Espanha. Aprovadas nova lei do aborto e baixas por menstruações dolorosas

Revisão da lei pretende acabar com os obstáculos que limitam a prática da IVG em hospitais públicos em Espanha e inclui o direito das mulheres a baixas médica por menstruações "dolorosas e incapacitantes". "Um dia histórico", declarou a ministra da Igualdade espanhola.
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O parlamento espanhol aprovou esta quinta-feira, numa votação final, a lei que visa garantir o acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG) nos hospitais públicos e que institui as baixas por menstruações dolorosas e incapacitantes.

No caso do aborto, a revisão da lei "da saúde sexual e reprodutiva e da interrupção voluntária da gravidez" pretende acabar com os obstáculos que atualmente limitam, na prática, a prática da IVG em hospitais públicos em Espanha, regulando, entre outras coisas, o exercício da objeção de consciência dos profissionais de saúde.

"A imensa maioria" das IVG em Espanha, 78,04%, faziam-se, em 2020, em clínicas e hospitais privados, havendo regiões em que "nos últimos anos não se registou nenhuma interrupção voluntária da gravidez", segundo o texto introdutório da revisão da lei hoje aprovada.

Para contornar este obstáculo, a nova lei - uma iniciativa do Governo, que é uma coligação do Partido Socialista (PSOE) com a plataforma de extrema-esquerda Unidas Podemos - estabelece que todos os profissionais de saúde declarem por escrito se são ou não objetores de consciência e que essa declaração seja válida tanto quando trabalham no serviço público como em clínicas privadas.

Em função das declarações de objeção de consciência, os governos regionais, que tutelam a saúde em Espanha, têm depois de garantir que há sempre médicos e enfermeiros disponíveis nos hospitais públicos para uma mulher aceder à IVG na sua área de residência.

A nova legislação acaba também com os três dias de reflexão obrigatórios para as mulheres que pedem a IVG e aumenta o acesso à designada pílula do dia seguinte, tanto com maior disponibilização gratuita em determinados serviços de saúde e sociais, como com aumento da comparticipação.

Por outro lado, as raparigas com 16 e 17 anos voltam a poder aceder à IVG sem necessidade de autorização dos pais, como já acontecia antes de uma alteração introduzida na lei do aborto por Governos do Partido Popular (PP, direita), em 2015.

A nova lei institui também uma série de direitos relacionados com "a saúde menstrual", com medidas consideradas inéditas na Europa, como o direito das mulheres a baixas médicas, totalmente pagas pela Segurança Social, de até cinco dias, por menstruações "dolorosas e incapacitantes".

Serão também distribuídos produtos de higiene menstrual em escolas, centros sociais ou prisões, para combater "a pobreza menstrual", nas palavras usadas hoje no parlamento pela ministra da Igualdade, Irene Montero, uma das dirigentes do partido Podemos.

"Hoje é um dia histórico no avanço dos direitos feministas", escreveu no Twitter a ministra da Igualdade.

A revisão da lei do aborto de Espanha foi aprovada com os votos a favor de 185 deputados e a oposição de 154, entre estes, os parlamentares da direita e da extrema-direita (PP e Vox).

A deputada María González Vázquez, do PP, criticou todas as alterações introduzidas em relação ao aborto e considerou a revisão "desnecessária" e "inoportuna", criticando em especial o fim dos três dias de reflexão obrigatórios, que as mulheres deixem de receber de forma obrigatória informação sobre apoios "e alternativas" e que as menores de 16 e 17 anos não dependam dos pais para aceder à IVG.

Já o VOX, é contra o aborto a pedido da mulher, por princípio.

No processo legislativo no parlamento, a lei acabou por incorporar, nas últimas semanas, uma nova disposição para proibir medidas anti-aborto como as anunciadas recentemente pela região de Castela e Leão.

Este executivo regional, o único governo em Espanha de que a extrema-direita faz parte, através do VOX, anunciou que iria passar a propor às mulheres que querem abortar na região a possibilidade de ouvirem "o bater do coração do bebé" e de verem o feto numa ecografia 4D.

O novo protocolo para o aborto em Castela e Leão não avançou até agora, depois de semanas de críticas por parte de associações, médicos e a generalidade dos partidos espanhóis, incluindo o parceiro de coligação do VOX na região, o PP.

Também esta quinta-feira, foi definitivamente aprovada no parlamento a "lei trans" espanhola, que permite mudar de género no registo civil sem relatórios médicos.

