No início de agosto, o ministro da Segurança Nacional de Israel, o ultranacionalista Itamar Ben-Gvir, subiu ao complexo de Al-Aqsa - que os judeus chamam Monte do Templo e em português também é conhecido como Esplanada das Mesquitas. Não foi a primeira vez que o fez, mas desta vez liderou outros em oração. Um gesto polémico, que viola o chamado status quo deste local sagrado tanto para judeus como para muçulmanos.O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse que nada mudou, mas o especialista Eran Tzidkiyahu explica ao DN que tudo mudou. “Ben-Gvir está a usar Netanyahu para promover uma mudança no Monte do Templo que será muito, muito difícil de reverter”, afirmou, lembrando que o chefe de Governo quis usar o local como símbolo já em 1996 para parar o processo de paz, mas que agora “a situação está fora do seu controlo”. O israelita Tzidkiyahu é politólogo e guia geopolítico de Israel e da Palestina. Fala fluentemente árabe e hebraico e o seu trabalho levava-o a atravessar diariamente as fronteiras entre Israel, a Cisjordânia ocupada e Jerusalém - não agora que, aproveitando a licença sabática da mulher, vive em França. Professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, é investigador no Fórum para o Pensamento Regional e membro do movimento Terra para Todos, que promove uma solução confederal de dois Estados. Há anos que estuda o nacionalismo religioso no conflito israelo-palestiniano, focado no Monte do Templo e na Mesquita de Al-Aqsa. Mas como o local mais sagrado para os judeus é também o terceiro local mais sagrado para os sunitas como os palestinianos - depois de Meca e Medina (ambas na Arábia Saudita)? No caso do ramo xiita do islão, a lista é diferente. Na cidade que é o centro das três grandes religiões monoteístas, que acreditam no mesmo Deus, até para os cristãos tem significado: foi pelo comportamento dos religiosos no Templo que Jesus acabou crucificado, não muito distante dali. O Primeiro Templo foi construído pelo rei Salomão, cerca de 950 a.C., e destruído pelos Babilónios quatro séculos depois. Reconstruído por Herodes, o Segundo Templo acabaria por ter a mesma sina, às mãos dos romanos em 70 d.C. Os cristãos viram neste evento o cumprir de uma profecia de Jesus, sendo que três séculos mais tarde a cidade de Jerusalém voltou a ser importante para os romanos (agora cristãos). O Muro das Lamentações é o único vestígio do antigo templo. O antigo muro de contenção fica aos pés do complexo de Al-Aqsa.“Durante todo este tempo, os judeus rezam para Jerusalém, a direção da oração é o Monte do Templo, que não têm autorização para visitar”, explicou Tzidkiyahu, lembrando que “toda a ideia de sionismo é a do regresso a Zion, que é o Monte do Templo na Bíblia, é o regresso a Jerusalém e a reconstrução do templo”. O sionismo, o movimento nacionalista judeu, era secular, mas no fundo foi construído sobre o conceito teológico do regresso a Zion. . O Islão surge apenas no século VII d.C. e a primeira direção de oração também era Jerusalém, não Meca. “Maomé acordou uma manhã e disse aos seguidores sobre a visão que tinha tido, uma espécie de viagem sobrenatural, na qual visitou Jerusalém montado numa criatura magnífica”. Esta criatura, uma espécie de cavalo alado branco com cabeça de mulher, pousou na rocha que hoje está sob a Cúpula da Rocha (a cúpula dourada no complexo de Al-Aqsa), antes de ascender aos sete céus e receber de Deus o comando para rezar. “Antes disso, não havia oração no islão”, conta o especialista. “Depois de receber o comando de Deus, Maomé lidera todos os outros profetas, incluindo Moisés, Abraão e Jesus Cristo, na oração. O que é muito simbólico, porque em Jerusalém ele recebe a primazia sobre todas as religiões. Agora é o tempo do Alcorão. Agora é o tempo de Maomé”, acrescenta Tzidkiyahu, explicando que só mais tarde, por questões religiosas, mas também políticas, passam a rezar para Meca.A primeira grande estrutura monumental construída pelos muçulmanos - a Cúpula da Rocha - acaba assim por nascer em cima dos destroços do Segundo Templo judeu. A mesquita de Al-Aqsa, que durante as Cruzadas era um palácio dos Templários, volta também a ser islamizada, com Jerusalém a tornar-se num símbolo contra os invasores ocidentais (os cristãos). “Desde as Cruzadas, temos dois conceitos muito enraizados no Islão sunita: a jihad, a guerra santa contra os infiéis, e a necessidade de proteger Jerusalém de uma nova cruzada”, explica o especialista, lembrando que nasce daí grande parte do movimento nacionalista palestiniano. Os primeiros confrontos entre muçulmanos e judeus, ainda antes do fim do Mandato Britânico da Palestina, começam à volta do complexo de Al-Aqsa. E não será a última vez que este é o centro do conflito entre os dois lados: a Segunda Intifada é conhecida como a Intifada Al-Aqsa, tendo começado em 2000 após uma visita provocatória de Ariel Sharon durante a campanha para as legislativa israelitas. O ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023 é conhecido pelo grupo terrorista palestiniano como a Operação Dilúvio de Al-Aqsa.