Na primeira reunião do gabinete de Donald Trump, um jornalista perguntou se havia tensões entre os membros da Administração e Elon Musk, o milionário dono do X e da Tesla que se tornou num dos principais conselheiro do presidente dos EUA. “Há alguém infeliz com Elon? Se há eu tiro-o daqui para fora”, perguntou Trump. Houve alguns risos e o ambiente ficou estranho, até que o secretário do Comércio, Howard Lutnick, começou a aplaudir Musk, com os restantes responsáveis rapidamente a acompanhá-lo nesse gesto. “Acho que toda a gente está não apenas feliz, estão entusiasmados”, disse o presidente. Mas, nos bastidores, a situação é diferente. Musk é o rosto por detrás do Departamento de Eficiência Governamental (mais conhecido pela sigla em inglês DOGE), que o presidente criou através de uma ordem executiva no primeiro dia de regresso à Casa Branca com o objetivo de fazer cortes drásticos no orçamento federal. E na burocracia que considera que tem prejudicado as suas empresas. “Esta é a motosserra para a burocracia”, lançou o milionário há mais de uma semana, surgindo no palco de um evento conservador a brandir a ferramenta elétrica que lhe foi oferecida pelo presidente argentino, Javier Milei. Uma forma de cortar nos gastos é através do desmantelamento de agências - foi o que já aconteceu, por exemplo, com a do desenvolvimento internacional (USAID), que está praticamente em coma - à revelia do Congresso ou através do despedimento de funcionários públicos. O problema é que esses despedimentos estão a decorrer aparentemente sem critério - já foi necessário reverter ordens de demissão, como no caso dos funcionários responsáveis pelas armas nucleares - e põem até em causa a segurança nacional. O diretor do FBI, Kash Patel, foi um dos primeiros a dizer publicamente que cabe ao próprio FBI analisar os seus funcionários, pelo que estes deviam ignorar a ordem de Musk, que ameaçou demitir todos os que não respondessem ao email que pedia que dissessem o que tinham feito durante a semana. Também o Departamento do Estado pediu aos funcionários para não o fazerem, tal como o Pentágono. Mas houve quem, com receio das consequências, respondesse. Na reunião com Trump, onde tecnicamente Musk não tem lugar por não fazer parte da Administração (usou uma T-shirt a dizer “apoio técnico” por baixo do casaco e ficou de pé atrás dos membros do gabinete), o dono do X disse ter recebido autorização de Trump para ameaçar os funcionários com despedimentos. E avisou ainda que um novo email seria enviado em breve - o que aconteceu neste fim de semana, com a indicação que será semanal. Entretanto, enviou um memorando às agências federais para que apresentem planos até 13 de março para uma “redução significativa” dos funcionários. Cerca de um milhão de funcionários (num total de cerca de 2,4 milhões) não responderam ao primeiro email, com Musk a dizer (sem provas) que acredita que os EUA estão a pagar salários a pessoas que já estão mortas ou até a algumas que não existem na realidade. As ações de Musk e do DOGE são aplaudidas por muitos, que começam a ver cumprida a ideia de Trump de “limpar o pântano” de Washington. O problema é que as consequências sentem-se para lá do “pântano” e do Distrito Federal (onde se concentram muitos dos funcionários públicos) e já estão a ser uma dor de cabeça para os republicanos. Alguns congressistas tiveram que enfrentar protestos anti-DOGE nas reuniões com os seus eleitores, questionando a Administração sobre a rapidez das mudanças, sem querer antagonizar Musk - e principalmente Trump. “Se Elon Musk quer verdadeiramente saber o que os funcionários federais fizeram na última semana, ele deve tentar conhecer cada departamento e agência, e aprender as funções que está a tentar cortar”, escreveu a senadora Lisa Murkowski, do Alasca. “Os nossos funcionários públicos merecem ser tratados com dignidade e respeito pelos trabalhos pouco conhecidos que desempenham. O email absurdo do fim de semana para justificar a sua existência não foi isso”, acrescentou. Os despedimentos estão também a ser contestados na justiça, com algumas decisões