Com a passagem de testemunho do camaronês Philémon Yang para a alemã Annalena Baerbock na presidência, é dado o pontapé de saída da 80.ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. Dizem as regras da instituição que a Assembleia Geral tem início “na terça-feira da segunda semana de setembro, contando a partir da primeira semana que contiver pelo menos um dia útil”. Já o vaivém dos chefes de Estado e de governo para o debate geral tem começo agendado “na terça-feira da quarta semana de setembro”, e é “realizado sem interrupção durante um período de nove dias úteis”. A instituição nascida das cinzas da II Guerra Mundial, na encruzilhada de uma reforma desejada pelo secretário-geral e das ameaças do seu principal contribuinte, os Estados Unidos, vê os objetivos lançados há dez anos, a Agenda 2030, como uma utopia e é incapaz de agir perante os conflitos armados, 135 em 2024, segundo dados compilados pela Universidade de Uppsala. Pode haver pior sinal para as Nações Unidas de uma tendência de multiplicação de guerras e de outros conflitos armados? Segundo o Peace Research Institute Oslo, “o ano de 2024 marcou um pico histórico em conflitos entre Estados, com 61 conflitos ativos em 36 países - o maior número registado desde 1946. Foi também o quarto ano mais violento desde o fim da Guerra Fria, impulsionado em grande parte pela guerra civil na região de Tigré, na Etiópia, pela invasão russa em curso na Ucrânia e pelos bombardeamentos em Gaza”. Entre 2021 e 2024, 740 mil pessoas foram ceifadas pela guerra. Não bastavam os números alarmantes, a incapacidade da ONU para agir é tão ou mais preocupante nas guerras na Ucrânia e em Gaza. Na primeira com o agressor a aproveitar-se do cargo herdado da União Soviética no Conselho de Segurança da ONU para bloquear qualquer iniciativa, na segunda com os Estados Unidos a desempenharem esse papel por Israel. Neste caso, com a agravante de terem sido mortos 181 trabalhadores humanitários na Faixa de Gaza por bombardeamentos de Israel; de Israel estar contra a existência da agência de refugiados palestinianos (UNRWA); e de restringir ou impedir a distribuição de assistência humanitária às agências da ONU. Volker Turk, alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, lamentou na segunda-feira as “tendências perturbadoras” a que assiste, casos da glorificação da violência e o afastamento de alguns estados do sistema multilateral. “As regras da guerra estão a ser destruídas, praticamente sem qualquer responsabilização.”As Nações Unidas são também o palco para o combate à proliferação nuclear. Também neste ponto não há notícias positivas. Segundo o diretor da Agência Internacional de Energia Atómica, observa-se “um aumento no armamento nuclear, em oposição ao desarmamento”, com os “países a desenvolver e a aumentar os seus arsenais nucleares”. Em entrevista à Vatican News, Rafael Grossi acrescenta: “Também é importante ressaltar que os países que não possuem armas nucleares estão a começar a falar cada vez mais abertamente sobre a possibilidade e, talvez, a ‘necessidade’ de possuir armas nucleares.”Agenda utópicaEm 2015, depois de um ato de contrição quanto aos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, que falharam em quase toda a linha, a ONU traçou novo plano: a Agenda 2030. Composta por 17 objetivos e 169 metas, entre o fim da fome, ação climática, igualdade de género ou paz e justiça, a agenda visa o desenvolvimento sustentável global. Mas a realidade é outra. “Nenhum dos 17 objetivos globais está em vias de ser alcançado, e apenas 17% das metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável estão em vias de ser alcançadas até 2030. Conflitos, vulnerabilidades estruturais e espaço fiscal limitado continuam a impedir o progresso, especialmente nas economias emergentes e em desenvolvimento”, conclui o relatório realizado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. Há cinco metas com uma regressão significativa, das quais se destaca o aumento da taxa de obesidade, a perda da liberdade de imprensa e o índice de perceção da corrupção. Em resumo: “Muitos países estão a fazer progressos significativos, mas muito mais pode ser conquistado através de investimentos mais expressivos em educação, tecnologias verdes e soluções digitais. Acima de tudo, necessitamos de paz e cooperação global para alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável”, disse o relator principal, Jeffrey Sachs.Reformas ou cortesÉ neste