“Estou apenas a mostrar o quão central é, seja fisicamente, onde começa a violência, ou mesmo se começa noutro lado... é sobre libertar Al-Aqsa. Tornou-se um grande símbolo”, refere Tzidkiyahu, indicando que documentos encontrados pelos militares israelitas na Faixa de Gaza mostram que o motivo do Hamas para o 7 de Outubro seria proteger a mesquita dos ativistas do Templo, como Ben-Gvir.A Esplanada das Mesquitas, no canto sudeste da Cidade Velha de Jerusalém, ficou sob controlo muçulmano durante o Mandato Britânico da Palestina - após a queda do império otomano no final da Primeira Guerra Mundial. Em 1948, passou para as mãos da Jordânia mas, na guerra de 1967, Israel ocupou a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Contudo, decidiu aplicar o chamado status quo, para garantir que o local continuava a ser de culto muçulmano. A gestão do complexo cabe a uma organização jordana, que no terreno é operada por palestinianos, mas a segurança é garantida pelos israelitas. Os judeus podem ter acesso, mas só podem rezar no Muro das Lamentações. “Na altura o governo era secular e reconstruir o Templo é um ato religioso, teológico. Seria uma revolução na religião judaica, na política de Israel”, disse Tzidkiyahu, lembrando que na Idade Média os rabinos proibiram até a visita ao Monte do Templo e essa proibição mantém-se em vigor. Nada que trave os ultranacionalistas como Ben-Gvir, que defendem a construção de uma sinagoga no complexo de Al-Aqsa. “Se pudesse fazer tudo o que quisesse, colocaria uma bandeira israelita no local”, disse o ministro numa entrevista à Rádio do Exército, no ano passado. Ben-Gvir pode ter rompido mais um tabu ao liderar uma oração na Esplanada das Mesquitas, mas a erosão no status quo já começou há quase três décadas. “Ele é só o último e a mais radical expressão dessa erosão”, indicou ao DN.No início dos anos 1990, os ativistas judeus eram travados pela polícia no Monte no Templo, que não eram autorizados a rezar. “O comportamento da polícia começou a mudar em 2015. Até ali era o inimigo, mas depois, começam a cooperar com as organizações do Templo”, explica Tzidkiyahu. Para os nacionalistas, quando Israel abdica de território é porque há algo errado no processo de “redenção divina”. A retirada da Faixa de Gaza, em 2005, tornou essas organizações ainda mais radicais. Mas este processo de radicalização entre os nacionalistas judeus espelha um processo semelhante do lado dos palestinianos. A Revolta do Túnel do Muro das Lamentações, em 1996, foi o primeiro grande choque entre os soldados israelitas e a nova polícia palestiniana, prejudicando os esforços de paz delineados pelos Acordos de Oslo três anos antes. Os palestinianos revoltaram-se depois da abertura de um velho túnel sob o complexo de Al-Aqsa, tendo havido quase cem mortos. Na altura, Netanyahu já era primeiro-ministro e nunca escondeu a sua rejeição à solução de dois Estados, prevista nos acordos. Os próprios árabes-israelitas lançaram em 1996 o movimento “Al-Aqsa está em perigo”, para proteger a mesquita.Em 2015, a violência voltou a irromper pela Cisjordânia ocupada devido à incursão repetida de colonos judeus no complexo, que queriam desgastar o status quo. Em 2017, três árabes-israelitas mataram dois polícias a tiro, levando Israel a instalar detetores de metais nos acessos ao local, levando a um boicote por parte dos muçulmanos, que passaram a rezar fora do espaço, o que levou a mais confrontos com a polícia. Um ciclo de violência recorrente. Os movimentos nacionalistas, que antes eram residuais, começaram também a ganhar maior destaque político. E Netanyahu a mudar a sua postura em relação a eles. Ben-Gvir, um colono, sempre foi um ativista do Templo, tal como a sua mulher. “Em 2017 era considerado uma espécie de bully. Ninguém o levava a sério na política. Mas, em 2021, Netanyahu percebeu que precisava dele para sobreviver politicamente”, explicou o especialista. “Ben-Gvir, que defende que se deve destruir Al-Aqsa, foi colocado na posição mais forte para influenciar o status quo, porque o organismo mais importante em Israel para gerir o Monte do Templo é a polícia. E Ben-Gvir é o ministro da polícia”, acrescentou, sendo que a mulher é uma das responsáveis pela comunicação entre as organizações do Templo e a polícia. “Têm muito poder.”E o futuro? “Por um lado os palestinianos estão paralisados. Têm medo de fazer algo contra Israel, porque é claro que Israel os vai apagar, tal como está a fazer em Gaza. Mas, por outro lado, em algum momento, vão pensar que não têm nada a perder. E isso pode provocar nova onda de violência”, disse Tzidkiyahu. Nem nos Acordos de Oslo foi apresentada uma solução, adiada para o final do processo que nunca chegou. “A questão do Monte do Templo é uma das mais difíceis de resolver em negociações.” .“Netanyahu lidera um regime autoritário que está a tentar desmantelar a estrutura da democracia israelita”