre a vida e a morte..O tema do risco de apagarmos ou manipularmos os factos de acontecimentos passados, como o Holocausto, já tinha sido por si trabalhado em livros anteriores. Por exemplo, em To Kill the Truth, de 2019. Quer contar-nos o que motivou esse livro? Sim. De certa forma, a motivação para o livro que refere assemelha-se àquela que preside a este meu novo livro. Em ambos os casos, queria, creio eu, fazer soar o alarme sobre os perigos da pós-verdade. Queria mostrar de uma forma extrema onde esse apagar da verdade pode levar. O livro de 2019, punha-nos perante um cenário imaginário, o de um mundo que proibia o conhecimento do passado ou da história. Pessoalmente, achei essa visão aterrorizadora. Neste livro, mais uma vez, o cenário é verdadeiramente extremo. A única diferença é que esta história é real..Em O Mestre da Fuga opta por um registo biográfico. Que homem foi Rudolf Vrba? Rudolf Vrba foi um homem extraordinário que nasceu há quase cem anos, em 1924, cresceu na Eslováquia e revelou um dom excecional: era uma criança muito inteligente dotada para as línguas e ciência. Como judeu, Vrba viu-se obrigado a comparecer numa determinada data, num determinado horário, para ser deportado para leste. Simplesmente recusou-se a fazê-lo. Nas suas palavras, considerou a ordem "estúpida". Assim inicia a primeira de uma série de fugas. Por isso intitulei o livro de O Mestre da Fuga..Partiu para o seu livro com uma imagem de Rudolf Vrba a partir das fontes que consultara. No final da investigação que fez, o que mudou na sua forma de olhar para Vrba? Quando iniciei esse processo, julgo que, provavelmente, olhei para Rudi em duas dimensões. Sabia que se tratava de uma figura heroica que fez o quase impossível ao escapar de Auschwitz. Mas isso é tudo o que eu realmente sabia. No final, vi-o a três dimensões, como uma pessoa completa, complicada, com defeitos e também com grandes qualidades. Havia conseguido algo heroico, mas também estava cheio de raiva daqueles que se recusaram a agir ou a transmitir o aviso ao mundo que trazia de Auschwitz. Vi que Vrba era muito diferente de outros sobreviventes do Holocausto, ou pelo menos da imagem que temos dos sobreviventes do Holocausto. Ali estava um homem duro, difícil, brilhante e nobre..Passou muitas horas a entrevistar a viúva de Vrba (Robin Vrba) e a sua primeira mulher (Gerta Vrbová). O que lhe contaram sobre Rudolf Vrba que ainda não tivesse sido escrito? Tive muita sorte porque Rudolf Vrba também deixou muitos testemunhos. Obviamente, havia o seu próprio livro de memórias, publicado há quase 60 anos. Mas também tinha sido uma testemunha frequente em processos judiciais, testemunhando contra criminosos de guerra e também contra negacionistas do Holocausto. Foi entrevistado por historiadores e cineastas como Claude Lanzmann. Tudo isto se traduz numa riqueza de milhares de páginas com a sua própria voz. Mas também tive muita sorte porque localizei a sua primeira esposa, Gerta, que ainda vivia, aos 93 anos, em Londres. Durante o verão de 2020, em plena pandemia de covid-19, Gerta e eu sentámo-nos no seu jardim e recordámos o homem com quem ela se casara, que também foi o seu primeiro namorado na adolescência. Foi muito importante, porque significava que Gerta conhecia o homem antes de ele ir para Auschwitz. Ela conhecia o menino. E essas visitas culminaram num momento verdadeiramente especial. Gerta disse-me que o seu neto me traria algo que ela me queria entregar. Ele voltou com uma mala vermelha. Os dois entregaram-ma e Gerta disse-me: "Estas são as cartas de Rudi, quero entregar-lhas". E foi nesse momento que eu soube que tinha de escrever este livro. Por seu turno, as histórias que Robin me contou permitiram-me perceber o impacto que a sobrevivência ao Holocausto teve sobre Vrba. Além dessas conversas, descobri muito sobre a vida de Rudi que não havia sido escrito antes e depois de Auschwitz e, essencialmente, sobre a jornada até ao relatório