Denúncias de crimes de guerra à porta do "inverno da sobreviência" na Ucrânia
Ucranianos dizem ter encontrado locais de "tortura" em Kherson e russos acusam Kiev de abater militares que se tinham entregado. Destruição de infraestuturas leva a OMS a traçar cenário negro para os próximos meses.
As autoridades ucranianas dizem ter encontrado quatro locais em Kherson onde os russos "detiveram ilegalmente as pessoas e torturaram-nas brutalmente". Mas as denúncias de alegados crimes de guerra fazem-se também do lado de Moscovo, com o Kremlin a insistir que vai punir os responsáveis pela morte "brutal" de uma dezena de soldados russos que se estariam a render aos ucranianos. Na semana passada, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse que ambos os lados cometeram abusos.
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De acordo com um comunicado do Gabinete do Procurador-Geral ucraniano, os russos tinham em Kherson uma rede de locais de detenção, onde foram encontrados bastões de madeira e de plástico e dispositivos usados para "torturar civis com eletricidade". Na sua fuga da cidade, a única capital regional que tinham conquistado logo no início da guerra, há quase nove meses, os russos deixaram ainda documentos que revelam a forma como administravam os locais.
Moscovo não reagiu a esta acusação, mas insistiu na denúncia de crimes de guerra por parte dos ucranianos e em levar à justiça os responsáveis. Em causa estão vídeos que começaram a circular na semana passada - e cuja autenticidade tanto o The New York Times como a BBC confirmaram. Num deles veem-se militares russos deitados no chão, aparentemente após se terem rendido, até que um outro aparece e começa a disparar. Os ucranianos reagem e o vídeo é interrompido. Mas outro vídeo, filmado num drone, mostra que todos os russos acabam mortos, incluindo os que estavam deitados.
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A Ucrânia nega que tenha havido um crime de guerra, alegando que os soldados foram mortos após uma falsa rendição. As Nações Unidas, que já denunciaram a existência de casos de tortura de presos políticos de ambos os lados, dizem que o caso deve ser investigado.
Inverno de sobrevivência
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, apelou esta segunda-feira à NATO, durante a 68.ª sessão anual da Assembleia Parlamentar que terminou em Madrid, para que garanta a proteção das centrais nucleares ucranianas face à "sabotagem russa", indicando que Moscovo esta a destruir as infraestruturas energéticas do país "para acabar com o fornecimento de eletricidade e de água e com o aquecimento no inverno". Nos últimos dias, a central de Zaporíjia voltou a ser atingida - com Moscovo e Kiev a trocarem acusações sobre qual dos lados é responsável.
Um conselheiro do Ministério da Defesa ucraniano, Yurik Sak, alegou numa entrevista à BBC que os ataques são uma "campanha genocida" da Rússia para "congelar os ucranianos até à morte". Tudo porque não estão a conseguir na linha da frente as vitórias que queriam.
O diretor-geral para a Europa da Organização Mundial de Saúde, Hans Kluge, de visita a Kiev, avisou que este inverno será de "sobrevivência" e "uma ameaça à vida de milhões de pessoas" na Ucrânia. Kluge diz que três milhões de ucranianos podem deixar as suas casas à procura de aquecimento e segurança, sendo que Kiev já começou a retirar os civis das áreas recentemente libertadas de Kherson.
Em relação a Zaporíjia, o Kremlin deu conta da "preocupação" face ao que disse serem os ataques ucranianos à central - que os russos controlam desde março. "Apelamos a todos os países do mundo que usem a sua influência para que as forças armadas ucranianas parem de fazer isto", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, citado pela Reuters, insistindo que é Kiev que está por detrás das ações. .
Peritos da Agência Internacional de Energia Atómica, que estavam em Zaporíjia, garantem que não há risco de acidente nuclear e que os seis reatores estão estáveis - assim como o combustível e o lixo nuclear. Contudo, o diretor-geral da agência, Rafael Grossi, diz que os ataques são "motivo maior de preocupação", dizendo que vai intensificar as consultas para a criação de uma zona de proteção em redor da central nuclear.
"Estado terrorista"
Zelensky apelou ainda aos parlamentos de todos os países da NATO para declararem a Rússia um "estado terrorista". Numa intervenção por videoconferência, o presidente reiterou que a Rússia está a levar a cabo uma "política genocida" na Ucrânia ao atingir as infraestruturas do país. Letónia, Lituânia, Estónia, Polónia e República Checa já declararam a Rússia um estado terrorista.
Amanhã, os eurodeputados vão votar uma resolução (não vinculativa) que também declara a Federação Russa um estado patrocinador do terrorismo, na sequência dos crimes de guerra e das violações do Direito Internacional e Humanitário. O objetivo é preparar um cenário em que o presidente russo, Vladimir Putin, e outros sejam julgados num tribunal internacional.
A União Europeia não tem contudo um quadro legal instalado para esta designação. Ao contrário dos EUA. O facto de um país estar nesta lista norte-americana, torna-o na prática um estado pária, ao impor restrições assistência, mas também controlos sob algumas exportações que podem ser de uso civil ou militar e outras restrições.
Tanto a Câmara dos Representantes como o Senado já votaram resoluções a defender a inclusão da Rússia na lista de Estados patrocinadores do terrorismo - onde estão Coreia do Norte, Cuba, Irão e Síria. Mas o presidente norte-americano, Joe Biden, é contra esta medida, alegando que isso poderia ter consequências indesejáveis para a própria Ucrânia.
Dia da Dignidade e Liberdade
"Podes ter dignidade sem liberdade. Podes ter liberdade, mas podes não ser digno dela. Estes são valores que são melhor juntos", disse o líder ucraniano para assinar o Dia da Dignidade e Liberdade, deixando claro que "a Ucrânia tem ambos e que não vai deixar que o "inimigo" os tire. Volodymyr Zelensky e a mulher Olena acenderam uma vela no aniversário das revoluções Laranja (2004) e da Dignidade (2013). Esta última foi o início da revolta contra o presidente pró-russo Viktor Ianukovitch, após ele rejeitar um acordo com a União Europeia. Os protestos na praça Maidan deixaram centenas de mortos e culminaram na sua fuga e na anexação da Crimeia em 2014.
susana.f.salvador@dn.pt
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