Com guerra ou sem guerra, os ucranianos não abdicam do seu café
Quando os tanques russos entraram pela primeira vez na Ucrânia há mais de dois anos, Artem Vradii tinha a certeza de que o seu negócio iria sofrer.
“Quem pensaria em café nesta situação?”, pensou Vradii, cofundador de uma torrefação de café em Kiev chamada Mad Heads. “Ninguém se importaria”.
Mas nos dias que se seguiram ao início da invasão começou a receber mensagens de soldados ucranianos. Um deles pedia sacos de café moído porque não suportava as bebidas energéticas fornecidas pelo exército. Outro pediu simplesmente grãos: tinha levado o seu próprio moinho para a frente de batalha.
“Fiquei muito chocado”, disse Vradii numa entrevista recente na sua torrefação, um edifício de tijolo com 12 metros de altura onde se ouve o som do café a moer e se sente o cheiro de grãos acabados de moer. “Apesar da guerra, as pessoas continuavam a pensar no café. Podiam deixar as suas casas, os seus hábitos. Mas não podiam viver sem café”.
Os pedidos dos soldados são apenas uma faceta de uma pedra angular pouco conhecida do estilo de vida ucraniano atual: a sua vibrante cultura do café.
Na última década, as cafetarias proliferaram por toda a Ucrânia em cidades grandes e pequenas. Isto é particularmente verdade em Kiev, a capital, onde os pequenos quiosques de café, equipados com baristas treinados que servem saborosos mochas por menos de dois dólares se tornaram um elemento da paisagem urbana.
Se entrar num dos pátios escondidos de Kiev há uma boa hipótese de encontrar um café com baristas ocupados a aperfeiçoar a sua arte do café com leite atrás do balcão.
A cultura do café floresceu em todo o mundo - mesmo na Grã-Bretanha, obcecada pelo chá -, mas na Ucrânia, nos últimos dois anos, assumiu um significado especial como sinal de resiliência e desafio.
“Tudo vai correr bem”, disse Maria Yevstafieva, uma barista de 18 anos, que preparava um café com leite numa manhã recente num café de Kiev que tinha acabado de ser danificado por um ataque de mísseis. A janela de vidro da loja tinha sido estilhaçada pela explosão e tinha caído sobre o balcão, mas Yevstafieva não se deixou abalar.
“Como é que eles nos podem quebrar?”, diz ela num vídeo referindo-se ao exército russo. “Temos uma arma, fazemos café”.
Antes da guerra, a Ucrânia era um dos mercados de café que mais crescia na Europa, de acordo com o Allegra World Coffee Portal, um grupo de investigação. Em Kiev, o número de cafetarias continuou a crescer mesmo após a invasão russa, atingindo atualmente cerca de 2500 lojas de acordo com a Pro-Consulting, um grupo ucraniano de investigação de marketing.
A cadeia Girkiy, por exemplo, é difícil de não ver na capital, com mais de 70 cafetarias. Os seus quiosques cor de menta encontram-se ao pé de igrejas ortodoxas centenárias e nas principais praças de Kiev.
Numa tarde recente, Yelyzaveta Holota, uma barista de 18 anos, estava ocupada no seu quiosque a preparar os pedidos. Estava no emprego há apenas quatro meses, mas já tinha um toque confiante: pesa o café moído, calca-o num porta-filtro e depois de deitar um expresso numa chávena dá-lhe uma pequena volta para realçar os sabores.
A técnica tem de ser perfeita, disse ela, porque a concorrência é feroz. Seis outras cafetarias alinham-se na rua onde ela trabalha, no centro de Kiev, incluindo uma segunda da Girkiy, que significa “amargo” em ucraniano.
Fundada em 2015, a cadeia costumava servir café de baixa qualidade privilegiando a rapidez. Mas em 2020, Oleh Astashev, o fundador, visitou o Barn em Berlim, uma instituição de café artesanal que torra o seu próprio café.
A visita impressionou-o e inspirou-o. De volta a Kiev, construiu a sua própria torrefação, comprou máquinas de café italianas topo de gama e começou a formar os seus baristas.
“Mudámos tudo: o nome, o serviço, os produtos, a qualidade dos grãos de café, a qualidade da água”, afirma. “Qualquer pessoa deve poder beber um café de alta qualidade.”
