"Cazaques são por natureza ponte entre Ásia e Europa. Isto levou-os a uma diplomacia em que querem ser promotores de consensos"

Antigo presidente da Comissão Europeia foi uma das principais personalidades presente no Fórum Internacional de Astana. José Manuel Durão Barroso conversou com o DN sobre a diplomacia multivectorial do Cazaquistão, que procura atenuar a tradicional influência da vizinha Rússia e também a nova influência da China, e salienta que foi com ele que a UE começou a estreitar laços com este país da Ásia Central. Sobre o conflito entre Moscovo e Kiev, que obriga Astana a um complicado equilíbrio diplomático, diz-se pessimista sobre negociações a breve prazo.
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Foi um dos nomes incluídos no programa mesmo antes do início dos trabalhos, mas sem dúvida José Manuel Durão Barroso revelou-se uma das estrelas da Conferência Internacional de Astana, entrevistado por várias televisões e convidado a deixar-se fotografar junto com muitos participantes neste evento sobre geopolítica organizado na semana que passou na capital cazaque. O seu papel na aproximação entre a UE e o Cazaquistão quando foi presidente da Comissão Europeia explica em boa parte a notoriedade aqui de Durão Barroso, aliás o único português em destaque nos dois dias do Fórum, se não contarmos com a intervenção do secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, que interveio por vídeo na sessão inaugural, aquela em que o presidente Kassym-Jomart Tokayev reafirmou o compromisso do Cazaquistão com o multilateralismo, o combate ao armamento nuclear e a procura da paz. O maior país da Ásia Central, também o nono maior do mundo, tem uma relação próxima com a Rússia do ponto de vista histórico, mas preza muito a sua independência e desde a invasão russa de fevereiro de 2022 optou por defender vocalmente a integridade territorial da Ucrânia mas abstendo-se na ONU durante as votações de condenação da Rússia.

Durão Barroso, que teve tempo para um encontro informal com um pequeno grupo de portugueses - incluindo a embaixadora em Astana, Maria de Fátima Mendes, o número dois da nossa missão, David Malaquias de Matos, e ainda o presidente do Tagus Park, Eduardo Baptista Correia, um dos convidados para o Fórum -, foi um dos palestrantes no debate "Rethinking peace, conflict, and the global order", moderado pelo jornalista Ali Aslan, que decorreu na sala Ulytau, a mesma da sessão inaugural.

O Fórum Internacional de Astana contou entre as personalidades internacionais presentes com estadistas como o emir do Qatar, o presidente do Quirguizistão, o primeiro-ministro do Uzbequistão e a co-presidente da Bósnia-Herzegovina (todos na sessão de abertura com o presidente Tokayev e moderada por Richard Quest, da CNN), mas igualmente outras personalidades, como o economista Nouriel Roubini, Zhang Ming, secretário-geral da Organização da Conferência de Xangai, Masatsugu Asakawa, presidente do Banco de Desenvolvimento Asiático, Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, ou Kristalina Georgieva, diretora do FMI. E, claro, Durão Barroso, atualmente presidente não-executivo da Goldman Sachs International. Da geopolítica à Inteligência Artificial, da energia às redes de comércio mundial, muito foi debatido na capital do Cazaquistão, país cerca de 30 vezes maior do que Portugal mas com apenas 20 milhões de habitantes, que pela sua centralidade na Eurásia e pelos abundantes recursos energéticos e minerais tem assumido crescente protagonismo diplomático.

Participou aqui em Astana neste fórum dedicado à geopolítica. O facto de o Cazaquistão organizar esta conferência neste momento de crise internacional é um sinal claro de que este país, encravado e situado entre dois vizinhos poderosos como a Rússia e a China, quer ter uma voz própria e reafirmar a sua independência?
É, mas isto não é novo. Foi, aliás, na Comissão Europeia a que eu presidi - e é por isso que eles me convidam tantas vezes a vir aqui a Astana - que lançámos o Acordo Reforçado de Parceria e Cooperação entre a União Europeia e o Cazaquistão, com o presidente da altura, Nursultan Narzabayev, e que já entrou em vigor em 2020. A visão do Cazaquistão - que é, como sabemos, uma antiga república soviética - é a de não estar tão dependente nem da Rússia nem da China e estar cada vez mais perto da Europa.