clima que o secretário-geral da ONU entra na reta final do seu segundo mandato. António Guterres tinha como prioridades a emergência climática e a reforma da instituição que lidera. No que respeita ao meio ambiente, a presidência de Donald Trump revelou-se um oponente ao retirar-se, por duas vezes, do acordo climático de Paris. Em meados do mês passado, as negociações para um pacto para a redução do plástico fracassaram graças aos EUA. Por outro lado, Trump e os seus aliados do America First e do protecionismo económico não veem grande utilidade nas Nações Unidas. São disso exemplo a sua retirada de organismos como a UNESCO ou o Conselho de Direitos Humanos. .3,72Mil milhões de dólares (3,14 mil milhões de euros) é o orçamento das Nações Unidas para o ano corrente, aprovado em janeiro na Assembleia Geral. É um aumento de 130 milhões de dólares em relação ao ano anterior.. Os EUA contribuem com 22% do orçamento da ONU, e Trump, que já cortou com organismo de ajuda internacional como a USAID, poderá anunciar um corte na contribuição do seu país. Guterres, em março, lançou uma reforma, UN80, para que as contas sejam mais transparentes e que se tente cortar redundâncias numa instituição que enfrenta uma crise de liquidez há sete anos “porque nem todos os estados-membros pagam a totalidade das suas contribuições e muitos também não pagam atempadamente”, disse o secretário-geral..69Estados-membros ainda não pagaram o seu quinhão, incluindo os EUA e a China. A conta que calha a cada país é resultado de uma fórmula que considera o rendimento nacional bruto, a população e o peso da dívida. Portugal pagou 11,2 milhões de dólares..Baerbock não colhe unanimidadeAnnalena Baerbock, de 44 anos, é a partir desta terça-feira a 80.ª presidente da Assembleia Geral da ONU. Concorreu sozinha ao cargo, mas devido às suas posições políticas e à forma como chegou à candidatura não faltam detratores, dentro e fora da Alemanha..A ex-ministra dos Negócios Estrangeiros (2021-2025) é a primeira dirigente ambientalista a ocupar um cargo de topo das Nações Unidas; é também a primeira mulher de origem europeia com a responsabilidade de dirigir os trabalhos da Assembleia Geral, numa pequena lista composta por uma indiana (Vijaya Lakshmi Pandit), uma liberiana (Angie Brooks), uma baremita (Haya Rashed al-Khalifa) e uma equatoriana (María Fernanda Espinosa). .Moscovo liderou uma campanha contra a ministra que se opôs à política de Scholz de não querer armas alemãs a atingir solo russo..Coadjuvada por 21 vice-presidentes, o seu papel é sobretudo de caráter protocolar e simbólico. Ao apresentar a sua candidatura, em abril, Baerbock prometeu trabalhar em prol de todos por igual: “Irei estar ao serviço de todos os 193 estados-membros - grandes e pequenos. Como uma mediadora honesta. Como um unificadora. Com uma atitude aberta. E uma porta aberta.” Defendeu a importância do multilateralismo com o mote “Melhor juntos” porque as crises atuais demonstram que a ONU “é mais necessária do que nunca”, mas também reconhece que a organização necessita de reformas. .4Mulheres e 75 homens presidiram à Assembleia Geral da ONU. A quinta mulher, Annalena Baerbock, é o terceiro de nacionalidade alemã no cargo.. Ao contrário do que é tradição, a candidata não foi aprovado por unanimidade, de braço no ar. O embaixador russo solicitou boletins de voto e a alemã recebeu 167 em 193 votos possíveis. Moscovo não perdoa Baerbock por ter sido quem na coligação liderada pelo social-democrata Olaf Scholz tenha mais lutado pelo apoio militar à Ucrânia. O representante russo na ONU, Dmitry Polyanskiy, chamou-a de incompetente e preconceituosa e acusou o governo alemão de “cuspir” nas Nações Unidas ao candidatar “uma pessoa que declarou abertamente que se orgulhava do seu avô, que serviu nas SS”. Em 2024, o Bild revelou que nos arquivos do exército nazi Waldemar Baerbock era descrito como um “incondicional nacional-socialista”. A neta, que várias vezes citou a mensagem pacifista do avô em discursos, disse desconhecer esses documentos. Em Teerão, a Press TV descreveu Baerbock como “uma conhecida entusiasta sionista e belicista”.A personalidade de Baerbock também já atraiu críticas do atual chanceler Friedrich Merz. E a lista de adversários terá aumentado depois de a diplomata de carreira Helga Schmid, ex-secretária-geral da OSCE, que apresentou oficialmente a candidatura ao cargo em fevereiro, ter sido forçada a renunciar em favor da ex-líder dos Verdes.