que ele e Fred Wetzler escreveram. Acho que nenhum livro antes deste havia construído o percurso completo do relatório, documento que era quase uma aventura de fuga em si. A forma como o relatório foi transmitido, em segredo, além-fronteiras, de mão em mão, por membros da resistência em toda a Europa ocupada pelos nazis. Até que, finalmente, chegou às mesas de Winston Churchill, Franklin Roosevelt e do Papa em Roma..Na apresentação que é feita ao seu livro em Portugal lemos que a fuga de Auschwitz de Vrba não foi a sua última. O que levou Vrba a ser um homem sempre em fuga? Julgo que o desejo de liberdade foi algo que marcou Rudi desde o início. Mesmo quando menino, era alguém que apenas desejava ser livre. E isso fê-lo recusar ordens, sob qualquer regime, em qualquer país que restringisse a sua liberdade. Parecia-lhe estúpido e ridículo uma pessoa oprimir outra. Julgo que também é verdade, como me revelou a sua primeira esposa, que ele foi inevitavelmente prejudicado pela experiência que viveu, como qualquer um seria. Que ele foi prejudicado por ver o que viu, e por ser tão jovem. Acho que isso inevitavelmente lançou uma sombra que pairou sobre ele ao longo da sua vida. E claro, de certa forma, ele procurava escapar daquela sombra. Julgo que não é coincidência que tenha encontrado a felicidade, finalmente, a um continente de distância de Auschwitz. E com uma mulher de uma geração totalmente diferente..A fuga também contou com Fred Wtzler. Quem foi este outro homem? Fred, seis anos mais velho que Rudi, nasceu na mesma cidade da Eslováquia. Foi igualmente um herói na fuga de Auschwitz. A tragédia da sua história prende-se ao facto de ter permanecido na Checoslováquia comunista depois da guerra, numa sociedade que impôs grandes restrições à capacidade de os sobreviventes do Holocausto contarem a sua história. Fred não era livre para contar a sua história diretamente, teve que disfarçá-la na forma de um romance escrito sob um pseudónimo. Fred morreu em 1987, mais ou menos esquecido. E não deixou para trás a riqueza de documentos e testemunhos que me permitiram escrever a história de Rudi..Não obstante o feito de Vrba ter sido transposto para inúmeros livros, documentários e estudos, a sua história ainda é pouco conhecida. Como se explica isso? Talvez porque Rudi foi uma espécie de sobrevivente desconfortável. Digo isso porque acho que, mesmo hoje, esperamos que os sobreviventes do Holocausto, já muito velhos, nos consolem ou nos confortem de alguma forma. Esperamos que distribuam uma espécie de sabedoria curativa, que nos faça sentir melhor, dizendo-nos que, no fim, os seres humanos são bons, e não maus, e assim por diante. Mas Rudi recusou-se a fazer isso. Em vez disso, ele apontaria um dedo muito acusador para todos aqueles que falharam em transmitir ou agir de acordo com o relatório que ele e Fred detalharam. Isso significava que as pessoas muitas vezes não convidavam Rudi para grandes reuniões ou para falar como um sobrevivente, porque temiam que ele, tal como um entrevistado me contou, enveredasse na "raiva e acusações". Vrba disse, certa vez, a um produtor da BBC: "Não sou o clichê sobrevivente do Holocausto". Dito de outra forma, Vrba contava uma história desconfortável: as pessoas queriam ouvir que todos os que não estavam do lado dos nazis eram heróis, que os Aliados - os EUA e Reino Unido - assim como judeus líderes na Hungria, se comportaram perfeitamente. E Rudi insistiu em dizer que não era tão simples assim..Na época, o relatório Vrba-Wetzler que pormenorizou a história de Rudolf Vrba e permitiu contar ao mundo o horror de Auschwitz não teve o impacto que os autores esperavam, o que inclui os Aliados. Porquê? Acredito que houve várias razões pelas quais os Aliados não tentaram, por exemplo, bombardear as linhas ferroviárias rumo aos campos nazis de extermínio. Foi o que a liderança judaica pediu quando circulou o relatório de Fred e Rudi de Auschwitz. A força aérea em Londres