Da Europa, mas também dos Estados Unidos? Ou neste caso é a Europa que tem vantagem sobre a América?
Sim. Mais a Europa. Uma grande parte do comércio do Cazaquistão, 40%, é com a UE.

Que também é o primeiro investidor no Cazaquistão, não é verdade?
É o primeiro investidor, mas de longe, só que, normalmente, a nível internacional isto não é dito. Toda a gente diz que é a Rússia, ou a China, ou os Estados Unidos, porque os dados aparecem por país, mas, de facto, a UE tem aqui uma presença muitíssimo importante. É uma presença mais discreta politicamente porque, precisamente, não é um Estado, não é um país como tal. Mas isto representa, de facto, uma vontade muito clara do lado do Cazaquistão de estar mais perto de nós, e não só de nós. Eles não querem, embora não o digam com esta clareza, estar presos e, de certa forma, fechados entre a Rússia e a China.

Esta guerra na Ucrânia também os deixou numa situação complicada, pois reconhecem a soberania da Ucrânia, mas abstêm-se de condenar a Rússia nas votações nas Nações Unidas. É um equilíbrio que quem governa em Astana tem de fazer?
É, e é compreensível. Obviamente que nós preferíamos que eles votassem connosco, com a Europa e também com os Estados Unidos, mas penso que atendendo às circunstâncias no Cazaquistão é compreensível. Até porque eles fazem parte da Comunidade Económica Euroasiática com a Rússia e também estão num sistema de segurança coletiva com a Rússia. Note-se que a primeira preocupação deste país que fez agora 30 anos - é um país com uma independência muito recente, aliás a UE veio comemorar os 30 anos do país com eles - é precisamente a sua independência. É preciso não esquecer que o próprio presidente russo, Vladimir Putin, aqui há uns anos, disse acerca do presidente fundador deste país, Narzabayev, que ele era um grande homem porque tinha criado um país que não existia. E eu nunca me esqueci disto. Ora, se este é o pensamento de Putin, o de que este país não existia, é também, de certa forma, o que presidente russo pensa da Ucrânia quando acha que a Ucrânia é uma criação artificial. Portanto, aqui há, embora isso não seja explicitado muito abertamente, uma preocupação grande - até porque uma parte importante da população é russófona - com qual teria sido a reação da Rússia se eles estivessem mais perto de uma posição ocidental, chamemos-lhe assim. Portanto é perfeitamente compreensível a posição de neutralidade que eles procuram ter porque, para o Cazaquistão, é uma questão existencial.

A ideia da diplomacia multivectorial vinda dos tempos de Narzabayev é uma linha completamente seguida pelo presidente Kassym- Jomart Tokayev, até reforçada, certo?
Tokayev, como sabemos, era ministro dos Negócios Estrangeiros de Narzabayev, mas houve aqui, há pouco tempo, claramente uma rutura no regime. Há agora uma vontade de maior reforma, mas eu acho que esta ideia que existe no Cazaquistão de serem uma ponte, de estarem, de alguma maneira, no meio, é porque eles são por natureza, por excelência, uma ponte entre a Ásia e a Europa. Estão no centro da Eurásia. Isto levou-os a uma cultura político-diplomática em que querem ser facilitadores, promotores de consensos, o que é muito positivo, acho eu. Na Europa há valores que nos fazem colaborar com eles nesse sentido. Eu estou aqui com muito gosto, como já cá estive várias vezes depois de ter saído da Comissão Europeia. Eles continuaram a convidar-me precisamente porque reconhecem o papel que a UE e a Comissão Europeia tiveram para apoiar essa sua vontade.