O nome anterior da cadeia era “Gorkiy”, ou amargo em russo.
A história de Astashev reflete a forma como o boom do café no país está ligado à sua aproximação mais ampla à Europa.
Após a revolução ucraniana de Maidan, em 2014, que derrubou um presidente pró-russo, o país reforçou os seus laços com a Europa, nomeadamente através da isenção de vistos para os seus cidadãos. Muitos ucranianos viajaram para ocidente descobrindo uma cultura do café que ainda não tinha penetrado nas suas fronteiras. Em breve, estavam a trazê-la de volta para casa.
“Queríamos que as nossas cafetarias em Kiev fossem como na Europa”, disse Maryna Dobzovolska, 39 anos, que cofundou o Right Coffee Bar com o marido, Oleksii Gurtov, em 2017.
Pergunte aos empresários do sector do café ucraniano sobre os famosos cafés de Viena ou sobre o expresso de assinatura de Itália e eles rejeitá-los-ão como uma visão “conservadora” e “antiquada” da cultura do café.
O seu modelo são cidades como Berlim e Estocolmo onde a chamada terceira vaga de cafetarias se multiplicou nas últimas duas décadas, dando ênfase a grãos de alta qualidade e receitas inovadoras.
Mais recentemente, Dobzovolska e Gurtov têm vindo a experimentar o café anaeróbico, um método de processamento que envolve a fermentação do café em tanques selados sem oxigénio, dando à bebida sabores frutados.
“Experimente. Vai adorar”, disse Gurtov, 49 anos, enquanto servia a bebida roxa e fumegante. Sempre dispostos a ultrapassar os limites, os baristas ucranianos também popularizaram o “Capuorange” - uma dose dupla de café expresso misturado com sumo de laranja fresco -, agora à venda em toda a cidade de Kiev.
Vários estrangeiros disseram-se surpreendidos com a qualidade do café num país que desde a era soviética consumia sobretudo café instantâneo.
“Este é o melhor café do mundo”, disse Michael McLaughlin, um americano de 51 anos que faz trabalho voluntário na Ucrânia, enquanto pedia um Americano na Maidan numa tarde recente.
Há quem diga que se trata simplesmente de um regresso às raízes da Ucrânia.
Diz a lenda que o homem que abriu o primeiro café em Viena, no final do século XVII, foi Jerzy Kulczycki, um soldado nascido na atual Ucrânia. É homenageado com uma estátua em tamanho real em Lviv que o louva como o herói de guerra “que ensinou a Europa a beber café”.
Volodymyr Efremov, um torrefator de café da Idealist, uma grande marca de café ucraniana, disse que o seu objetivo era agora “popularizar” o café de especialidade em todo o país.
Na Ucrânia de hoje, talvez não haja melhor forma de atingir esse objetivo do que através do exército. Todos os meses, a Idealist e outros produtores de café fornecem às forças armadas dezenas de milhares de sacos de café coado - saquetas de dose única, cheias de café moído. Estes são alguns dos melhores produtos do mercado de café ucraniano.
Nas redes sociais, os soldados publicaram vídeos em que despejam água quente em saquetas de café em chávenas de ferro antes de saborearem a bebida fumegante numa trincheira.
Perto de uma posição de artilharia, no ano passado, um sargento ucraniano júnior, Maksim - que não indicou o seu apelido de acordo com as regras militares -, estava a ferver água numa pequena chaleira branca com um saco de café moído Mad Heads ao seu lado. A sua unidade tinha acabado de disparar um obuseiro de fabrico australiano contra alvos russos na frente sul e apetecia-lhe uma boa chávena de café.
Durante cinco minutos seguidos discutiu o grau de mineralização da água necessário para obter a bebida perfeita, a qualidade dos grãos de origem única que fazem com que “saiba a café com mel, álcool e banana” e como a bebida deve ser consumida para “perceber mais sabores”.
Maksim, cujo indicativo de chamada é Stayer, disse que os seus colegas soldados acharam o café Mad Heads “delicioso e perguntaram-me onde o tinha arranjado”.
“Eu disse: “Pessoal, estamos no século XXI. Vamos comer como deve ser, mesmo que sejamos militares”.
Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times
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