contrárias a Trump. Um juiz federal em São Francisco decidiu, por exemplo, que a demissão de funcionários em período experimental (normalmente os que estão no primeiro ou segundo ano de trabalho) é ilegal e deve ser travada. A ordem para os demitir sem olhar a outro critério tinha sido dada pelo Gabinete de Gestão de Pessoal, seguindo ordens do DOGE. A Administração alega que Trump, enquanto presidente e máxima autoridade do país, tem poder sobre o executivo e sobre a demissão dos funcionários federais - não precisando da luz verde do Congresso, que até agora era necessária em alguns cargos. O problema irá, eventualmente, chegar ao Supremo Tribunal dos EUA, onde entre a maioria conservadora (6-3) há três juízes nomeados pelo próprio Trump durante o seu primeiro mandato. Musk pode ser o rosto do DOGE, mas em tribunal a Administração alegou que não era ele o responsável - sendo anunciado o nome de Amy Gleason como administradora (pelo menos no papel). Um juiz do Maryland, Theodore Chuang, questiona esta liderança, tendo dito na sexta-feira passada que parecia “factualmente impreciso” a Administração insistir que Musk não tem qualquer posição formal. Quem trabalha no DOGE? O departamento de Musk não nasceu do zero, tendo sido criado a partir do Serviço Digital dos EUA, uma agência dentro do gabinete do presidente criada por Barack Obama depois das dificuldades com o portal do Medicare. Na prática nem é um departamento e o seu nome é também uma referência à criptomoeda Dogecoin (que o dono do X promoveu). Inicialmente Musk iria atuar em conjunto com o empresário Vivek Ramaswamy, mas este desistiu logo para se candidatar a governador do Ohio (e alegadamente após entrar em confronto com o milionário).Ironia do destino, mais de duas dezenas de funcionários do DOGE resolveram demitir-se na semana passada - outros 40 já tinham sido demitidos no início do mês -, recusando usar os seus conhecimento técnicos para “desmantelar serviços públicos críticos”. Musk reagiu no X (empresa onde também efetuou cortes radicais depois da compra em 2022) alegando que os funcionários em causa eram “resquícios democratas” que “seriam demitidos se não se demitissem”. Os funcionários - engenheiros, cientistas de dados, designers e gestores de produto que já trabalhavam para o Serviço Digital - alegaram ainda, na carta de despedimento conjunta, que muitos dos que foram recrutados por Musk são ideólogos políticos sem experiência ou competências necessárias para o que estão a fazer.Uma das questões que tem sido levantada prende-se com o acesso a dados governamentais cruciais, desde números de segurança social, declarações de impostos ou todo o sistema de pagamento federal. Em causa estão eventuais problemas de privacidade, com os tribunais a debruçarem-se sobre o tema, tendo o DOGE sido temporariamente impedido pela justiça de aceder a alguns dados.E depois há os cortes que o departamento já terá feito. O DOGE tem um site onde vai enumerando os ganhos que já conseguiu. O problema é que os cinco maiores cortes que tinha anunciado já foram identificados como errados por vários meios de comunicação - sendo mais tarde corrigidos no próprio site. Além disso, o DOGE está a assumir como seus vários cancelamentos de contratos que, na realidade, já tinham sido cancelados antes. As ações de Musk no DOGE estão a gerar protestos contra as empresas do milionário, com manifestações junto das lojas da Tesla - um outro protesto está marcado para o próximo domingo, incluindo em Lisboa. Um boicote a estes carros elétricos parece estar também em curso, com várias pessoas a verem-se livre dos seus Tesla - a cantora Sheryl Crow vendeu o dela e usou os lucros para apoiar a NPR (a rádio pública dos EUA).“Os protestos não vão impedir o presidente Trump e Elon Musk de cumprir a promessa de estabelecer o DOGE e tornar o nosso governo federal mais eficiente e mais responsável perante os contribuintes americanos em todo o país”, disse o porta-voz da Casa Branca, Harrison Fields. .Está desfeito o mistério. Chefe formal do polémico DOGE é uma mulher, mas o poder segue nas mãos de Elon Musk