"Fizeram um deserto e chamaram-lhe paz.” O analista militar da Sky News, Michael Clarke, lembrou esta terça-feira (14 de outubro) a citação do historiador romano Tácito para resumir a situação na Faixa de Gaza. O discurso do presidente norte-americano, Donald Trump, pode ser de exultação do final da guerra, mas no terreno a situação é muito mais complexa - e não é certo que Trump mantenha o mesmo interesse daqui para a frente. Desmilitarização, força de estabilização internacional de paz, governação e reconstrução são problemas que continuam por definir da segunda fase do plano de 20 pontos que, segundo indicou o presidente dos EUA em Sharm el-Sheikh, no Egito, já está a ser negociado. Mas os pormenores são mínimos (o plano aprovado era vago de propósito, para evitar a negativa de qualquer um dos lados) e, além disso, a primeira fase já está a apresentar dificuldades. Enquanto o Hamas não entregar os corpos dos últimos reféns, a primeira fase do acordo de paz não fica concluída. Na Praça dos Reféns, em Telavive, o relógio não parou nos 738 dias com a libertação, na segunda-feira (13 de outubro), dos últimos 20 reféns vivos. E as famílias estão a pressionar o Governo israelita (e a Administração dos EUA) para que suspenda o acordo até todos estarem de volta. Em resposta, o Governo de Benjamin Netanyahu adotou uma posição mais forte em relação ao Hamas. Israel anunciou que não irá reabrir esta quarta-feira (15 de outubro) a fronteira de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, como estava previsto, e vai voltar a restringir a entrada de ajuda humanitária - em vez dos 600 camiões previstos, só devem entrar metade, ou seja, 300. Uma forma de pressionar o grupo terrorista palestiniano, que já admitiu que não sabe onde alguns reféns estão. O Hamas enviou apenas o corpos de quatro reféns na segunda-feira (13 de outubro), cuja identidade já foi confirmada por Israel, tendo previsto entregar outros quatro esta noite (14 de outubro). Caso isso se confirme, restam ainda 20 na Faixa de Gaza. Um porta-voz da Cruz Vermelha disse esta terça-feira que este é “um desafio enorme”, avisando que pode demorar dias ou semanas. “Acredito que há claramente um risco de que isto demore muito mais tempo. O que estamos a dizer às várias partes é que esta deve ser a sua principal prioridade”, disse Christian Cardon, citado pela Reuters. O risco é que o atraso possa prejudicar o cessar-fogo. Esta terça-feira (14 de outubro), as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) dispararam contra palestinianos pela primeira vez desde o cessar-fogo, declarado na última sexta-feira (10 de outubro). As IDF indicaram que os suspeitos representavam um perigo, depois de cruzarem a chamada “linha amarela” - para onde as forças israelitas recuaram. Na prática, os militares israelitas saíram apenas das zonas urbanas e abandonaram só duas das muitas bases que criaram no território nos últimos dois anos, mantendo ainda o controlo de 53% do enclave. As autoridades de saúde de Gaza (controladas pelo Hamas) alegam que seis pessoas foram mortas: cinco por um drone quando foram avaliar a situação das casas num subúrbio a leste da cidade de Gaza; e outra num bombardeamento perto de Khan Yunis. O Hamas acusa Israel de violar o cessar-fogo. As IDF, por seu lado, alegam que os palestinianos cruzaram a “linha amarela”, violando eles próprios o acordado. “Tentativas foram feitas para distanciar os suspeitos. Os suspeitos não cumpriram e continuaram a aproximar-se das tropas, que abriram fogo para remover a ameaça”, indicaram em comunicado. .Israel abre fogo contra "suspeitos" em Gaza. Há seis mortos.DesmilitarizaçãoA retirada total das forças israelitas ainda não está decidida, mas dificilmente acontecerá antes da desmilitarização do enclave - com o desarmamento do Hamas. O que não é claro que acontecerá, ainda para mais com o grupo terrorista palestiniano a voltar a assumir uma posição de força na Faixa de Gaza (diante de grupos rivais, alguns dos quais tiveram o apoio de Israel nos últimos meses ou anos). Na segunda-feira (13 de outubro) 30 membros do clã Doghmosh (um dos mais fortes da cidade de Gaza) foram mortos (sete deles executados) pelo Hamas, que também perdeu elementos nos confrontos. Em Rafah, no sul, o grande adversário do Hamas tem sido Yasser Abu Shabab, que contou com o apoio israelita nos últimos tempos e é acusado pelo Hamas de ser “colaboracionista” (ele nega). O seu grupo terá à volta de 400 homens armados, muitos recrutados graças a salários atrativos ainda durante a guerra (e acesso privilegiado à ajuda humanitária). Na zona de Khan Yunis, existe ainda o clã Al-Majayda, que também se viu envolvido em confrontos com o Hamas no início do mês. Foi acusado de ligações a Abu Shabab (eles negam). O risco é que a situação acabe em guerra civil, não terminando o pesadelo dos palestinianos. Por enquanto, Trump parece ter sugerido que o Hamas tinha sido autorizado a policiar a Faixa de Gaza. Na resposta a um jornalista, a bordo do Air Force One quando viajou para o Médio Oriente, o presidente norte-americano disse que “eles querem parar os problemas, e foram claros sobre isso, e demos-lhes a aprovação por um período de tempo”. O Ministério do Interior de Gaza, controlado pelo Hamas, emitiu um comunicado no domingo (12 de outubro) a oferecer amnistia a quem se tenha juntado a “gangues criminosos” que roubavam ajuda humanitária, desde que não tenham estado envolvidos em