e Washington decidiu que teria sido uma "diversão" face ao seu esforço de guerra. Estavam convencidos de que a melhor forma de ajudar os judeus era derrotar Adolf Hitler. Havia também um certo preconceito. Em parte, isso significava que nem sempre se acreditava nos relatos dos judeus sobre assassinatos na Europa nazi. Pensava-se que os judeus exageravam. Consultei documentos em Londres e Washington que transmitem ceticismo em relação às evidências que chegavam dos judeus. Também sucedeu que, tanto em Londres quanto em Washington, os políticos se revelavam relutantes face à possibilidade de os seus compatriotas pensarem que eles estavam a lutar na guerra pelo bem dos judeus. Assim, julgo que todas essas razões concorreram para que os Aliados nunca tenham bombardeado as linhas da ferrovia. E não posso deixar de acreditar - dado que 15.000 judeus estavam a ser assassinados todos os dias em Auschwitz na primavera de 1944 - que mesmo que a circulação da ferrovia tivesse sido interrompida por apenas uma semana ou um mês, isso teria poupado um enorme número de vidas. Além de tudo isto, havia definitivamente um problema de incredulidade. As pessoas, incluindo os judeus, achavam quase impossível acreditar no que ouviam. Isso ocorre em parte porque nada como Auschwitz jamais existira antes: uma operação industrial dedicada a um único propósito, o de matar seres humanos. Era algo novo. As pessoas achavam quase impossível acreditar. É uma espécie de mecanismo de sobrevivência. Nós simplesmente não podemos acreditar. No livro, cito o filósofo judeu francês Raymond Aron, que disse: "Eu sabia, mas não acreditava - e porque não acreditava, não sabia"..O livro toca numa questão delicada, a de líderes judeus que, na época, não divulgaram o relatório. Refere, por exemplo, a omissão do jornalista Rezső Kasztner, do Conselho Judaico na Hungria. O que pode explicar este facto? Parte da explicação é a incredulidade que já referi. Havia colegas de Kasztner em Budapeste que, simplesmente, não podiam acreditar no que ouviam: presumiram que o relatório era, como um deles afirmou, "o produto da imaginação febril de dois jovens imprudentes". Mas também é verdade que Kasztner tinha outros motivos para não divulgar o relatório. Detalho essa questão no livro, e é um episódio extremamente controverso. Algumas pessoas dizem que Kasztner não transmitiu o relatório porque não queria comprometer as negociações, que estava pessoalmente envolvido com os nazis, visando salvar os judeus da Hungria. Outros referem que essas conversas - com Adolf Eichmann, entre outros - tinham um objetivo diferente: não salvar os judeus da Hungria, mas salvar uma pequena fração daquela comunidade. No final, Kasztner salvou 1.684 judeus, transportados num comboio que os levou para um local seguro. Muitos deles eram amigos e parentes do próprio Kasztner. Os seus críticos acreditam que o preço que os nazis cobraram a Kasztner por aquelas vidas foi o seu silêncio - daí a sua recusa em libertar o relatório escrito por Fred e Rudi. Se for esse o caso, ele terá salvo 1.684 vidas à custa das vidas dos 437.000 judeus húngaros que foram enviados para as câmaras de gás em apenas 56 dias. Como eu disse, este é um episódio muito controverso, mas a visão de Rudi foi muito clara ao acreditar que Kasztner tinha alguma responsabilidade pelo fracasso em salvar centenas de milhares de judeus..Como tem sido recebido o seu livro, visto não estarmos perante uma história consensual? O livro foi extremamente bem recebido embora, como refere, esta não seja uma história fácil. Gosto de acreditar que agora, 80 anos depois dos eventos que relato, e com a maioria dos envolvidos já mortos, as pessoas estão prontas para ver o heroísmo de Rudi e deixar de lado as acusações do que ele fez no curso da sua vida, ligada às controvérsias. Isto impediu que algumas pessoas lhe creditassem o reconhecimento que lhe é devido..Jonathan Freedland Bertrand Editora 376 páginas.dnot@dn.pt