A "lei para a igualdade real e efetiva das pessoas trans" permite mudar de género no registo civil em Espanha, a partir dos 12 anos, sem parecer médico.

Será necessária autorização de um juiz para os casos entre os 12 e os 14 anos e dos pais ou tutores legais entre os 14 e os 16 anos, mas para maiores de 16 anos bastará a própria vontade de quem quiser fazer a alteração de género.

Em todos os casos deixam de ser necessários pareceres médicos e provas de qualquer tratamento hormonal para retirar a carga de patologia à mudança de género.

"As pessoas trans [transexuais] são quem são", sem precisarem de "pedir autorização ou desculpa a ninguém", e cabe ao Estado reconhecer-lhes os direitos, afirmou a ministra da Igualdade, Irene Montero, no encerramento do debate parlamentar.

A nova legislação demorou mais de um ano a ser aprovada e pelo caminho dividiu o Partido Socialista (PSOE), que governa Espanha em coligação com a plataforma de extrema-esquerda Unidas Podemos, de que faz parte Irene Montero.

A lei contou com a oposição de associações feministas que, como a ala crítica do PSOE, consideram que pode prejudicar os avanços alcançados pelas mulheres na luta pela igualdade de direitos.

Para estes movimentos, ser mulher não é uma identidade subjetiva e o feminismo é a luta contra a discriminação de uma identidade objetiva, baseada no género biológico.

Entre as críticas, que hoje se voltaram a ouvir pela voz de deputados do Partido Popular (PP, direita) e Cidadãos (liberais), estão também alertas de falta de "segurança jurídica" da nova legislação, como aconteceu noutros países, como a Escócia, que agora recuam ou travam leis similares.

Em causa está, por exemplo, o caso hoje referido no parlamento espanhol de um homem condenado por duas violações de mulheres, na Escócia, que mudou de género e assim teve direito de cumprir a pena em alas femininas da prisão.

Mas há também, dizem estas vozes críticas, a possibilidade que se abre para homens participarem nas competições desportivas ao lado de mulheres ou de se apresentarem em concursos que exigem provas físicas para seleção e têm padrões diferentes estabelecidos para candidatos masculinos e femininos.

Os alertas passam ainda por questões na aplicação das leis da violência de género ou das quotas nas leis eleitorais.

A ministra Irene Montero voltou hoje a considerar que "as mulheres trans são mulheres e ponto" e falou em "transfobia" durante o processo de debate.

Os deputados dos vários grupos parlamentares que defenderam hoje a lei no parlamento insistiram em que está em causa um reconhecimento e alargamento de direitos em Espanha e a não discriminação de um grupo de pessoas estigmatizadas através de uma lei que não divide nem é feita "contra ninguém".

O PP e o Cidadãos sublinharam hoje serem a favor de uma lei que reconheça e proteja os direitos dos transexuais, mas consideraram que não houve no parlamento espanhol um processo legislativo suficientemente tranquilo e duradouro para permitir todos os debates e audições necessários e, por isso, a lei não tem "segurança jurídica".

O grupo do PP chegou mesmo a apelar às bancadas dos partidos no Governo para retirarem a iniciativa e evitarem a votação final, para poder ser feita "uma boa lei".

Também a extrema-direita do partido VOX se opôs à nova lei, por considerar estarem em causa "delírios" e um "fomento da homossexualidade e da transexualidade" num momento em que há "um aumento alarmante da homossexualidade e da transexualidade" em Espanha, defendendo que o Estado devia promover a "reconciliação das pessoas com o seu corpo" e não "a mutilação irreversível" através de tratamentos hormonais e cirurgias.

A ministra Irene Montero respondeu que a lei "desvincula precisamente" o reconhecimento da identidade de género de tratamentos médicos e condenou "as mentiras e os boatos" do VOX, que fomentam "o discurso de ódio" contra grupos de pessoas e consideram anormais ou doentes os homossexuais e os transexuais.

A lei hoje aprovada proíbe cirurgias de modificação genital até aos 12 anos em crianças que nasçam com características físicas dos dois géneros (crianças intersexuais ou hermafroditas).

Por outro lado, consagra o direito de lésbicas, bissexuais e transgénero com capacidade reprodutiva acederem às técnicas de reprodução medicamente assistida e permite a filiação dos filhos de mães lésbicas e bissexuais sem necessidade de casamento.

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