derramamentos de sangue. Mesmo um eventual desarmamento do Hamas pode não ser acatado por todos, levando à possível criação de grupos de dissidentes que queiram continuar a luta.Força de estabilização de pazAntes da eventual retirada total de Israel do enclave, o plano de Trump prevê, no ponto 15, que os EUA vão colaborar com parceiros árabes e internacionais para destacar uma “força de estabilização internacional”. Esta força iria trabalhar com a Jordânia e o Egito para garantir a segurança nas fronteiras e treinar e apoiar uma nova força policial. O papel desta força seria também monitorizar o cessar-fogo, supervisionar o desarmamento do Hamas - não sendo claro como, já que também não é claro que poder terá - e apoiar a transferência das responsabilidades de segurança para a Autoridade Palestiniana. Mais uma vez, o plano é vago, cabendo agora aos diplomatas acertar pormenores. Nesse sentido, na semana passada, Paris acolheu uma reunião entre aliados europeus e árabes para tentar concretizar a proposta, com o presidente francês, Emmanuel Macron, a dizer que os seus militares vão fazer parte desta força.França, assim como a Alemanha (que não se comprometeu com meios), defendem que esta deve partir de um mandato das Nações Unidas. Franceses e britânicos, que são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, já estão a trabalhar nos bastidores para que a organização tenha um papel a desempenhar. Mas Trump não faz referência à ONU no seu plano, não sendo claro que aceite a sua participação - ou Israel, que não esconde o desagrado com a organização. Os EUA têm o poder de veto, pelo que nada deverá avançar sem a luz verde do presidente. Os EUA já têm 200 militares na região preparados para supervisionar esta força, sem estar no terreno. Depois há a questão de que países vão participar, com os árabes a mostrar muita hesitação (não querem ser vistos como estando a fazer o trabalho de Israel). Um dos países que pode participar é a Indonésia - o presidente Prabowo Subianto anunciou, durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro, que estava disposto a contribuir com 20 mil capacetes-azuis para Gaza. Uma mensagem que terá voltado a repetir no Egito, na segunda-feira (13 de outubro)..Hamas executa sete alegados colaboradores de Israel e faz detenções em Gaza.GovernaçãoO plano de Trump inclui um Governo de tecnocratas palestinianos (onde o Hamas não terá alegadamente qualquer papel), supervisionado pela chamado Conselho da Paz - que seria liderado pelo próprio presidente norte-americano. Os críticos falam num regresso ao colonialismo, especialmente tendo em conta que o único outro nome de que se fala é o do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que foi enviado-especial do Quarteto para o Médio Oriente quando deixou o cargo e não deixar saudades na região. Em Sharm el-Sheikh, Trump disse que muitos líderes mundiais já mostraram interesse em fazer parte deste organismo. “Toda a gente quer fazer parte do Conselho da Paz. Perguntaram: ‘Gostarias de ser o presidente?’. Eu disse: ‘Também estou bastante ocupado. Mas vale a pena fazer o que pudermos para ter paz no Médio Oriente’”, brincou Trump, que disse esperar que o homólogo egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, possa fazer parte. O presidente do Egito deixou contudo claro que, para os países árabes, este esforço de paz só faz sentido com o objetivo de criar um Estado Palestiniano. Os europeus também querem um lugar, não querendo abdicar de influência, mas Israel pode torcer o nariz a alguns países. França, como o Reino Unido, Espanha ou Portugal, já reconheceram o Estado Palestiniano.Mas e os palestinianos? Quem poderá fazer parte? O chefe da diplomacia egípcio, Badr Abdelatty, disse numa entrevista à Associated Press antes da cimeira de Sharm el-Sheikh que os nomes de 15 tecnocratas já foram escolhidos e aprovados por Israel. “Precisamos de os enviar para cuidar da vida diária das pessoas em Gaza, e o Comité da Paz deve apoiar e supervisionar o fluxo de finanças e dinheiro que virá para a reconstrução de Gaza”, indicou, sem dar mais pormenores. A Autoridade Palestiniana, que está à frente da Cisjordânia ocupada, quer ter influência, mas o próprio líder, Mahmud Abbas, é questionado pelos palestinianos, não havendo eleições há vários anos. ReconstruçãoA guerra na Faixa de Gaza deixou cerca de 55 milhões de toneladas de escombros, onde podem existir bombas por explodir e, quase de certeza, corpos. “Só os destroços poderiam encher o Central Park [em Nova Iorque] até 12 metros de altura. É o equivalente a 13 Grandes Pirâmides de Gizé”, disse Jaco Cilliers, representante especial do programa de desenvolvimento da ONU para a assistência aos palestinianos. Estima-se que 83% dos edifícios esteja destruído e danificado e os esforços de limpeza e reconstrução vão demorar anos, calculando-se que são precisos 70 mil milhões de dólares para isso. A ONU está contudo confiante, porque os países árabes e os europeus, além de EUA e Canadá, parecem dispostos a contribuir. “Vamos receber muito dinheiro e vai haver muita reconstrução em Gaza”, disse Trump no Egito. “Tenho o prazer de anunciar que vários países de grande riqueza, poder e dignidade se apresentaram hoje e na semana passada para dizer que querem ajudar na reconstrução”, acrescentou, lembrando contudo que é preciso a desmilitarização do enclave..Trump fala da paz em Gaza como o “amanhecer de um novo Médio Oriente”