Portugal, especificamente, tem cá uma embaixada, tem agora finalmente embaixador, no caso uma embaixadora, mas ainda tem muito poucas trocas comerciais com o Cazaquistão. Poderia fazer mais?
Sim, mas é uma questão da nossa dimensão. É muito bom que Portugal tenha aqui uma embaixada - conheço muito bem, há muitos anos, a embaixadora Maria de Fátima Mendes -, mas é verdade que não temos uma presença económica muito significativa.

A questão de o Cazaquistão ter renunciado ao arsenal nuclear herdado da União Soviética quando foi fundado o país transformou-se numa causa diplomática de luta contra o nuclear. É também uma forma de o país ter uma boa imagem no exterior, até porque na era soviética nele se situava o polígono de testes de Semipalatinsk?
Exatamente, mas repare, foi também o que se passou com a Ucrânia e hoje em dia talvez o lamente... É a ironia da situação. Era lá que estava grande parte do arsenal soviético, a Ucrânia independente abdicou dele com garantias expressas dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Rússia de que seria respeitada a sua soberania, mas a verdade é que a Rússia foi o primeiro país a não a respeitar. Não estou com isto a defender que devia ter sido outro o caminho, mas estou a dizer que é por isso natural que o Cazaquistão procure valorizar diplomaticamente a sua posição chamando a atenção para esse gesto que teve. Este militantismo, a posição militante contra o nuclear, é um dos traços da diplomacia do Cazaquistão. Infelizmente, como sabemos, o nuclear voltou ultimamente às prioridades quando a verdade é que desde os trágicos acontecimentos do final da Segunda Guerra Mundial - Hiroshima e Nagasaki - não era verdadeiramente uma questão de topo.

Em relação à guerra na Ucrânia vê alguma possibilidade de haver negociações entre a Rússia e a Ucrânia ou os dois países têm de se cansar da luta para finalmente darem algum passo?
Eu infelizmente, e digo-o com pesar, continuo muito cético quanto às possibilidades de um acordo a curto prazo. Disse-o, aliás, logo a seguir ao início da guerra em fevereiro de 2022. É um caso de jogo de soma zero em que aquilo que um ganha o outro perde, pelo menos é assim que eles veem de ambos os lados e, por isso, vejo muito difícil uma hipótese de acordo no curto prazo. Devemos estar preparados para uma guerra de longa duração.

A ONU ainda pode ter algum papel nessa solução ou está imobilizada?
Eu não gosto muito de criticar a ONU porque é mais fácil criticar as organizações internacionais do que os governos. As organizações internacionais têm as costas largas.

Mas apesar dos bloqueios no Conselho de Segurança na verdade não há nada melhor do que a ONU até agora...
A verdade é que a ONU é a organização internacional com legitimidade global, se nós a enfraquecermos é pior ainda para a ordem global. O que se passa é que há um país, a Rússia, que é membro permanente do Conselho de Segurança, que tem direito de veto e que bloqueia um acordo. Na Assembleia Geral, houve 141 países, o que é um consenso muito forte, a criticarem a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Portanto, não acredita que será através da ONU que se conseguirá chegar a um acordo para a paz?
Não será pelo Conselho de Segurança, mas, no final, qualquer solução que venha a ser encontrada deverá procurar ter o quadro de legitimidade, se quisermos, a bênção diplomática, da ONU, para ter alguma credibilidade e alguma sustentabilidade. Agora, a ONU é aquilo que forem as nações que fazem parte dela e, neste caso, estão infelizmente desunidas.

Aquela ideia de que Vladimir Putin está à espera de que Donald Trump ganhe as eleições presidenciais de novembro de 2024 e a América mude de atitude em relação à guerra na Ucrânia faz sentido para si?
É verdade que há muita inquietação quanto à possível vitória de Trump e ao impacto dessa vitória na situação na Ucrânia, mas também é verdade que até agora tem havido um muito sólido consenso bipartidário nos Estados Unidos em relação à questão da Ucrânia. Eu até costumo dizer que é, talvez, a única questão em que os republicanos e democratas têm concordado, a posição firme em relação à Rússia. E também em relação à China.

O DN viajou a convite do Astana International Forum

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